A visão de Ellen White sobre a questão racial nos Estados Unidos
Roy Branson

Como pode ser solucionada a aparente contradição nas seguintes declarações de Ellen White?
“Cristo veio à Terra com a mensagem de misericórdia e perdão. Lançou o fundamento de uma religião pela qual judeus e gentios, negros e brancos, livres e escravos são ligados em uma irmandade comum, reconhecidos como iguais à vista de Deus” (Testemunhos Para a Igreja [CPB, 2021), v. 7, p. 184).
“As pessoas de pele negra não devem insistir em serem colocadas em posição de igualdade com os de pele branca” (Testemunhos Para a Igreja [CPB, 2021), v. 9, p. 167).
Ellen White era incoerente? A igualdade étnica era sua verdadeira postura? Se sim, por que ela exigiu, nos Testemunhos Para a Igreja, volume nove, que “a melhor coisa a ser feita é prover aos negros que aceitam a verdade os seus próprios locais de adoração, nos quais possam eles conduzir seus cultos? (p. 161).
A fim de entender as declarações de Ellen White que aparentemente endossam a segregação no início do século 20, é necessário recriar seu contexto. Quais eram os pontos de vista raciais predominantes na época? O que afirmavam os pioneiros adventistas a respeito das etnias? Quais eram as mudanças nas condições sociais e políticas dos Estados Unidos no século 19 e no início do 20? Encontrar respostas para essas perguntas leva à conclusão de que, para seus contemporâneos, Ellen White nunca poderia ter parecido preconceituosa.
Atualmente, denunciar a escravidão e seus defensores não parece algo revolucionário. No entanto, a maioria não se opunha à escravidão nos Estados Unidos em meados do século 19. A tolerância de membros obedientes e regulares da Igreja Metodista com a escravidão dividiu a denominação em 1844. Um ano depois, a escravidão separou os batistas. Essas denominações forneceram a maioria dos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia que, naquela ocasião, era composta predominantemente por pessoas do Norte do país. Enquanto muitos cristãos defendiam a escravidão ou insistiam que se tratava de uma questão econômica ou política, Ellen White chamou a escravidão de “pecado da pior espécie” (Testemunhos Para a Igreja [CPB, 2021], v. 1, p. 323). Além disso, ela exigiu a remoção dos defensores públicos da escravidão do rol de membros do movimento adventista.
Posição firme
“Você nunca olhou a escravidão sob a verdadeira luz, e suas concepções sobre esse assunto o impeliram para o lado da Rebelião, a qual foi incitada por Satanás e suas forças. Suas opiniões sobre a escravidão não podem se harmonizar com as verdades sagradas e importantes para este tempo. Você tem de submeter seus pontos de vista ou abrir mão da verdade. Ambos não podem ser apreciados pelo mesmo coração, porque estão em guerra entre si […]. A menos que você desfaça o que realizou, será dever do povo de Deus retirar publicamente sua simpatia e companheirismo do irmão para poupar uma impressão duvidosa com respeito a nós como um povo. Precisamos tornar conhecido que não aceitamos pessoas assim em nosso meio, e que não compactuamos com elas na igreja” (ibid.).
Em uma época na qual a escravidão era uma questão aberta para os norte-americanos, Ellen White declarou que os adventistas que sustentavam pontos de vista a favor da escravidão eram racistas.
Seria possível denunciar a escravidão com as fortes expressões usadas por Ellen White e ainda assim não se identificar como abolicionista. É verdade que os adventistas eram abolicionistas em uma época na qual a maioria dos opositores da escravidão defendia outras soluções. Alguns dos que a atacavam propunham a dispersão dos negros pelo país. Outros sugeriam a criação de “estados africanizados” na região sudeste (Robert F. Durden, “Ambiguities in the Antislavery Crusade of the Republican Party”, em The Antislavery Vanguard [Princeton University Press, 1965], p. 375, 376).
Até 1833, a maioria dos opositores da escravidão apoiava a colonização dos negros na África, na América Central ou nas ilhas do Caribe. Em diferentes momentos de sua história, a Sociedade de Colonização Americana se orgulhava de ter entre seus membros o secretário da Fazenda, William H. Crawford, o presidente da Câmara dos Deputados, Henry Clay, e os ex-presidentes da República James Madison e James Monroe (P. J. Staudenraus, The African Colonization Movement, 1816-1865 [Columbia University Press, 1961]).
