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As mudanças provocadas e aceleradas pela pandemia abrem caminhos para a missão adventista

Marcelo Dias
Foto: Adobe Stock

A pandemia do novo coronavírus tem desafiado significativamente a religião e suas práticas, como o culto, a vivência comunitária, o ensino, a pregação e também a missão. Apesar de ninguém saber exatamente como a sociedade se reorganizará depois dessa primeira onda, líderes que atuam em vários segmentos da sociedade já começam a planejar os próximos passos. E a Igreja Adventista deve estar atenta à condução de Deus e preparada para aproveitar esses movimentos.

De dimensões sem precedentes, nos tempos modernos, essa pandemia levou a uma reconfiguração do cotidiano, marcada pelo distanciamento social e a quarentena de boa parte da população. Por causa desse esforço inicial de conter o avanço do vírus e evitar um colapso do sistema de saúde, todas as dimensões da vida foram afetadas, como o trabalho, a educação, o lazer e a religião. Com os templos fechados, as igrejas tiveram que se “reinventar”.

A realização de cultos via internet talvez tenha sido a mudança mais emblemática dessa “reinvenção”. Segundo uma pesquisa divulgada no fim de abril pelo Pew Research Institute, 91% das igrejas norte-americanas fecharam as portas para o público. Porém, 80% dos cristãos assíduos entrevistados disseram que suas congregações estavam transmitindo o culto pela internet ou TV, e 57% desses adultos estavam acompanhando essa programação.

Contudo, a quarentena não teve impacto somente nos cultos, mas também na coleta de dízimos e ofertas, reuniões de oração, nos estudos bíblicos, concertos musicais e nas mobilizações missionárias. Até velórios e batismos tiveram que ser adaptados. No geral, as igrejas tiveram que se apresentar na internet, abraçar as mídias sociais, arriscar mudanças inovadoras e encarar o resgate de sua essência.

SINAIS DA MUDANÇA

Uma das explicações para a religião é o fato de ela ser um fenômeno social relacionado ao seu contexto, tanto como causa quanto consequência. Portanto, diante da realidade atual e das projeções para o “novo normal”, quais elementos de um futuro próximo deveriam chamar a atenção da igreja para novas possibilidades de testemunho?

1. Afeto e intimidade

Neste período de pandemia, deixaram de existir para muitas pessoas a distância e a falta de tempo que roubavam a oportunidade ou serviam de desculpa para que familiares e amigos não convivessem. Ao permanecerem confinadas juntas, as famílias tiveram que encarar suas dificuldades e questões não resolvidas, optando ou não por alimentar o afeto e desenvolver maior intimidade.

De acordo com os portais de notícias G1 e BBC Brasil, a metrópole chinesa Xi’am registrou um aumento drástico de divórcios devido ao confinamento. E no Brasil, bem como em outras partes do mundo, o longo período de quarentena tornou ainda mais vulneráveis as mulheres vítimas de violência doméstica. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Polícia Militar paulista, por exemplo, registrou o crescimento de 45% no número de atendimentos em março de 2020 em relação a março de 2019.

2. Solidariedade e vulnerabilidade

No contexto da pandemia, muitas iniciativas de solidariedade têm demonstrado o melhor do ser humano. Desprendimento, sacrifício e amor ao próximo marcaram muitas ações voltadas, por exemplo, aos idosos, às pessoas em situação de rua e com dificuldades emocionais.

Essas manifestações de empatia em situações de crise são estudadas por pesquisadores há um bom tempo. No século passado, por exemplo, quem se debruçou sobre esse tema foi o antropólogo britânico Victor Turner, no livro The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. Ele apontou que, em contextos de liminaridade, como desastres naturais e guerras, as pessoas podem desenvolver o que ele chamou de communitas, uma reestruturação das relações sociais com base na empatia. No entanto, o problema é que a maioria das pessoas volta a viver com relativa indiferença quando a situação é normalizada.

A pandemia tem testado nossa empatia e parece que o mundo pós-Covid-19 fará o mesmo também. A desigualdade social, por exemplo, tende a se aprofundar. A previsão da ONU para 2020 é de que 265 milhões de pessoas passem fome, o dobro daquelas que estavam em situação de miséria em 2019. O desemprego é outro fantasma que deve assombrar mais gente daqui para a frente. No Brasil, o número de desempregados já ultrapassa os 13 milhões e pode chegar a 40 milhões, segundo algumas previsões. De acordo com o IBGE, o índice de desemprego já havia crescido em 14 das 27 unidades da Federação no primeiro trimestre deste ano. Em alguns estados, como o Amapá, essa taxa está em torno de 20%.

