Saiba como e por que as atuais histórias de ficção reforçam os conflitos entre as gerações
Júlio Leal
Desde que o mundo é mundo, a diferença de idade entre as pessoas tem gerado conflitos no modo como elas veem e vivem a vida em sociedade. Por exemplo, Caim, um dos filhos de Adão, resolveu ir para longe dos pais, bem distante dos portais do Éden, a fim de viver como bem quisesse. Ele abandonou o antigo lar, na tentativa, talvez, de deixar para trás a lembrança de suas mãos manchadas de sangue e as regras e expectativas que ele não havia sido capaz de cumprir. Séculos mais tarde, Cam, um dos filhos de Noé, fez algo parecido: cortou relações com a família. No mundo recriado pós-dilúvio, o “segundo Caim”, assim como o primeiro, acabou rejeitando a fé do pai e decidindo seguir em frente sob a orientação e guia da própria bússola moral, repelindo de sua alma todo indício de “reverência filial” (Patriarcas e Profetas, p. 117). Ismael, o primeiro filho de Abraão foi alguém igualmente propenso a afastar-se da religião, das crenças e dos valores da família, o mesmo ocorrendo com Esaú, que fez pouco caso da bênção e da tradição da primogenitura, unindo-se aos pagãos, para a tristeza e frustração das expectativas dos pais. Sansão, de igual forma, construiu sua liderança e protagonismo à revelia da opinião e das crenças do pai e da mãe, sendo o exemplo bíblico mais emblemático do conflito entre as gerações.
Caim, Cam, Ismael, Esaú, Sansão e tantos outros, na Bíblia, são personagens históricos que representam a quebra das ligações profundas que unem pais e filhos, digamos, no mesmo time. Esse elo de cumplicidade e ternura ainda existe em muitas famílias hoje, porém está cada vez mais raro. É verdade que deixar de ser criança, crescer e emancipar-se requer autonomia, independência e espaço para ser você mesmo, ainda que isso contrarie um pouco a família. Contudo, o que dizer da enorme brecha que tem surgido nas últimas décadas entre pais e filhos antes mesmo de eles se tornarem adultos e saírem de casa? O que há de novo no conflito de valores e perspectivas entre indivíduos de diferentes gerações? Em que medida as relações entre pais e filhos mudaram no último meio século?
Mudanças culturais na era digital
Uma possível resposta pode ser encontrada nas novas tecnologias e na visão negativa que a cultura pop globalizada de nosso tempo tem inculcado nas crianças e jovens sobre o papel dos pais e mães dentro da família. Nunca antes as histórias da Bíblia e as das telas tinham seguido direções tão opostas. Se compararmos os divertidos Flintstones (1960) e Jetsons (1962) com a família dos Simpsons (1989) e a de Peppa Pig (2004) ficaremos chocados com a luz escura e pejorativa que recai sobre os pais – e em especial sobre o pai – nas produções mais recentes. Se o relato do filho pródigo virasse filme nos dias de hoje, o fundo moral da narrativa provavelmente desapareceria, e o vilão da história talvez fosse o pai. O pai pouco inteligente, omisso ou ausente, a mãe dominadora ou estressada, adultos incapazes de entender os mais jovens e de se comunicar com eles têm sido temas recorrentes nas narrativas voltadas para o público jovem, quer nos desenhos animados, quer nas séries e filmes mais populares na internet. Agora, nas histórias em que há conflitos entre gerações, os protagonistas não são mais indivíduos imaturos que aprendem, com dificuldade, as duras lições da vida e, caindo em si – como o filho pródigo –, finalmente se resolvem e amadurecem.
O jogo virou. Os protagonistas agora são pessoas destinadas a mostrar aos mais velhos em que eles falharam e como deveriam fazer o que, infelizmente, não souberam ou não quiseram. Trata-se de um “cinema engajado”, ou seja, movido pelo ideal de reafirmar o que é considerado “politicamente correto” e em cuja mira parece estar tudo o que tem cheiro de educação tradicional. Daí pais e mães tornam-se os vilões das histórias por causa de seus defeitos de caráter e deslizes morais. Suas decisões e comportamentos equivocados são “passados a limpo” e trazidos ao debate nas pequenas e grandes telas que alegam dar, por meio da ficção, um vislumbre da realidade. Observe que, nos filmes de hoje em dia, são os pais que, no final da história, confessam seus erros e pedem perdão, exatamente o que faziam os antigos vilões. Hoje, nos filmes e desenhos infantis, são os pais e mães que se retratam diante dos filhos pelos traumas que causaram, por terem sido negligentes ou ausentes, por seu preconceito e intolerância, pela falta de amor, compreensão, cumplicidade, sinceridade e incentivo constante. Nunca antes na história, a realidade foi descrita pela arte popular assim de um modo tão vívido e conforme um olhar juvenil tão agudo, cuja perspectiva é, literalmente, revolucionária.
