Conheça a trajetória e o legado daqueles que iniciaram uma das maiores redes confessionais privadas do mundo
Rodrigo Galiza
Passei quase toda a minha vida estudando em instituições de ensino adventistas. Por isso, sou testemunha da influência positiva que esse modelo de escola exerce na vida dos alunos. O sistema educacional da igreja é atualmente uma das maiores redes confessionais privadas do mundo. Só na América do Norte, onde tudo começou, ela concentra 77 mil alunos da pré-escola à pós-graduação.
A exemplo das pesquisas Value Genesis e Cognitive Genesis, que têm comparado o desempenho acadêmico de alunos da rede adventista com os da rede pública e privada norte-americana, vários estudos mostram que os alunos matriculados nas escolas da denominação têm melhor desempenho em todas as disciplinas (saiba mais clicando aqui). Uma das explicações para isso é o fato de as escolas adventistas buscarem o equilíbrio entre atividades cognitivas, físicas e espirituais. Os benefícios de uma educação balanceada e com base na Bíblia são evidentes hoje. Mas não eram nos primórdios do adventismo. A maioria dos líderes e membros da igreja não se preocupou em estabelecer escolas para seus filhos por acreditar que Jesus voltaria em breve (Floyd Greenleaf, In Passion for the World [Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 2005], 16; e George Knight, Lest We Forget [Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2008],184). Não que eles fossem iletrados ou contra a formação educacional. Tiago White, por exemplo, era professor por formação e usou sua habilidade de ensinar e escrever na pregação do evangelho de maneira falada e escrita. Mas, crendo que em breve o mundo acabaria, os pioneiros adventistas não viram necessidade de usar seu tempo e esforços na abertura de escolas, mesmo porque elas eram providenciadas pelo governo. Foi somente em 1872 que a primeira escola adventista foi criada em Battle Creek (In Passion for the World, p.19; Lest we Forget, p.185).
Antes disso, algumas famílias adventistas transformaram em escolas o espaço de igrejas (e das próprias casas). Foi o que fez o casal John Byington, primeiro presidente eleito da Igreja Adventista, e Martha Dorner Byington, professora pioneira, em Buck’s Bridge, Nova York. As escolas paroquiais, no entanto, não cresceram por serem limitadas em recursos humanos e financeiros (In Passion for the World, p. 17, 18).
Na década de 1850, o adventismo ainda era um movimento de pregadores nômades migrando do litoral nordeste para o oeste dos Estados Unidos (M. Ellsworth Olsen, A History of the Origin and Progress of Seventh-day Adventists [Takoma Park, DC: Review and Herald Publishing Association, 1925]; ver especialmente o capítulo 9).
Ao se estabelecerem em Battle Creek, no estado do Michigan, os adventistas começaram a centralizar esforços e recursos. Primeiro surgiu a editora da igreja, em 1855; depois o sanatório, em 1866 (George R. Knight, Uma Igreja Mundial: Breve História dos Adventistas do Sétimo Dia [Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000], p. 57, 72). E foi o sanatório de Battle Creek que influenciou aquele que seria um dos precursores do movimento educacional adventista: Goodloe Harper Bell.
Diferentes visões e perfis
A princípio ele não era adventista. Mas ao visitar o sanatório em Battle Creek algumas vezes, acabou ficando por vários anos. Conta-se que em numa de suas estadias no dormitório ele ficou no mesmo quarto de um fervoroso membro da igreja, chamado Osborne. Noite após noite Osborne orava por Bell, que, tocado pelas suas preces, tornou-se adventista. Aliás, a educação adventista também se originou com muita oração.
Enquanto se tratava no sanatório, Bell cortava lenha para abastecer o prédio da editora. Trabalhando para melhorar sua condição física, acabou conhecendo Edson White, filho mais velho de Tiago e Ellen White. Edson descobriu que Bell era um professor e contou de sua frustração com a gramática. Bell, no entanto, o convenceu a estudar e a aprender quão precioso pode ser o conhecimento de línguas. Bell acabou sendo contratado pelos White para educar seus filhos. Por um tempo, ele trabalhou como voluntário. Porém, ao ver os resultados, os White convenceram a igreja de Battle Creek a contratar Bell e a começar uma escola. Assim, em Julho de 1872, uma escola foi aberta.
No mesmo mês, durante uma viagem para a Califórnia, Ellen White recebeu uma visão por meio da qual foi-lhe explicado qual devia ser o papel da educação adventista. No texto intitulado “Proper Education” (Testimony for the Church: Number 20 [Battle Creek, MI: Steam Press of Seventh-day Adventist Publishing Association, 1872/1873), ela descreveu um plano para a formação de centros educacionais onde a Bíblia fosse o centro do currículo junto com o trabalho manual. Saúde mental e física deveriam ser acompanhadas de treinamento espiritual (verbetes “Education, Ellen G. White’s Role in Adventist” (p.794-796) e “Education, Philosophy of” (p.796-797) da The Ellen G. White Encyclopedia).
