Retorno ao Éden

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O que o relato da criação ensina sobre a sexualidade

Richard M. Davidson

Imagem: Adobe Stock

Gênesis 1 e 2 apresentam o projeto de Deus para a sexualidade humana. Essa representação profunda, no início das Escrituras, é fundamental para o estudo do tema em outras partes do texto sagrado. Na Bíblia, há várias passagens que tratam da sexualidade, e um livro inteiro do Antigo Testamento – Cantares de Salomão – exalta a beleza do amor e da intimidade no contexto do casamento. Este artigo aborda o projeto divino para a sexualidade estabelecido no Éden, com implicações para as questões LGBTQ+. A compreensão bíblica do tema pode ser organizada em dez pontos importantes.

Criação do homem e da mulher

“Assim Deus criou o ser humano à Sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1:27). A diferenciação sexual é uma criação de Deus e não faz parte da estrutura divina em si. Em contraste com os relatos pagãos da criação do Antigo Oriente Próximo, em que os seres humanos surgem da união sexual de divindades masculinas e femininas, o relato de Gênesis separa radicalmente a sexualidade e a divindade.

Além disso, os seres humanos foram criados “macho [zakar] e fêmea [neqebah]” (ARC). De acordo com as Escrituras, há apenas dois gêneros (sexos), e a biologia determina esses sexos, não construções sociais, como afirma a teoria dos transgêneros.

A etimologia dos termos hebraicos para macho e fêmea alude aos órgãos sexuais biológicos masculino e feminino, respectivamente. Gênesis 1:28 relaciona especificamente esses termos aos seus papéis na reprodução: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem­- na.” Quando o Senhor criou os seres humanos à Sua própria imagem, homem e mulher foram abençoados com a capacidade de procriar, tornando-se cocriadores com Ele. Em toda a Bíblia, a combinação binária de macho e fêmea, homem e mulher, permanece constante, sem exceção.

Casamento heterossexual

O primeiro casamento foi entre “homem” e “mulher” (Gn 2:22, 23). O texto bíblico ainda declara: “Por isso, o homem deixa pai e mãe e se une à sua mulher, tornando­- se os dois uma só carne” (Gn 2:24). Ao usar a expressão “por isso”, referindo-se à informação que precede, o versículo indica que o casamento de Adão e Eva fornece o modelo divino para todos os matrimônios subsequentes. De acordo com o padrão estabelecido com o primeiro casal no Éden (Gn 2:18-24), o relacionamento sexual deve ser entre o homem e sua mulher. Essa terminologia identifica o relacionamento matrimonial heterossexual como o modelo edênico, e esse padrão continua sendo a norma em toda a Bíblia.

As Escrituras não condenam aqueles que têm atração pelo mesmo sexo e que, pela graça de Deus, não nutrem nem agem de acordo com seus pensamentos de luxúria (Rm 8:1, 4; Tg 1:14, 15). No entanto, os textos do Antigo e do Novo Testamento que tratam de sexualidade proíbem implícita ou explicitamente as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo (Gn 19:4, 5; Lv 18:22; 20:13; Dt 23:17, 18; Jz 19:22; Ez 16:48-50; 18:10-13; Rm 1:24-27; 1Co 6:9, 10; 1Tm 1:10; 2Pe 2:6-10; Jd 7, 8). As “relações sexuais ilícitas” condenadas por Jesus (Mt 5:32; 19:9; Mc 7:21-23), expressas no relato pelo termo grego porneia, incluíam a prática homossexual, conforme fica evidente na decisão do Concílio de Jerusalém (At 15:29). Nesse contexto, são citadas as quatro proibições descritas em Levítico 17 e 18, utilizando a expressão porneia para abranger todas as relações sexuais ilícitas mencionadas em Levítico 18, incluindo os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Relação monogâmica

Em Gênesis 2:24, a combinação do substantivo “homem/marido” (em hebraico, ‘ish) com o substantivo “mulher/esposa” (ishah), tanto no singular quanto no plural, indica claramente que o relacionamento conjugal deve ser não apenas heterossexual, mas também monogâmico. Jesus afirma: “Por isso o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (Mt 19:5). Embora as personalidades da Bíblia às vezes tenham se desviado pecaminosamente dessa ordem divina, essas práticas nunca foram citadas com aprovação pelos escritores bíblicos nem explicitamente condenadas ao descreverem os resultados desastrosos dos relacionamentos poligâmicos.