A revolução presente na ficção pop de nosso tempo, porém, é tão perigosa quanto o autoritarismo e o tradicionalismo das sociedades que antecederam à nossa. Entenda. O protagonismo da juventude é, naturalmente, bem-vindo. O que preocupa, no entanto, é o modelo comportamental que ele propõe ou reforça: adultos infantis e crianças precoces, que pensam ser adultas; diálogo aberto e franco em conflitos rotineiros nos quais peitar o outro para afirmar a própria opinião é a regra, porém o respeito cuidadoso, a deferência e o benefício da dúvida são direitos apenas de alguns, não de todos. Quem carrega a maior parte das responsabilidades e resolve a maior parte dos problemas tem o mesmo poder decisório dos que nada fazem além de usar sua oratória para protestar, crendo que a saliva vale mais que o suor, e que palavras sonoras têm maior peso que a coerência entre o falar e o agir. Esse “regime democrático” soft, desejável em grandes grupos sociais, é desastroso dentro de famílias pequenas cuja índole e dinâmica é outra.
As narrativas e filmes populares dos últimos tempos desconstroem por completo os valores tradicionais da família. Muitas histórias de ficção já não acabam em casamento nem fomentam a fidelidade, a honra, a modéstia, a honestidade inquebrantável, as boas maneiras e o autossacrifício. O amor e a entrega deixaram de ser altruístas, porque submissão e renúncia se tornaram conceitos antiquados, símbolo da opressão e da infelicidade. A olhos vistos, os heróis agora são imperfeitos e caricatos (e até se gabam disso!), como o Homem de Ferro ou Bart Simpson, que “acha que ser normal é chato e faz coisas que os outros não poderiam fazer”, como declarou Matt Groening, criador do personagem, em uma entrevista ao The Record (A Badder Bart, 25 de setembro de 1991). Esses anti-heróis fazem questão de, moralmente, imitar os seres humanos em vez de inspirá-los: desdenham, ironizam, dizem palavrão, mentem, trapaceiam, são promíscuos e grosseiros. Enfim, “libertaram-se” da “tirania das expectativas alheias”. Deixaram de ser “deuses”. Agora são o que são, sem demagogia, sem máscaras, sem maquiagem, sem ideais elevados. Note-se que a ênfase das histórias deixou de ser coletivista e se tornou individualista; deixou de ser idealista e se tornou niilista ou existencialista. Foi nesse sentido que, falando ao The Roanoke Times, em 15 de outubro de 1990, James L. Brooks argumentou: “Você não encontra tantos modelos [de virtude] na vida real. Por que a televisão deveria estar cheia deles?” Parece que o jeito de fazer cinema e contar histórias mudou nas últimas décadas. Por quê?
A evolução noológica do pensamento ocidental
É que muita coisa mudou no Ocidente desde o século 16, quando a literatura picaresca passou a exaltar a malandragem como forma de sobrevivência. Muita coisa mudou desde maio de 1968, quando o movimento estudantil em Paris se tornou o estopim de uma guinada ideológica sem precedente. Muita coisa mudou com a revolução tecnológica e cultural no mundo globalizado e na era digital. Portanto, os heróis e vilões também mudaram, assim como o enredo daquilo que hoje em dia se lê e se vê na indústria do entretenimento e na arte popular. Diante dessa realidade, caberia perguntar: Haveria alguma contradição entre tudo isso e os ensinamentos do cristianismo? Julgue por si mesmo. A Bíblia ensina submissão às autoridades (Rm 13:1-7). Os filmes, porém, exaltam o combate aos líderes e governantes corruptos e indignos de crédito. A oposição não é explícita, mas o foco é diferente, percebeu? A Bíblia contém um mandamento que requer honrar incondicionalmente pai e mãe (Êx 20:12). Cumprir esse mandamento, porém, é o último desejo no coração de quem consome no dia a dia histórias dramáticas de crianças mal-amadas, vítimas de abuso ou criadas sem lar, em orfanatos ou na rua, sem acolhimento real: um tema cada vez mais explorado nas produções cinematográficas desde o pós-guerra.
Além disso, muitas produções contemporâneas transformam histórias de abandonos e traumas na linha argumentativa que explica as personalidades e mazelas dos personagens, como ilustrado por Síndrome em Os Incríveis (2004) e por Gru em Meu Malvado Favorito (2010). Essas produções despertam a empatia benevolente do público, mas não mostram o caminho da cura, da maturidade e da autossuperação senão por meio de um “dane-se” para a sociedade injusta, a família controladora, o chefe opressor, o cônjuge incompreensivo, o rival arrogante. O pano de fundo ideológico não poderia ser mais claro. Esses discursos são terreno fértil para o individualismo hedonista sob o argumento do empoderamento dos desfavorecidos. Assim estimulam conflitos, tanto os justos quanto os injustificados; tanto os evitáveis quanto os incontornáveis. Acaba sendo um tiro no pé, um tiro bem-intencionado que, infelizmente, sai pela culatra.