3. Longevidade

Logo no início da pandemia, os maiores cuidados se voltaram para as pessoas com mais de 60 anos de idade, faixa etária que faz parte do grupo de risco. E a crise sanitária nos fez pensar em algumas questões relacionadas aos idosos, como o acesso deles ao serviço de saúde e aos recursos tecnológicos, além do fato de como a pobreza os atinge de modo específico.

Com o aumento da longevidade no Brasil, a estimativa do IBGE é que, até 2060, de cada quatro brasileiros, um será idoso. Isso significa dizer também que, se a taxa de expectativa de vida continuar subindo, os brasileiros que hoje vivem 72 anos poderão chegar aos 77, e as mulheres saltariam de 79 para 84 anos. A previsão é que em menos de 20 anos haverá mais idosos do que crianças no Brasil.

Esse fenômeno certamente levaria a uma redefinição de quando começa a velhice, algo que já ocorre em outras sociedades mais longevas. Vale lembrar que os idosos do século 21 são pessoas ativas, que consomem, estão no mercado de trabalho e são, muitas vezes, responsáveis pelo sustento da família.

4. Sociedade virtual

Estudiosos têm observado que cada geração tem sido marcada por uma crise. Os baby boomers lidaram com a guerra do Vietnã; a geração X, com a epidemia da Aids; a geração Y ou millennials, com o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 e a crise econômica de 2008. Agora, a pandemia do novo coronavírus seria um fator definidor para a geração Z, aqueles que nasceram depois de 1995.

A crise atual deve influenciar esses jovens e futuros adultos a assumir um posicionamento político mais independente, uma postura mais inclusiva e uma atitude ainda mais criativa e empreendedora. Além disso, a geração Z deverá apresentar um engajamento maior no voluntariado.

No entanto, tudo isso acontecerá numa dinâmica diferente do passado, pois as pessoas da geração Z (12 a 25 anos) e Alpha (até 11 anos) nasceram no mundo digital. Não sabem o que é a sociedade pré-tecnologia digital. Para eles, computadores, tablets e celulares são extensões do próprio corpo e as lentes pelas quais conhecem o mundo e se relacionam com ele. Para essa moçada, as dimensões presencial e virtual são uma realidade integrada.

5. Ciência e religião

A discussão sobre os pontos de convergência e divergência entre ciência e religião não é nova. Porém, durante a pandemia, em alguns contextos mais do que em outros, o posicionamento de líderes políticos e a mobilização de movimentos negacionistas confrontaram as instruções médicas e sanitárias. Orientações sanitárias majoritárias, com base em modelos epidemiológicos, indicavam o distanciamento social como medida de prevenção.

O discurso religioso apareceu nesse contexto, muitas vezes, como argumento dos posicionamentos anticientíficos. Argumentou-se, por exemplo, que as orientações científicas deveriam ser desconsideradas e substituídas pela confiança em Deus, por meio do jejum e da oração. Essa atitude foi fortalecida pelos embates provocados por algumas igrejas evangélicas que se recusaram a aderir às medidas de distanciamento social.

6. Responsabilidade ambiental

A relação do ser humano com a natureza também foi um tópico que ficou em evidência na pandemia. Por um lado, tudo leva a crer que foi o contato de seres humanos com a carne de animais silvestres que gerou essa pandemia; por outro lado, a quarentena diminuiu a poluição de várias metrópoles e destinos turísticos, mostrando belezas naturais esquecidas ou desconhecidas. Enquanto os humanos se confinaram, a natureza se revelou.

Dessa maneira, o confinamento tem nos levado a refletir sobre as consequências do consumismo sobre o planeta. Não seria essa uma chance de desenvolver novos hábitos que valorizem e protejam os ecossistemas, redefinindo nossa relação com a criação?

OPORTUNIDADES PARA A MISSÃO

Os mais pessimistas imaginam que o ser humano pós-pandemia não será muito diferente de antes. Esse grupo sustenta sua opinião com base nas epidemias anteriores enfrentadas pela humanidade, que não teriam tido um impacto significativo em mudar quem somos.