Igualdade e mutualidade

Em Gênesis 1:27, tanto o homem quanto a mulher recebem domínio sobre as outras criaturas vivas, não um sobre o outro (Gn 1:26, 28). Ambos devem compartilhar a bênção e a responsabilidade da procriação (Gn 1:29, 30). Em resumo, ambos participam da imagem de Deus. Gênesis 2 reforça essa posição, mostrando que a mulher é criada de uma costela tirada do lado de Adão para ilustrar que ela deve estar ao lado dele como igual. Ela é a “auxiliadora semelhante ao homem” (‘ezer kenegdo, Gn 2:18), uma expressão que, em hebraico, não indica um ajudante subordinado, mas um “parceiro igual e mútuo”. Gênesis 2:24 resume o ideal de igualdade e submissão mútua entre marido e mulher, sem negar a validade de Gênesis 3:16 como uma provisão corretiva temporária para a liderança servil do marido, quando necessário, a fim de preservar a unidade e a harmonia no lar.

As Escrituras apresentam pouquíssimas ordens específicas relacionadas ao gênero, como a de uma mulher se apresentar como mulher e não como homem, e vice-­versa (Dt 22:5; 1Co 11:2-16). A maioria dos estereótipos de gênero provém da cultura atual, não da Bíblia. De fato, os homens e as mulheres que são descritos no texto sagrado frequentemente desafiavam os estereótipos contemporâneos relacionados aos sexos. Um exemplo notável é a descrição da “mulher virtuosa”, em Provérbios 31:10-31, além das abordagens contraculturais de Jesus sobre masculinidade e feminilidade. As pessoas que sofrem de disforia de gênero talvez encontrem liberdade ao perceber que podem ser homens (ou mulheres) sem serem limitados aos estereótipos associados a esses gêneros.

Integridade

Gênesis 2 apresenta uma visão abrangente do relacionamento conjugal: o marido e a mulher precisam um do outro para ser “completos”. O relato da criação começa com a criação do homem, que está incompleto e sozinho, e isso “não é bom” (v. 18). Ele necessita de uma companheira. Ao ver Eva pela primeira vez, Adão exclamou: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23). O versículo 7 oferece uma visão do ser humano: “Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente [nephesh]” (ARA). O termo hebraico nephesh, geralmente traduzido como “alma”, nunca se refere a uma entidade imortal separada do corpo. Segundo Gênesis 2:7, um ser humano não tem alma, ele é alma. Essa passagem rejeita qualquer dualismo entre corpo e alma. Não há na Bíblia qualquer distinção entre um suposto “eu interior” que pode ter uma identidade sexual diferente do sexo biológico, como geralmente se supõe na teoria dos transgêneros.

A incongruência de gênero, uma condição que, em última análise, surge como consequência da queda, não é pecado em si, mas pode levar a escolhas pecaminosas se as pessoas transgênero não se comprometerem a ordenar a vida de acordo com os ensinamentos bíblicos sobre sexualidade e casamento.

Exclusividade

De acordo com Gênesis 2:24, o homem deve deixar pai e mãe. Na época em que o livro foi escrito, presumia­- se que a mulher deixaria a casa dos pais ao se casar, mas Moisés afirmou que, no plano divino, o homem também deveria sair. Ambos devem partir. Isso indica a necessidade de que o casamento seja exclusivo e livre de interferências externas que comprometam a autonomia do relacionamento matrimonial. É importante notar que os textos bíblicos que proíbem a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo não fazem exceções para relacionamentos homossexuais que sejam entre parceiros exclusivos. Todas as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo estão fora da ordem da criação e são condenadas por Deus.

Permanência

Gênesis 2:24 também declara que o homem deve se apegar (estar unido) à sua esposa. A palavra hebraica dabaq sugere a permanência do vínculo: “agarrar-se, aderir, como a pele à carne e a carne ao osso”. No Antigo Testamento, é frequentemente usada como um termo técnico de aliança (ou pacto) para o vínculo permanente de Israel com o Senhor (por exemplo, Dt 10:20; 11:22; 13:4). Em Gênesis 2:24, essa palavra indica o compromisso mútuo do casal expresso em um pacto formal de casamento, semelhante aos “votos matrimoniais” de Adão a Eva (v. 23), enfatizando a devoção e a fidelidade inabalável entre os parceiros. No entanto, a permanência e a fidelidade mútua em casamentos entre pessoas do mesmo sexo não legitimam esses relacionamentos, pois, embora a Bíblia recomende a fidelidade conjugal, ela também proíbe as relações sexuais e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Intimidade

