Saiba como foi o batismo de 95 mil pessoas em Ruanda e como a igreja tem ajudado a restaurar as feridas do genocídio da década de 1990
A Igreja Adventista em Ruanda promoveu uma grande cruzada evangelística entre os dias 13 e 28 de maio. A iniciativa, denominada “Total Member Involvement” (Envolvimento Total dos Membros, um programa da sede mundial), uniu pastores e membros que desenvolveram atividades como estudos bíblicos, atendimento médico e odontológico gratuito, palestras sobre saúde, visitas de porta em porta convidando pessoas para estudar a Bíblia e muitas outras ações.
Durante duas semanas, reuniões evangelísticas foram realizadas todas as noites em 2.227 lugares por todo o país. Esperava-se que no dia 28 de maio houvesse 60 mil batismos. Contudo, o resultado foi ainda mais surpreendente: O número de pessoas que entregaram a vida a Cristo passou de 95 mil.
O presidente mundial da igreja, pastor Ted Wilson e a esposa, Nancy, estiveram pessoalmente envolvidos no evangelismo, liderando atividades e conduzindo programações em alguns lugares.
Depois das primeiras reuniões, Ted Wilson declarou: “Vivemos um grande momento em nossas reuniões evangelísticas em Ruanda. Tive alguns problemas técnicos na primeira noite, além da chuva, mas, apesar disso, Deus abençoou o trabalho. Muitas pessoas aceitaram ser preparadas para o batismo. No sábado de manhã, 146 pessoas responderam ao apelo. No sábado à noite, cerca de 70 foram à frente. E isso é apenas o começo das reuniões”. Wilson relatou que sua esposa, Nancy, apresentou um número semelhante de pessoas que aceitaram estudar a Bíblia e foram batizadas durante a campanha.
Somente no primeiro sábado, cerca de 7 mil pessoas compareceram à reunião de Ted Wilson e cerca de 5 mil estiveram presentes na de Nancy. O casal também pregou em uma feira de saúde que foi realizada em Gisenyi. Literatura sobre saúde foi distribuída nos lugares em que as reuniões evangelísticas ocorreram.
Milhares de pessoas se comprimiram às margens do Lago Kivu para testemunhar os batismos do último sábado. Idosos e deficientes foram batizados primeiro, em seguida as grávidas e as longas filas de homens e mulheres. Oito pastores batizaram 1.971 pessoas em cerca de duas horas e meia.
Largos sorrisos preenchiam muitos rostos, enquanto as pessoas saíam da água e se dirigiam às tendas para trocar suas roupas batismais. “Uma transformação aconteceu em mim”, disse Steve Nsabimana, de 16 anos, cidadão belga que estava de férias visitando parentes na região de Gisentyu quando começaram as reuniões evangelísticas.
Nsabimana disse que a curiosidade o levou às reuniões e que a mensagem sobre as profecias de Daniel e Apocalipse o convenceram a entregar o coração a Jesus. Ele retornará à Bélgica, como um adventista do sétimo dia. “Depois do batismo, senti que todos os meus pecados foram perdoados”, disse com um sorriso.
Obed Twagirasu, de 51 anos, ex-adventista, contou como se sentiu impressionado a buscar o rebatismo enquanto ouvia Nancy Wilson. “Estou muito feliz por fazer parte da família de Deus novamente”, assegurou.
VEJA IMAGENS DO BATISMO HISTÓRICO
“Uma experiência inesquecível”
Batismos adicionais, fruto do evangelismo em Ruanda, são esperados para os próximos dias. O evento evangelístico foi o maior da história da Igreja Adventista do Sétimo Dia desde sua organização, em 1863.
“Vocês são um exemplo para o mundo inteiro. Louvamos a Deus por isso”, disse Ted Wilson para uma multidão de 6 mil fiéis em Gisenyi, durante o último dia de programação.
Os líderes da igreja local creditam ao Espírito Santo e ao programa Total Member Involvement o número de batismos sem precedentes.
“Quando cada membro se envolve, uma grande colheita acontece”, afirmou Sophonie Setako, presidente da Missão Noroeste de Ruanda. Somente esta região registrou 10.779 batismos. “Visitando as pessoas e atendendo suas necessidades, ganhamos muitos membros”, celebra o pastor.
História de ódio e violência
O crescimento do evangelho adquire um significado ainda mais especial num país cuja história foi marcada pelos conflitos étnicos que resultaram numa das maiores tragédias humanitárias da história recente: o genocídio de 1994.
Composto por três etnias – hutus (90%), tutsis (9%) e twas (1%), Ruanda já foi colônia da Alemanha. Porém, com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, ficou sob domínio da Bélgica até 1962.
Os belgas decidiram dividir as tribos e governar a colônia usando os tutsis como representantes. Deram a eles preferência e certos privilégios, como acesso a serviços de educação e saúde de qualidade, enquanto a maioria hutu foi deixada de lado. Os colonizadores também introduziram documentos de identificação que determinavam a tribo de cada ruandês. Isso decretou a morte brutal de milhares de tutsis décadas mais tarde.