1. Sensibilidade espiritual

Um olhar otimista, no entanto, identifica oportunidades no contexto pós-pandemia. Talvez a maior delas seja a percepção de que as pessoas reavaliarão suas crenças e valores. Durante o confinamento, é provável que muitos passaram a ter mais tempo para retomar projetos e passatempos esquecidos, enfrentar dramas pessoais e refletir sobre decisões e relacionamentos. Em momentos assim, somos desafiados a avaliar a coerência da nossa cosmovisão, ficamos mais inclinados a repensar posicionamentos e a nos abrir para novos conhecimentos e experiências, inclusive religiosos.

Um olhar otimista sobre o movimento atual indica que há uma grande oportunidade de reflexão, reavivamento e mobilização da igreja

Um contexto que foge ao controle de todos faz as pessoas se questionarem a respeito do sobrenatural. Uma evidência disso é que a pesquisa no Google sobre o termo “oração” nunca foi tão grande como agora no contexto da Covid-19. O estudo é da professora ­Jeanet Sinding Bentzen, do departamento de Economia da Universidade de Copenhagen, na Dinamarca. A pesquisa de Bentzen mostrou que as pessoas estão mais sensíveis às questões existenciais e espirituais.

Aquele levantamento divulgado pelo Pew Research Institute, já mencionado aqui, revela também que 25% dos entrevistados disseram que sua fé havia sido fortalecida nesse contexto de pandemia. Ao que parece, em tempos de crise, quando somos privados de certas facilidades e confortos, há um retorno para o que é essencial. Isso inclui equilibrar a rotina e rever a escala de valores em relação a Deus, a si mesmo e à família.

Esse cenário se mostra terreno fértil para uma igreja que está atenta e preparada para responder às necessidades do seu bairro e cidade. Para tanto, é importante notar que não é o fato de as pessoas se reunirem semanalmente no mesmo templo, e por muitos anos, que faz desse grupo uma igreja. A consciência do coletivo é construída por meio de relacionamentos significativos, valores em comum e o cultivo de um senso de missão que se traduz em serviço ao próximo.

2. Disposição para o serviço

Especialmente dos cristãos, espera-se que a solidariedade seja parte da sua identidade. Por isso, há uma expectativa de que as pessoas que redescobriram a alegria e o sentido da vida no serviço, continuem vivendo assim no período pós-­pandemia. Sabemos do poder transformador desse envolvimento na missão.

Mas isso ocorre quando as pessoas entendem por missão falar de Jesus e demonstrar Seu amor, ou seja, não fazendo uma dicotomia entre servir e salvar ou entre proclamar a boa notícia e praticar as boas obras. Até porque essas duas dimensões são faces inseparáveis da mesma moeda. Por essa razão, há motivos para acreditar que, depois dessa crise, o apoio para pessoas em situação de vulnerabilidade social deverá ser uma das prioridades da nossa ação missionária.

Entre os grupos mais fragilizados por esse contexto estão os enlutados da Covid-19 e os idosos. A maior longevidade da população brasileira implicará, entre outras coisas, que as gerações passarão a conviver mais, inclusive na igreja. Pouco a pouco, percebe-se que as denominações e congregações vão dedicando mais atenção aos idosos. Porém, não basta pensar nisso apenas como um ministério específico, mas, sim, como uma visão que integre os mais experientes em todas as atividades da igreja, o que inclui a missão.

Outra oportunidade que se vislumbra em curto prazo é que as gerações mais antigas passarão a perceber melhor a dimensão virtual da vida. Durante a pandemia, ficou mais evidente que a sociedade atual é dependente, em grande medida, da internet e das mídias sociais para trabalhar, se entreter, aprender e se relacionar.

3. Uso das tecnologias digitais

Mesmo os mais céticos ou resistentes ao mundo digital foram surpreendidos com o fato de que essas novas tecnologias têm mais a nos oferecer do que eles imaginavam. Apesar de não substituir a dimensão presencial, há muito de real nos relacionamentos desenvolvidos virtualmente. Afinal, as mídias sociais não são um lugar só para compartilhar informação, mas, acima de tudo, para exercitar a sociabilidade.

Desmistificando o pessimismo tecnológico de alguns cristãos tradicionalistas, a igreja tem a oportunidade de promover os relacionamentos para além do templo e dos dias de culto, colaborando assim para desconstruir a ilusória divisão entre a igreja e o mundo. Olhar para essa realidade de maneira diferente ajudará as pessoas a desenvolver uma espiritualidade mais sadia e integral, que permeie todos os dias da semana e todas as dimensões da vida.