De acordo com Gênesis 2:24, após o marido e a mulher se unirem legalmente no sagrado matrimônio, eles devem se tornar “uma só carne”. Essa expressão refere-se particularmente ao ato de intimidade na relação sexual (cf. 1Co 6:16). A união de “uma só carne” ocorre dentro do contexto da aliança do casamento, conforme o desígnio divino. Ela não se aplica ao sexo pré-marital. A Bíblia descreve pelo menos 12 tipos de relacionamento entre os seres humanos: físico (sexual), de trabalho, emocional, intelectual, espiritual, de crise, de conflito, estético, de compromisso, criativo, recreativo e de comunicação. Muitas dessas relações podem ser legitimamente compartilhadas entre duas pessoas do mesmo sexo em uma dinâmica de profunda amizade e companheirismo (como Davi e Jônatas, e Rute e Noemi). Contudo, o relacionamento sexual é reservado por Deus para a intimidade de um homem e uma mulher no contexto do casamento.

Procriação

A procriação faz parte do projeto divino para a sexualidade humana, sendo uma bênção adicional que deve ser levada a sério e executada de forma livre e responsável, conforme o poder que acompanha a bênção de Deus (Gn 1:26). O relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo subverte a bênção original de poder procriar. Ao mesmo tempo, a sexualidade não pode ser totalmente subordinada à intenção de gerar filhos. A prioridade do propósito unitivo sobre o procriativo é destacada em Gênesis 2:24, em que não há referência à geração de filhos. Essa omissão não nega a importância da procriação, como é evidente em capítulos posteriores das Escrituras. Contudo, ao colocar um “ponto final” após “uma só carne” no versículo 24, a sexualidade ganha significado e valor independentes.

Beleza da sexualidade

De acordo com Gênesis 1:31, “Deus viu tudo o que havia feito” – inclusive a sexualidade humana – “e eis que era muito bom!” A expressão hebraica tov me’od (“muito bom”) conota a essência da bondade, integridade, adequação e beleza. Desde o início, Deus declara que o sexo é bom, muito bom, e faz parte do perfeito projeto divino, sendo um aspecto fundamental da existência humana.

Após a formação da mulher, o Senhor “a levou até” o homem (Gn 2:22). O próprio Criador oficializou o primeiro matrimônio! A sexualidade dentro do casamento monogâmico heterossexual é saudável e santa, pois foi inaugurada por Deus e santificada por Sua presença, assim como o sábado (Gn 2:3).

Uma palavra final sobre o ideal edênico de Deus para a sexualidade nos relatos da criação é encontrada em Gênesis 2:25: “Ora, um e outro, o homem e a sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam” – ou mais precisamente, “não estavam envergonhados diante um do outro”. O relacionamento sexual foi concebido por Deus como uma experiência de amor, prazer, celebração e união entre marido e mulher, uma bênção a ser desfrutada sem medo, inibição, vergonha ou constrangimento. O projeto edênico de Deus para a sexualidade é, de fato, belo, alegre e incrível!

A graça de Deus

O Senhor não abandonou aqueles que se afastaram do Seu plano e cometeram pecados sexuais, sejam eles heterossexuais ou homossexuais. Todos nós somos pecadores e necessitamos da graça de Deus (Rm 3:23). Todos os pecados, mesmo os mais fortemente condenados, podem ser perdoados por Ele (1Jo 1:9). O Senhor promete nos “revirginar” espiritualmente, como fez com o Israel arrependido (Os 2:14-23; cf. Ap 14:4). A igreja deve ser um hospital para pecadores, oferecendo uma família espiritual “segura”, incentivadora e empática para aqueles que escolheram seguir a vontade de Deus (Mc 10:29, 30). Precisamos ajudar as pessoas envolvidas em atividades sexuais com pessoas do mesmo sexo e transexuais a abandonarem essas práticas e buscar uma vida casta e a transformação espiritual (1Co 6:11). É essencial “amar o pecador e odiar o pecado” da hipocrisia e insensibilidade. Deus promete enviar Sua dádiva de amor – “labaredas do Senhor” (Ct 8:6, NBV) – para incendiar nosso coração, lares e igrejas, levando-nos “de volta ao Éden” em nossa experiência de sexualidade, inflamados por Sua chama sagrada! 

Richard M. Davidson é professor de exegese do Antigo Testamento no Seminário Teológico da Universidade Andrews (EUA)

(Artigo publicado na edição de novembro/2024 da Revista Adventista / Adventist World)

Última atualização em 11 de novembro de 2024 por Márcio Tonetti.