O presidente Abraham Lincoln, em agosto de 1862, convocou um grupo de negros livres à Casa Branca e os incentivou a apoiarem a colonização. Até o fim da Guerra Civil Americana, ele acreditava que a colonização ajudaria a aliviar o problema étnico nos Estados Unidos (John Hope Franklin, From Slavery to Freedom [Knopf, 1956], p. 281). Outra indicação de que a abolição não era sinônimo de sentimento antiescravagista é o fato de que a posição oficial do Partido Republicano não defendia a abolição, mas a não extensão da escravidão para os novos Estados (Durden, “Ambiguities”, p. 365).
Mesmo no Norte, os abolicionistas eram considerados extremistas. Poucos dias após a inauguração do Pennsylvania Hall, edifício construído especialmente para as reuniões abolicionistas na Filadélfia, uma turba de escravagistas o incendiou até os alicerces. William Lloyd Garrison, homenageado hoje com uma estátua em Boston, foi atacado por moradores da cidade devido à sua militância. Como afirmou um historiador: “Ser abolicionista em Boston, Filadélfia ou Cincinnati significava cortejar o ostracismo social, a ruína nos negócios e a agressão física” (Frank Thistlethwaite, America and the Atlantic Community [Harper and Row, 1963], p. 116).
Entre os diversos grupos antiescravagistas, os adventistas se identificavam com a minoria radical e abolicionista
No Norte e no Sul, os abolicionistas eram considerados quase tão extremistas quanto os manifestantes atuais nas cidades norte-americanas. “O movimento abolicionista nunca se converteu no principal canal do sentimento antiescravagista do Norte. Em 1860, continuava sendo o que havia sido nos anos 1830: a pequena, mas não calada, voz da reforma radical” (Martin Duberman, “Northern Response to Slavery”, em The Antislavery Vanguard, p. 395).
Entre os diversos grupos antiescravagistas, os adventistas se identificavam com a minoria radical e abolicionista. Sojourner Truth, uma das heroínas negras da abolição, visitou uma reunião campal milerita em 1843, apesar de discordar do movimento. Anos mais tarde, estabeleceu-se em Battle Creek, onde fez amizade com adventistas do sétimo dia. Ali, os primeiros estudantes da Faculdade de Battle Creek a visitavam com frequência. A Review and Herald publicou ao menos uma vez sua biografia, escrita por Frances Titus. José Bates, o responsável por apresentar teologicamente a doutrina do sábado para os adventistas, inicialmente apoiou a Sociedade de Colonização Americana e, mais tarde, ajudou a fundar a sociedade abolicionista em sua cidade natal (As Aventuras do Capitão José Bates [APL, 2017], p. 218, 219, 221-224).
Mesmo nesse segmento reformista extremo da sociedade norte-americana, alguns eram mais radicais que outros, e os adventistas estavam entre os mais ativistas. “Os abolicionistas também estavam divididos sobre o assunto de dedicar tempo e energia para ajudar os escravos fugitivos” (Larry Gara, “Who was an abolitionist?”, em The Antislavery Vanguard, p. 39). Preeminentes adventistas não tinham essas objeções. John Preston Kellogg, pai do doutor John Kellogg, foi um dos fundadores da Associação de Publicações Adventista do Sétimo Dia e membro da igreja até o fim de sua vida. Ele usou sua fazenda no Michigan para hospedar os escravos que fugiam de seus antigos donos (Seventh-day Adventis Encyclopedia [Review and Herald, 1966], p. 650, 1060).
John Byington, primeiro presidente da Associação Geral, sede mundial da igreja, havia abandonado a Igreja Metodista Episcopal porque ela não tinha se posicionado contra a escravidão. Em sua fazenda em Buck’s Bridge, no estado de Nova York, ele mantinha uma estação ferroviária subterrânea, transportando ilegalmente escravos fugitivos do Sul para o Canadá (Seventh-day Adventist Encyclopedia, p. 181).

Qualquer um que pense que esses homens eram aberrações na Igreja Adventista deve se lembrar do que a própria Ellen White disse: “Não devemos obedecer à lei de nossa terra que exige entregarmos um escravo ao seu senhor, e precisamos sofrer as consequências de violar essa lei” (Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 184). Embora até mesmo alguns abolicionistas se recusassem a violar a lei do escravo fugitivo, Ellen White defendia a desobediência a esse estatuto federal. Ela fez isso com base no fato de que essa lei entrava em conflito “com a Palavra e a lei de Deus” (ibid.). É possível que ela tivesse em mente Deuteronômio 23:15: “Não entreguem ao seu senhor o escravo que, tendo fugido dele, se refugiar entre vocês.”