Por essa razão, em Encanto (2021) a vilã é uma matriarca idosa, que trata a neta com feroz crueldade, algo possível na vida real, mas pouco frequente, convenhamos, pois, em geral, avó e netos se dão bem. O fato é que nessa narrativa predomina uma “abordagem infantocêntrica” e “antiadulto”. Em outros exemplos a ênfase é, além disso, antifalocêntrica, ou seja, voltada contra tudo o que tem cheiro ou aparência de machismo. Em Uma aventura LEGO (2014), o pai é o causador do problema nos brinquedos do filho, por não ser capaz de entender o efeito de seus próprios atos sobre a vida do menino. Em LEGO Ninjago: O Filme (2017), o pai é o rival do filho e, por pouco, os dois quase se destroem em um duelo, do qual Lloyd, o filho, sai vencedor: outra poderosa metáfora antiadulto. No final de LEGO Ninjago, como “bom vilão”, o pai se emenda e volta para casa, a fim de morar com a esposa e o filho aos quais ele havia abandonado. Em Tá Chovendo Hambúrguer (2009), o pai faz mea culpa, no fim da história, por seu tradicionalismo e incapacidade de se conectar emocionalmente com o filho. O vilão no relacionamento é, de novo, o pai. Em A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (2021), a filha adolescente ensina o pai caipira e cinquentão a usar a tecnologia digital que ele tanto odeia, ajudando-o finalmente a salvar o dia. Os exemplos são incontáveis.
Um novo modelo cultural de paternidade
Nessas produções artísticas e culturais, o modelo idealizado de pai ou de “adulto aceitável” é o do amigo gente boa, que não aconselha sem autorização prévia e nunca julga o outro. É a figura do apoiador, não do mentor; do que provê, não do que desafia; do que brinca junto, do que chora junto, do que dialoga, sem pressão, sem repreensão, com poucas regras, sem muitas restrições. Entendeu? Dentro dessa narrativa, a única autoridade válida é a do diálogo, e o único modelo educacional aceitável é o do laissez-faire (“deixa rolar”). “Enquanto o herói clássico não questiona nem contesta a sociedade em que está inserido, o anti-herói da modernidade tem um embate contra a sociedade”, explica Luiz Felipe Espinelly, em sua tese de Doutorado, defendida em 2016 na Universidade do Rio Grande (p. 231).
Os tempos mudaram e os super-heróis também, não há dúvida. A ética se tornou relativista e situacional. Tudo isso requer análise e reflexão. Com o que, afinal, o futuro nos deparará? Com mais ou menos orfanatos e prisões? Com uma sociedade mais ou menos coesa? Com famílias maiores ou menores? Mais unidas ou menos? Melhor ou pior estruturadas? Com maior ou menor taxa de depressão e suicídio? Com uma nova geração aberta a aprender com o passado ou resistente a qualquer coisa que se pareça com uma “lição de moral”? Com pessoas dispostas ou indispostas a compartilhar suas vidas e experiências profundas em uma relação amorosa duradoura? Não dá para saber, mas dá para imaginar. Talvez alguém devesse produzir um desenho animado ou uma série sobre isso, não acha?
SAIBA +
Espinelly, Luiz Felipe V. O anti-herói no romance distópico produzido na pós-modernidade ou o Prometeu pós-moderno. Tese de Doutorado em Letras. Universidade Federal do Rio Grande, 2016. Disponível em: <http://repositorio.furg.br/handle/1/9325>. Acesso em: 16 jan. 2022.
Montuori, Alfonso. Interdependence Is the Key Issue: Mary Catherine Bateson and the Myth of Individualism. Cybernetics and Human Knowing. v. 28, n. 3-4, p. 57-75, 2021. Disponível em: <https://ciis.academia.edu/AlfonsoMontuori>. Acesso em: 16 jan. 2022.
Romero, Alejandro.Lipovetsky: una teoría humorística de la sociedad postmoderna. Revista Tebeosfera, p. 1-6, 2004. Disponível em: <https://www.tebeosfera.com/1/Documento/Articulo/Humor/Lipovetsky/sociedad_postmoderna.htm>. Acesso em: 16 jan. 2022.
Schmidt, Victoria Lynn. Story Structure Architect: A Writer’s Guide to Building Dramatic Situations and Compelling. Cincinnati, Ohio: Writer’s Digest Books, 2005.
White, Ellen. Patriarcas e Profetas. 16. ed. Tatuí-SP: Casa Publicadora Brasileira, 2003.
Última atualização em 25 de janeiro de 2022 por Márcio Tonetti.