A visão encontrou suporte em Bell, que havia sido treinado no Oberlin College, em Ohio, uma escola progressista que inovava na educação. Em vez de ensinar basicamente o conhecimento de línguas clássicas como latim e grego, a fim de ler os filósofos e poetas da Grécia e Roma antiga, o currículo do Oberlin valorizava o ensino da Bíblia e do trabalho na agricultura, extremamente necessária na época da expansão territorial norte-americana. Ellen White pediu que a igreja comprasse um grande terreno, a fim de que, junto do prédio da escola, houvesse espaço para os alunos trabalharem. Contudo, esse plano não se concretizou.
Sob a direção de Bell por um ano, a escola de Battle Creek cresceu. Mas logo ele foi substituído por Sidney Brownsberger, que havia cursado o mestrado na Universidade de Michigan, nos moldes do currículo tradicional. Bell permaneceu na escola como professor. Como presidente do colégio até 1881, Brownberger fez a escola de Battle Creek crescer, apesar de não seguir os princípios delineados por Ellen White (para saber mais sobre a trajetória dele e de Harper Bell, veja In Passion for the World , p. 24-31; Lest We Forget, p. 185, 188-189,191; e os verbetes “Bell, Goodloe Harper” e “Brownsberger, Sidney”, Ellen G. White Encyclopedia [Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2013], p. 313, 314; 324, 325).
Porém, pressionado pela liderança, Brownberger se afastou da função e um recém-converso da Igreja Batista ao adventismo se tornou o presidente da escola: Alexander McLearn, doutor em Teologia. McLearn tinha o diploma necessário para a função, mas não tinha a mente nos conselhos do Senhor. Nem sabemos ao certo se ele se tornou oficialmente um membro da igreja.
McLearn flexibilizou o código de ética estudantil e causou mal-estar na relação dele com Goodloe, fiel implementador dos conselhos de Ellen White sobre disciplina mental e física na escola (a respeito dos detalhes das intrigas causadas por Alexander McLearn, ver In Passion for the World, p. 31-34; e Lest We Forget, p. 189). Os rumores das intrigas entre Bell e McLearn se espalharam pela cidade, ao ponto de, em 1882, Bell ir embora. Mas, como McLearn não melhorou o comportamento dos estudantes, causa da saída de Brownberger, ele também foi afastado. Esse início conturbado da educação adventista sugere que os planos de Deus são superiores à percepção humana. Deus quer preparar-nos para a eternidade.
Currículos e diplomas desta terra, sem o caráter de Jesus, podem não contribuir muito para o grande plano divino. Depois disso, a escola de Battle Creek fechou por um ano. Bell e Brownsberger migraram para lados opostos. O primeiro foi para Massachusets, onde fundou o Atlantic Union College. Já Brownsberger se mudou para a Califórnia, criando o Pacific Union College. Ambos adotaram os princípios recomendados por Ellen White, contrários à cultura, e foram bem-sucedidos. Por sua vez, McLearn desapareceu da história adventista, tornando-se batista do sétimo-dia (verbete “McLearn, Alexander”, Ellen G. White Encyclopedia, p. 466).
Bem-intencionado
Em 1883, a escola de Battle Creek foi reaberta. Dessa vez, sob a liderança de LittleJohn, pastor da igreja local. Embora cego fisicamente, ele enxergou as necessidades dos alunos e trabalhou para saná-las, providenciando, inclusive, moradia e refeições. Assim, com o maior contato dos professores com os estudantes seria possível exercer uma influência mais significativa sobre a vida deles. A espiritualidade e sabedoria do cego LittleJohn foram mais valiosas que o título de McLearn. Mas LittleJohn permaneceu apenas dois anos na função e voltou a exercer o ministério na igreja de Battle Creek. William W. Prescott o substituiu (In Passion for the World, p. 36-44; Gilbert Valentine “Prescott, William Warren”, The Ellen G. White Encyclopedia, p.493-495).
Apesar de ter sido educado com base no modelo clássico, assim como foi Brownberger, Prescott criou mais oportunidades para o trabalho manual. Mas essa ênfase não atendeu a expectativa dos alunos. Assim, para “queimar” a energia dos estudantes, Prescott permitiu a criação de um ginásio esportivo. A “solução” gerou outro problema. Em vez de pacificar os ânimos dos jovens e fortalecer a mente em coisas elevadas, como Ellen White havia aconselhado, esse tipo de atividades gerou competições e brigas.
