Uma breve história da interpretação bíblica

10 minutos de leitura
Linha do tempo mostra os principais capítulos das batalhas travadas em torno do sentido das Escrituras  
Diogo Cavalcanti

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6º século a.C.  /  200 a.C. a 200 d.C.  /  1º século a.C. ao 1° século d.C.  /  2º século d.C.  /  3º século d.C.  /  4º século d.C.  5º século ao século 16  /  século 16  /  século 17  /  século 18  /  século 19  /  século 20  /  século 21

Desde o início, a interpretação da Palavra de Deus tem estado no centro de um grande conflito cósmico. Em jogo está o sentido simples e claro das comunicações divinas, das próprias intenções de Deus e de Seu caráter. Os guardiões da Palavra têm sido perseguidos, e muitos manuscritos e livros da Bíblia e sobre ela foram destruídos. Porém, talvez a forma mais eficaz de neutralizar o poder das Escrituras é justamente perverter seu sentido, sufocar sua voz, substituindo-a, em diferentes épocas, por falsas profecias (2Pe 2:1-3), pelo espiritualismo (Is 8:19, 20) e por filosofias e tradições humanas (Cl 2:8).

Ao longo da história, é exatamente isso que vemos acontecer: o surgimento de hermenêuticas (formas de interpretar) que distorcem o sentido original da Palavra, substituindo-o por alegorias, misticismo, construções filosóficas e, mais recentemente, pela crítica, pela lógica humanista e pela desagregação pós-moderna. Atravessamos hoje uma verdadeira crise hermenêutica, com inúmeros pontos de vista contrastantes sobre a Bíblia e sua mensagem.

Quando a fé se torna um artigo raro na prateleira religiosa, quanto mais se aproxima a segunda vinda de Cristo, a maior característica do povo de Deus é justamente sua fidelidade à Palavra – à Palavra escrita e à Palavra encarnada (Ap 14:6, 7; Jo 1:1-3, 14). Os fiéis se apegam à boa notícia eterna de um Salvador que também não muda (Hb 13:8). Não permitem que essa boa-nova seja corrompida pelas tendências que os cercam.

Cientes disso, vale acompanharmos alguns capítulos dessa guerra ao longo da história, marcada por verdadeiras batalhas intelectuais em torno do sentido das Escrituras. Registram-se apenas alguns dos nomes, fatos e correntes mais importantes. Muito mais poderia ser exposto. Contudo, a amostra revela que a verdadeira luz das Escrituras jamais deixou de brilhar, pois “seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente” (Is 40:8).

6º século a.C.
Esdras e Neemias

O retorno dos judeus do exílio representou uma volta às Escrituras. Como o povo falava aramaico, os levitas precisavam ler em hebraico e traduzir o texto, “dando explicações, de maneira que entendessem o que se lia” (Ne 8:8). Porém, esse esforço pela compreensão do texto parece ter envolvido mais do que uma simples tradução. Os horizontes do texto bíblico e do povo bíblico tardio já eram distantes naquela época. Era preciso traduzir, interpretar, esclarecer o sentido do texto.

200 a.C. a 200 d.C.
Qumran e os essênios

A comunidade reclusa dos essênios, localizada no noroeste do Mar Morto, em Khirbet Qumran, preservou um tesouro de manuscritos e comentários bíblicos, os quais foram descobertos nas décadas de 1940 e 1950. Os essênios aplicavam sua hermenêutica, chamada em aramaico raz pesher, “interpretação de mistério”, para compreender as Escrituras Hebraicas. Comumente, citavam uma passagem bíblica seguida das palavras “isto significa” ou “seu pesher é…”. Fragmentavam os textos, buscando identificar aplicações diretas à comunidade essênia. Identificavam enigmas e criptogramas, os quais lhes explicavam a realidade escatológica que entendiam atravessar.

1º século a.C. ao 1° século d.C.
Hillel

Rabino Hillel

Hillel (60 a.C.-20 d.C.) foi o mestre do mestre de Gamaliel que, por sua vez, foi mestre de Paulo e defendeu os primeiros cristãos (At 5:34-39). As chamadas Sete Regras de Hillel estabeleceram a base de uma interpretação sistemática das Escrituras. A escola de interpretação de Hillel, chamada beit Hillel, ou “casa de Hillel”, fundamentada em torno do amor ao semelhante, prevaleceu na tradição judaica sobre a “casa de Shammai”, que adotou uma linha mais legalista de interpretação. Jesus apresentou uma percepção da síntese da Lei de modo muito semelhante ao que Hillel ensinava – “O que é odioso para você não faça ao seu próximo, pois isto é toda a Torá. O resto é comentário” (b.Shabbat 31a; cf. Mt 7:12). Em seu sepultamento, Hillel foi chamado de discípulo de Esdras.