A posição de Lincoln
Quando o Norte elegeu Lincoln, a lei de escravos fugitivos ainda era a regra no país. Em seu primeiro discurso, o presidente fez todo o possível para prometer que faria cumprir essa lei especificamente. Ele também recordou ao país que não havia votado a favor da abolição. Citando o próprio discurso de campanha, prometeu mais uma vez que não tinha intenção de “direta ou indiretamente, interferir na instituição da escravidão nos estados onde ela existe. Creio que não tenho nenhum direito legal para fazê-lo e não tenho nenhuma inclinação para fazê-lo” (Roy P. Basler, ed., The Collected Works of Abraham Lincoln [Rutgers University Press, 1953], v. 4, p. 263).
Mesmo quando a guerra eclodiu, Lincoln se recusou a proclamar a emancipação. Na verdade, ele ordenou aos oficiais da União que parassem de abrigar “escravos fugitivos” para o avanço dos exércitos da União. Líderes abolicionistas como Wendell Phillips, Henry Sumner e William Garrison atacaram o presidente e sua administração (Franklin, From Slavery to Freedom, p. 273). Ellen White também reclamou que “milhares foram induzidos a alistar-se com a ideia de que essa guerra era para eliminar a escravidão. Agora, porém, veem que foram enganados e que o objetivo desta guerra não é abolir a escravidão, mas preservá-la exatamente como é” (Testemunhos Para a Igreja, v. 1, p. 234).
Não apenas alienaram cidadãos norte-americanos, mas também possíveis aliados. “Foi-me mostrado que se o objetivo dessa guerra tivesse sido eliminar a escravidão, se o Norte o desejasse, a Inglaterra se disporia a ajudar. Mas a Inglaterra bem sabe das intenções existentes no governo; e que a guerra não é para acabar com a escravidão, mas somente preservar a União, o que não é de seu interesse” (ibid., p. 237).
O fracasso do Norte em declarar a emancipação dos escravos como seu objetivo não só levou à decadência moral e à perda de aliados, como ainda pior, à subversão aberta. “Há oficiais no comando que nutrem simpatia pelos rebeldes. Embora desejosos de preservar a União, desprezam os que são contrários à escravidão. […] Parece impossível conduzir a guerra com sucesso, pois muitos de nossas próprias fileiras estão trabalhando continuamente em favor do Sul, e nossos soldados têm sido repelidos e impiedosamente mortos por conta da liderança desses partidários da escravidão” (ibid.,
p. 235). A declaração de Ellen White provavelmente poderia ter sido aplicável a George B. McClellan, comandante-geral do Exército da União, que foi persistentemente atacado pelos abolicionistas por não se opor firmemente à escravidão e não prosseguir a guerra com mais vigor (J. G. Randall, Lincoln the President [Dodd, Mead & Company, 1945], v. 2, p. 123, 124).
O ápice da indignação de Ellen White ocorreu quando os líderes do Norte, indiferentes à causa da abolição, devolveram os escravos aos seus antigos donos e, ao mesmo tempo, emitiram proclamações piedosas de jejum e oração nacionais. Semelhante hipocrisia deve ser condenada. “Vi que esses jejuns nacionais eram um insulto a Jeová. Ele não aceita um jejum assim. […] Grandes homens, professando ter coração bondoso, viram os escravos quase desnudos e famintos e os maltrataram, mandando- os de volta aos cruéis senhores e à escravidão desesperadora para sofrerem impiedoso tratamento por ousarem buscar sua liberdade. Alguns desses infelizes foram lançados em insalubres masmorras, sem que ninguém se importasse se iriam viver ou morrer. Impediam-nos da liberdade e do ar livre que o Céu nunca lhes negou, deixando-os sofrer por falta de alimento e vestes. Devido a tudo isso, é proclamado um jejum nacional! Ah, que insulto a Jeová!” (ibid., p. 236). Claramente, Ellen White estava com a minoria “extremista” do Norte, condenando aqueles que hesitavam ou tinham dúvidas sobre a questão da abolição.
Nota: Este artigo foi publicado na Review and Herald de 9 de abril de 1970 e reproduzido na Revista Adventista / Adventist World de maio/2025.
ROY BRANSON foi teólogo e educador da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Era diretor do Centro de Bioética Cristã da Universidade de Loma Linda quando faleceu, em 2015
Última atualização em 20 de agosto de 2025 por Márcio Tonetti.