Mas nem tudo estava perdido. Nesse período, Prescott estruturou os dormitórios e o refeitório, passando a estar constantemente na presença dos alunos junto com sua esposa, Sarah. O casal formou laços de amizade com os alunos. Realizavam cultos, tinham momentos de oração e atividades sociais. Vários batismos resultaram desses esforços. Prescott também efetuou mudanças no currículo no sentido de dar mais espaço para a Bíblia.
No fim de 1880, a igreja implementou a reformulação curricular liderada por Prescott. Isso resultou na formação de um curso de quatro anos para ministros, que incluía aulas de história e profecia, bem como um panorama de toda a Bíblia com foco em Jesus. Esse modelo inspirou os cursos de Teologia que surgiriam mais tarde.
Em 1894, Prescott acompanhou Ellen White na Austrália, onde teve uma compreensão mais clara da visão educacional que equilibra aspectos físicos, mentais e espirituais. Foi no Avondale College que Prescott testemunhou como implementar esse sistema, num dos experimentos mais bem-sucedidos da educação Adventista (In Passion for the World, p. 128-133; Lest We Forget, p. 304-307). Prescott pode ter errado em algumas decisões no início do seu ministério como diretor da escola de Battle Creek, mas, com o passar do tempo, seus esforços e foco na missão deram bons resultados. A educação Adventista tem como perspectiva a eternidade e não deve ser avaliada apenas em curto prazo.
Educador visionário
Quando Prescott deixou o colégio de Battle Creek, Edward Sutherland, que trazia na bagagem a experiência como diretor do Walla Walla College, assumiu a liderança. Sutherland assegurou a compra de uma fazenda e, com o apoio do John Harvey Kellogg, implementou trabalhos manuais e fortaleceu o ensino sobre saúde. Sutherland também motivou os alunos a trabalhar para a igreja, o que, na visão dele, traria avanços para a obra. Como resultado, muitos estudantes se tornaram missionários e funcionários da igreja nesse período de expansão do adventismo (1890-1900). Dessa forma, a influência de Sutherland como educador foi multiplicada em diversas partes do mundo.
Outra contribuição dele para o movimento adventista foi a implantação de escolas em localidades rurais onde havia pequenas igrejas. Com a ajuda de Percy Magan, Sutherland transferiu a escola de Battle Creek mais para o Oeste de Michigan, em uma região agrária. Afinal, não havia mais espaço em Battle Creek para uma educação em contato com a natureza. Além do mais, a centralização da administração da igreja havia tornado Battle Creek numa grande arena de disputa por poder. E, sem dúvida, essa era uma influência negativa para os alunos.
Ao transferirem a escola de Battle Creek para Berrien Springs, em 1901, Magan e Sutherland enfatizaram o papel da educação adventista no cumprimento da missão. Antes chamada de Emmanuel Missionary College e posteriormente de Universidade Andrews, ela se tornou a mais influente escola adventista. Foi ali que teve início o movimento de formação de igrejas-escolas que acompanhou o crescimento numérico da igreja. Em 1880 havia apenas uma escola básica adventista oficial. Três décadas depois, o número de unidades escolares saltou para 594 unidades e 758 professores.
A necessidade de professores fortaleceu as escolas superiores adventistas, gerando um sistema que se retroalimentou. Isso acompanhou a explosão da missão adventista, que nas décadas de 1890 e 1910 presenciou o maior crescimento relativo que a igreja já teve (In Passion for the World, p. 41-51, 65-68, 85-87; Lest We Forget, p. 309-310; A History of the Origin and Progress of Seventh-day Adventists, p. 585-594; “Magan, Percy Tilson and Ida May (Bauer)” e “Sutherland, Edward Alexander”, The Ellen G. White Encyclopedia, p. 460-461; 524-525).
Pensando com a História
Não deveria ser surpresa que o investimento em pessoas gera dividendos. Uma organização com funcionários (e membros) mais capacitados tende a executar sua missão de maneira mais efetiva. O crescimento do sistema educacional adventista no início do século 20 foi acompanhado de um dos maiores crescimentos numéricos proporcionais de sua história (Lest We Forget, p. 310, 313-316).
Ao investir na educação dos seus membros mais novos, o movimento educacional adventista iniciado por Bell, melhorado por Prescott, aperfeiçoado por Sutherland e Magan e continuado por muitos educadores dedicados possibilitou o crescimento saudável do corpo de Cristo. Inspirados nas revelações divinas dadas a Ellen White, essas pessoas entenderam que a educação cristã e o divino plano da salvação têm o mesmo objetivo: a transformação do caráter à semelhança de Deus.
RODRIGO GALIZA é pastor e cursa o programa de Phd em História da Igreja na Universidade Andrews (EUA)
Última atualização em 1 de fevereiro de 2021 por Rafael.