Para Bruno Younes, historiador e especialista em história afro-brasileira, o ressentimento entre as tribos surgiu após o início das investidas e permanência dos belgas na região. Ele esclarece que, ao se analisar culturalmente os dois grupos, ambos compartilhavam de várias similaridades (como o dialeto falado) e seguiam as mesmas tradições. “No entanto, ao entrarem no território ruandês, os belgas perceberam que havia algumas diferenças físicas. Os tutsis eram mais altos e com tom de pele mais claro. Para os belgas, os hutus eram tidos como moralmente inferiores aos tutsis”, explica.
Younes acredita que os colonizadores belgas introduziram propositalmente o ódio entre as tribos. “Havia o receio de que os colonizadores fossem derrotados pelos colonizados. Então, os que dominavam decidiram pela destruição dos que eram dominados. Acredito que eles implantaram esse sentimento entre hutus e tutsis com o objetivo de destruir as duas tribos”, ele acrescenta.
Em 1959, os hutus se revoltaram e derrubaram a monarquia tutsi. Milhares de tutsis abandonaram Ruanda, refugiando-se em países vizinhos. A partir de então, a perseguição aos tutsis começou e cerca de 20 mil deles foram mortos durante os anos que antecederam a independência de Ruanda.
Sob pressão internacional, os colonizadores iniciaram uma transição de poder para os hutus poucos anos antes da independência do país. Em 1961, os ruandeses obtiveram sua autonomia por meio de um plebiscito supervisionado pela ONU e se tornaram independentes no ano seguinte.
Desde então, muitos episódios violentos ocorreram durante as décadas seguintes, causando a morte de milhares de tutsis e forçando dezenas de milhares a se exilarem. A situação de instabilidade e violência se intensificou ainda mais no começo dos anos 1990.
Bodes expiatórios
Em 1973, o hutu Juvenal Habyarimana se tornou presidente de Ruanda por meio de um golpe. Instituiu políticas de cotas para empregos e instituições de ensino favorecendo os hutus e acirrando ainda mais o ódio entre as duas tribos. Habyarimana passou a usar os tutsis como bodes expiatórios, culpando-os por todos os problemas do país.
Cerca de seis anos depois, tutsis exilados em Uganda formaram a Aliança Ruandesa para a Unidade Nacional (futura Frente Patriótica Ruandesa), liderada pelo general Paul Kagame, atual presidente de Ruanda.
Em agosto de 1990, a FPR atacou Ruanda para forçar o governo a repatriar os rebeldes. Isso deu início a uma guerra civil que durou até agosto de 1993, quando os rebeldes da FPR e o governo de Ruanda assinaram o Acordo de Arusha, encerrando o conflito. Estabeleceu-se, assim, um governo de coalizão com a participação da FPR, o que causou protestos de hutus extremistas.
No ano de 1993, a ONU enviou uma missão de paz a Ruanda (Forças de Paz das Nações Unidas Para Ruanda – Minuar) para observar o cessar-fogo e garantir o cumprimento do acordo. Porém, na noite do dia 6 de abril o avião em que estavam o presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, e o do Burundi, Cyprien Ntarymira, foi derrubado quando chegava a Kigali. Eles retornavam de Arusha (Tanzânia), onde negociavam os detalhes do acordo. Até hoje não se sabe quem cometeu o atentado. Mas o fato é que, horas depois, começou um massacre.
O genocídio de Ruanda
Em 1994, a população de Ruanda era de 7 milhões de habitantes. Em apenas cem dias, entre 800 mil e 1,1 milhão de pessoas foram mortas dentre tutsis e hutus moderados, a maioria a golpes de facão e outros instrumentos agrícolas. Quase todas as mulheres foram violentadas, muitas delas estupradas coletivamente. Algumas foram abusadas por portadores do vírus HIV que as infectaram intencionalmente.
Assassinos e vítimas eram colegas de classe e de trabalho, vizinhos, pessoas que frequentavam a mesma igreja, antigos amigos. Os estrangeiros fugiram de Ruanda e a própria ONU abandonou o país.
Os genocidas sabiam com antecedência onde cada tutsi residia ou poderia ser encontrado. A milícia Interahamwe, (composta por jovens civis recrutados pelo governo para ajudar na execução do genocídio) recebeu listas com informações para localizar as vítimas.
A Rádio Televisão Livre das Mil Colinas manteve uma programação ininterrupta desde o dia 6 de abril até o fim do genocídio. Os meios de comunicação foram usados para incitar ainda mais o ódio contra os tutsis, conclamar um esforço coletivo final para exterminá-los e informar onde muitos estavam escondidos.
Houve massacres em igrejas no país inteiro, para onde tutsis fugiram acreditando que seriam poupados em um lugar sagrado. Foi inútil. Somente na igreja de Nyamata, a 35 quilômetros a sudeste da capital, Kigali, mais de 10 mil pessoas foram assassinadas. Hoje o local é um dos muitos memoriais do genocídio que existem em Ruanda, onde os ossos com as roupas das pessoas mortas ali permanecem até hoje.