Nos Estados Unidos, pesquisas do Instituto Barna já apontavam, antes da pandemia, que mais da metade dos entrevistados da geração Y já se dividia entre a frequência a cultos presenciais e on-line. Além disso, 44% deles usavam a web para postar ­conteúdos religiosos e 41% para conversar com outros a respeito de espiritualidade.

4. Potencialização do testemunho na esfera pública

Por fim, no debate a respeito de ciência, política e religião, talvez o mais preocupante não seja a divergência de opiniões, mas o extremismo e o desequilíbrio adotado em alguns discursos. Esse tópico exige mais reflexão dos adventistas, porque de longa data temos procurado harmonizar a Bíblia e a ciência, por compreendermos que Deus tem usado essas duas fontes de conhecimento para abençoar Seus filhos.

Porém, no Brasil, especialmente os evangélicos pentecostais têm ganhado visibilidade no espaço público e na política, assumindo um discurso que nem sempre contribui para a boa reputação da fé que professam. Na verdade, muitas vezes, ao defender argumentos anticientíficos e antidemocráticos, esses grupos têm reforçado o estereótipo de que evangélicos são homofóbicos, irracionais, exclusivistas, incoerentes e machistas. Esse cenário coloca ainda mais responsabilidade sobre o testemunho cristão.

O mundo pós-pandemia oferece oportunidades para que novas lideranças espirituais surjam, levando em conta as demandas do nosso tempo e as causas dignas do nosso engajamento. Minha sugestão é que você proponha um diálogo na sua igreja, cuja pauta sejam as oportunidades de missão tratadas neste artigo. Talvez estes tópicos possam servir para vocês como ponto de partida, a fim de identificarem pontes de conexão com a comunidade.

SUA TAREFA NESTE TEMPO

Nas crises, Deus tem oferecido oportunidades para que o mundo reflita sobre sua condição, reconheça a soberania divina, decida seguir Seus caminhos e se mobilize para viver Sua vontade. Jesus, por ocasião da Sua ascensão, explicou que o estabelecimento final do Seu reino, no que se refere ao tempo, não poderia ser completamente compreendido pelos discípulos naquele momento. Talvez o mesmo se aplique a nós (Mt 24:36). Porém, tanto para os discípulos do passado como para os do presente, a tarefa mais urgente parece ser a mesma: ser testemunhas Dele “em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da Terra” (At 1:8, NVI).

A seguinte citação de Ellen White, escrita em 1902, num conselho às editoras adventistas, pode nos servir de lembrete da nossa responsabilidade missionária como igreja: “Os adventistas do sétimo dia foram escolhidos por Deus como um povo peculiar, separado do mundo. Com a grande talhadeira da verdade Ele os cortou da pedreira do mundo, e os ligou a Si. Tornou-os representantes Seus, e os chamou para ser Seus embaixadores na derradeira obra de salvação. O maior tesouro da verdade já confiado a mortais, as mais solenes e terríveis advertências que Deus já enviou aos homens, foram confiadas a este povo, a fim de serem transmitidas ao mundo” (Testemunhos Seletos, v. 3, p. 140).

Além de compreender como interpretar profeticamente o tempo atual, é importante refletir sobre esses elementos escatológicos à luz da missão. Sua sensibilidade apocalíptica só estará bem ajustada se, em tempos de crise, você se tornar uma testemunha do amor de Deus.

Como destacou o falecido missiólogo britânico Lesslie Newbigin, no livro The Household of God (Friendship Press, 1954), uma escatologia saudável leva à obediência missionária. Por sua vez, Ellen White, ao visitar Copenhagen, na Dinamarca, em 1886, e refletir sobre a evangelização das grandes cidades no tempo do fim, escreveu: “Se já houve um tempo em que convinha que cada pessoa que teme a Deus refletisse seriamente, este tempo é agora, quando a piedade pessoal é essencial. Deve ser feita a indagação: ‘O que eu sou, e qual é minha obra e missão neste tempo?’” (Eventos Finais, p. 73).

Portanto, um olhar otimista sobre o momento atual indica que há uma grande oportunidade de reflexão, reavivamento e mobilização da igreja.

MARCELO DIAS é doutor em Missiologia pela Universidade Andrews (EUA) e professor na Faculdade de Teologia do Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)

(Matéria de capa da edição de junho de 2020 da Revista Adventista)

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Última atualização em 5 de junho de 2020 por Márcio Tonetti.