Entrevista com Desmond Doss

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Revista resgata entrevista exclusiva com o herói adventista que salvou dezenas de soldados feridos na II Guerra Mundial

Desmond-Doss-cortesia-Desmond-Doss-Council-1Realizada em março de 1987, esta entrevista concedida por Desmond Doss à imprensa norte-americana traz detalhes da trajetória do soldado que foi à guerra sem armas e enfrentou duras batalhas para se manter fiel às suas convicções religiosas. Condecorado com a Medalha de Honra do Congresso, ele conta como Deus o livrou da morte e lhe concedeu a oportunidade de testemunhar para colegas que um dia o trataram com desprezo por causa de sua fé. A conversa foi resgatada e recentemente publicada na versão em espanhol da Revista Adventista.

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Como entrou para o exército americano?

Ingressei no serviço militar como a maioria. Trabalhava num estaleiro em Newport News, Virgínia (EUA), estava bem de saúde e sentia ser uma honra servir a Deus e à minha pátria. Porém, acabei ficando na categoria de “objetor de consciência”, ou seja, entre aqueles que servem o exército, mas não combatem nas batalhas, não portam armas e não matam. Como adventista do sétimo dia, não concordava em tirar vidas humanas. Sinto que a vida vem de Deus e não estava em minhas mãos o poder de tirá-la. Recordo que, quando eu era menino, minha mãe tinha em casa um quadro ilustrado dos Dez Mandamentos no qual havia uma imagem de Caim, que matou seu irmão Abel. E eu me preguntava como era possível que alguém fizesse algo assim contra seu próprio irmão. Isso me impressionou muito. Além disso, sempre me interessei pelo trabalho médico e por isso fiz o curso de primeiros socorros na Cruz Vermelha, para poder servir melhor como soldado.

Nessa época, havia muitos não combatentes no serviço militar?

Não sei dizer quantos havia, mas sei que os não combatentes não tinham boa reputação. Quando eu entrei para o serviço militar, havia outros dois. Desconheço o que houve com eles. Quanto a mim, ameaçaram-me dizendo que me mandariam para um acampamento de não combatentes, mas eu disse para eles que não era esse tipo de soldado, pois considerava uma honra servir ao meu país e a Deus. A única diferença era que eu não queria tirar vidas, mas salvá-las. No entanto, o exército não sabia bem em que consistia a classificação de não combatente e logo fui parar na infantaria. Eu não aceitava portar armas nem passar pelo treinamento previsto. Porém, naquela categoria, pude entrar no corpo médico militar.

Enquanto os outros soldados eram treinados para a infantaria, eu aprendia sobre medicina. Depois, quando saímos para o campo, com o pouco que tínhamos estudado, tivemos que usar os colegas da infantaria como nossas cobaias.

Fui destinado à Divisão da Estátua da Liberdade, em Nova York. Ali, de alguma forma, forçaram-nos a fazer as coisas de um jeito diferente, e, mesmo na categoria de não combatente, eu era parte do exército. Lá costumavam dar sumiço em minhas botas enquanto eu estava orando de noite e faziam todo tipo de piada e comentários maldosos sobre mim. No entanto, uma coisa aconteceu: depois de um tempo, perceberam que eu tinha princípios firmes. Aquilo era uma questão de consciência para mim. Gosto de dizer que sou um servidor com princípios e não apenas um não combatente, porque eu, como todos os demais, creio na importância de servir ao nosso país de todas as formas possíveis.

Porém, eu me deparei com outro problema. Eu estava lotado na Companhia B da Divisão 307. O comandante era um militar com todas as letras. Ele não pedia aos seus homens que fizessem algo que ele mesmo não se dispusesse a fazer. No entanto, eu me neguei a obedecer uma de suas ordens. Ele se alterou comigo e me ameaçou dizendo que me levaria perante o tribunal militar.

Conte-nos o que aconteceu no despenhadeiro de Okinawa.

Quando chegamos ao paredão principal, o capitão Vernon me disse: “Doss, você sabe que corre perigo aqui, mas se importaria em ir até o lugar em que os outros homens estão no despenhadeiro?” Eu disse que iria, mas que primeiro gostaria de ler a minha Bíblia e terminar a minha meditação diária. Quando eu terminei, corri para lá. Em primeiro lugar, fui para a base ao pé do despenhadeiro e falei com o tenente que eu tinha fé na oração como a maior força salvadora que existe, e que nenhum homem deveria subir o paredão por aquela rede de carga, usada como escada. O tenente então chamou todo o pelotão e disse que orássemos. Então eu pedi a Deus que desse sabedoria e entendimento ao tenente para que ele nos ajudasse a tomar todas as precauções e medidas de segurança necessárias a fim de podermos retornar com vida, se fosse essa a Sua vontade.