O inferno chega ao fim
Apoiada por Uganda, a FPR invadiu Kigali em 4 de julho de 1994, interrompendo o genocídio. Mais de dois milhões de hutus que participaram do massacre fugiram para os países vizinhos (sobretudo para a República Democrática do Congo), onde a maioria permanece.
O legado do genocídio durará por gerações. O governo desenvolve políticas para que haja perdão e reconciliação, mas retaliações e perseguições continuam acontecendo. Há um temor crescente de que outra tragédia aconteça, liderada no futuro pelos que foram perseguidos no passado.
“Não adianta fazer uma reforma política, se ainda há em Ruanda pessoas vivendo a herança da guerra dentro de suas próprias cidades. Portanto, é necessário que o senso de humanidade esteja no coração daqueles que governam o país para que possa, de fato, haver mudança”, acredita o historiador Bruno Younes.
Esperança para os refugiados
A primeira perseguição aos tutsis de Ruanda em 1959 deflagrou uma crise de refugiados que perdura até hoje. Atualmente, seis campos reúnem cerca de 74 mil pessoas em Ruanda.
Isso trouxe desafios e, ao mesmo tempo, grandes oportunidades para a atuação humanitária adventista. Jefferson Kern, diretor da Agência Adventista de Desenvolvimentos e Recursos Assistenciais (ADRA) no Brasil, liderou a agência humanitária nesse território africano durante quatro anos. “Os campos são mantidos pelo governo de Ruanda e a maioria dos refugiados vem da República Democrática do Congo”, explica.
A ADRA e o Alto Comissariado Para Refugiados das Nações Unidas (Acnur) trabalham em parceria com o governo de Ruanda a fim de fornecer assistência a essas pessoas. “Entre outros projetos, temos uma parceria com as escolas que ficam dentro dos campos de refugiados. São escolas geridas pelo governo, mas que são organizadas, preparadas e, inclusive, financiadas mediante a parceria com a ADRA”, explica. As escolas oferecem aulas de educação primária e secundária, além de cursos profissionalizantes, a fim de capacitar os refugiados a obter independência financeira.
Formado em saúde pública, Gad Bakinahe, de 32 anos, é um dos que ajudam nessa tarefa. Funcionário da ADRA desde maio de 2015, ele trabalha no campo de refugiados de Gihembe, localizado na Província Norte de Ruanda. Sua função é coordenar programas para alimentar os estudantes que vivem nos campos e garantir a higiene dos alimentos fornecidos, além de cuidar de outras questões logísticas.
Ele conta que as pessoas que vivem nesses locais têm grandes necessidades, haja vista que precisaram deixar tudo para trás. Chegam cansados, doentes e afastados de suas famílias e dos amigos. “Há uma total mudança na vida deles, uma vez que possuíam bens, negócios, mas agora são obrigados a sentar-se e esperar ajuda. Também há muitas mulheres que estão passando por gestações não planejadas e muitas pessoas que abandonaram os estudos”, relata.
Tendo em vista esse cenário, Kern acredita que criar condições para essas pessoas se desenvolverem é um fator importante para evitar novos conflitos. “Aquelas que têm oportunidades de estudar, construir família e ter condições dignas de moradia conseguem se desapegar das ideologias que provocaram atos de violência. Desse modo, o desenvolvimento econômico ajuda muito”, afirma.
Essa compreensão tem levado a agência humanitária adventista a colocar em prática diversos projetos com foco na geração de renda e independência financeira. “Quando você tem fome, o único pensamento que lhe ocupa a mente é como fazer para deixar de ter fome. Se você acha que sua fome é culpa do seu vizinho porque que ele tem mais dinheiro do que você, poderá desejar machucá-lo. Mas se a pessoa sair dessa condição e começar a produzir seu próprio desenvolvimento, acabará se desvencilhando dessas ideias”, acredita Jefferson Kern.
O projeto Action For Social Change, fruto de uma parceria envolvendo os escritórios da ADRA em Ruanda, Uganda, Malaui e Dinamarca, é uma das iniciativas que têm contribuído para o desenvolvimento dessas comunidades. A ação consiste em levar as pessoas a olhar para sua realidade, refletir sobre suas necessidades e a pensar como podem crescer no âmbito pessoal e profissional.
Além da atuação da ADRA, instituições de ensino adventistas têm cumprido um importante papel ao ajudar as crianças a crescer livres da cultura do ódio. A vida de Paul Rusesabagina, que inspirou o filme Hotel Ruanda, é um forte exemplo da influência exercida pela educação cristã e sua ênfase no fato de que, aos olhos do Criador, todos têm valor.
Com o intuito de contribuir para um clima de maior tolerância e paz, no mês de abril a igreja local também promoveu oficinas de aconselhamento com o objetivo de ajudar emocionalmente os sobreviventes do genocídio. Por meio de diversas abordagens, o evangelho tem levado alívio e paz a um povo cansado de ver os horrores da guerra.
LARISSA JANSSON é jornalista e foi coprodutora do documentário Memórias Feridas (Com informações da Adventist Review, colaboração de Márcio Tonetti e infografia de Eduardo Olszewski)
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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.