Creio de todo o coração que todos os meus colegas de pelotão oraram comigo naquele momento, porque não há incrédulos quando se trata de enfrentar a morte. Sei disso porque alguns deles vieram a mim e me pediram que orasse por eles, mesmo os que tinham me perturbado ou zombado de mim antes.

Quando acabei de orar, subimos, avançando contra os postos japoneses. Logo ficamos encurralados e não podíamos mais nos mexer. Foi a pior coisa que já vi. Então o batalhão quis saber quantas baixas havíamos tido. Não tínhamos sofrido nenhuma! Eu lhes transmiti uma mensagem informando que estávamos bem. Não passou muito tempo e nos avisaram que tivéramos muitas baixas. Imagine o que é estar encurralado, sem poder se mover e receber esse tipo de notícia! Durante aqueles dias, a batalha foi muito dura. Houve muitas baixas. Decidiram que eu era a pessoa indicada para resgatar uma centena de homens feridos e eu lhes disse que não havia como fazer isso. Mas eu fiz. Quiseram saber quantos eu tinha conseguido resgatar. Eu disse que não sabia. Pensei que fossem uns 50, porém, segundo a lista oficial, foram 75!

Como salvou essas vidas?

Se Deus não tivesse Se levantado em meu favor, eu não sei como teria tirado todos aqueles homens de um despenhadeiro como aquele. Só dispunha de uma corda, que era para içar as munições e suprimentos até o topo do penhasco. Era preciso baixar todos os feridos lá de cima. Quando cheguei onde os homens estavam, atendi primeiro os que tinham ferimentos mais graves. Havia 155 homens e eu era o único médico. Era uma tarefa humanamente impossível, por isso quero dar a Deus a glória que Lhe é devida. E há uma razão pela qual quero enfatizar isso. Ao resgatar aqueles homens, ao tentar baixá-los do alto do despenhadeiro, a vida de todos corria perigo. Estávamos a poucos metros dos japoneses, que nos lançavam granadas o tempo inteiro. As balas também passavam raspando. Agradeço a Deus porque nessa terrível experiência do despenhadeiro eu nem sequer fui ferido. Na guerra, fui ferido quatro vezes, mas não ali. Humanamente falando, era impossível resgatar tanta gente daquele lugar escarpado sem ser atingido pelo ataque japonês. O normal seria eu ter morrido ali, mas eu nem mesmo fui ferido!

Pelo que entendi, em determinado momento pensaram que você fosse um soldado japonês. Como foi isso?

Esse foi outro milagre. Fiquei no alto do despenhadeiro até que tirei dali o último dos homens feridos. Orei e tenho certeza de que minha esposa, minha mãe e muitos outros estavam orando por mim também. Eu sabia que Deus estava comigo. Não sentia que fossem me matar. Pensei que, se eu pudesse salvar só mais um homem, tudo valeria a pena. E então eu voltava para lá e continuava; sempre pensando que podia salvar só mais um. Foi assim até que, finalmente, resgatei o último combatente.

Que tipo de ferimentos tinham?

A maioria deles tinha ferimentos de bala e de estilhaços. Um coronel tinha uma espécie de projétil atravessado no peito. Eram feridas muito graves. Depois, percebemos que os japoneses nos deixaram ganhar muito terreno no alto daquele despenhadeiro para que nos animássemos, mas depois eles nos detonaram. Eles conheciam muito bem nossa localização. Lançavam-nos bombas. Por via aérea, eles quase explodiram vários soldados, assim como membros da equipe médica. As explosões arrancavam mãos, pernas…

Se você tivesse que dar um conselho aos médicos de hoje que estão em uma guerra, qual seria?

Embora não seja possível salvar todos, é preciso se esforçar para isso. Além disso, creio que não somente devemos ajudar nas emergências médicas, mas também prestar assistência espiritual, como os capelães. Às vezes é preciso ajudar a curar a alma das pessoas também. Em especial quando você sabe ou percebe que aquele ferido não vai sobreviver. Portanto, você deve ser capaz de dizer palavras de conforto a essas pessoas. Sinto que meu trabalho foi muito gratificante. Não tenho pesares. Simplesmente, estou muito agradecido por ter tido a honra e o privilégio de servir a Deus e ao meu país. E há algo mais que aprendi: O que Deus fez comigo, Ele pode fazer também com outras pessoas.

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.