Pós-70 d.C. ao 2º século d.C.
Interpretação rabínica

As 13 Regras do rabi Ishmael ben Elisha (2° século d.C.), baseadas nas Sete Regras de Hillel, impulsionaram o desenvolvimento do método midráshico utilizado para explicar a Halachá judaica, ou seja, os textos bíblicos e comentários rabínicos referentes à Lei. Midrash é uma forma de leitura que vai além da interpretação literal ou simples (pshat), em busca de um sentido mais profundo e essencial do texto bíblico. As 32 Regras do rabi Eliezer ben Yosef (2º século d.C.) foram empregadas na interpretação da Hagadá, ou seja, textos bíblicos e comentários rabínicos compostos de histórias, parábolas, anedotas e provérbios. Rabinos posteriores identificaram múltiplos significados em um único texto: (1) o significado primário, que apontava para um significado embutido no texto, (2) o significado secundário, ou alegórico, e (3) um significado místico oculto nas próprias letras das palavras.

1º século d.C.
Filo de Alexandria

Filo de Alexandria

Judeu helenizado e rejeitado pela tradição rabínica desde sua época até o presente, Filo (20 a.C. a 50 d.C.) popularizou a interpretação alegórica da Bíblia. Ele aplicava uma leitura platônica, segundo a qual tudo o que existe e é considerado real se trata de um reflexo do mundo das ideias. Assim, qualquer dificuldade no texto bíblico era motivo para abandonar o sentido literal, em busca de uma interpretação alegórica. O sentido simples e claro não passaria de uma camada externa que escondia um sentido mais profundo e espiritual.

 

2º século d.C.
Marcion, Irineu e Tertuliano

Marcion de Sinope

Marcion de Sinope (c. 85-c.160 d.C.), filho do bispo de Ponto, desenvolveu uma teologia hermenêutica de ruptura. Em sua obra Anthitesis, cortou qualquer ligação entre o Antigo e o Novo Testamento, assim como entre as figuras de Deus apresentadas em ambos; rejeitou também a ideia de que Jesus fosse o Filho de Deus encarnado. Dessa forma, Marcion rejeitou todos os livros do Antigo Testamento, bem como os do Novo Testamento que tivessem qualquer raiz hebraica mais acentuada, ficando com O Evangelho de Cristo, uma versão modificada do Evangelho de Lucas, preparada por ele mesmo, e com dez das 14 epístolas de Paulo. Em resposta à heresia de Marcion, Irineu, bispo de Lyon (c. 130-c. 200), utilizou o princípio da “regra de fé” para defender a doutrina cristã correta ou ortodoxa. Defendia que a tradição havia sido preservada nas igrejas e que as Escrituras deveriam ser interpretadas pela autoridade da igreja. Por sua vez, Tertuliano (c. 160-c. 240) utilizou a tipologia para demonstrar a unidade do Antigo e do Novo Testamento. Porém, frequentemente, a relação tipológica degenerava em alegoria.

3º século d.C.
Hermenêutica alexandrina

Clemente de Alexandria

Clemente de Alexandria (c. 150-c. 220 d.C.) adotou o alegorismo de Filo, propondo cinco significados das Escrituras: histórico, doutrinal, profético, filosófico e místico. Para Orígenes (c. 185-c. 254 d.C.), o texto da Escritura tinha um sentido triplo, conforme a natureza tricotômica do homem (corpo, alma e espírito): o corporal ou literal, considerado menos importante; o psíquico ou moral, envolvendo aspectos éticos; e o espiritual ou alegórico/místico, tido como o mais importante e captado apenas pelos intérpretes experimentados. Nesse caso, o objetivo da interpretação é retirar a camada tida como superficial do sentido expresso, a fim de chegar à essência alegórica espiritualizada do texto.

4º e 5º séculos d.C.
Hermenêutica antioquiense

Teodoro de Mopsuéstia

Em oposição à escola alexandrina de interpretação, os intérpretes de Antioquia tinham em alta conta o sentido literal, expresso e claro dos textos bíblicos. Entre seus maiores nomes, encontram-se Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) e o pregador Crisóstomo (c. 347-407). Os princípios da hermenêutica antioquiense são praticamente os mesmos da hermenêutica gramática-histórica.

5º século ao século 16
Hermenêutica medieval

João Cassiano

Infelizmente, a hermenêutica antioquiense não prevaleceu sobre a alexandrina, que permaneceu por toda a Idade Média em uma nova versão. João Cassiano (c. 360-435) expandiu o sentido tríplice de Orígenes para quatro, na chamada quadriga (carruagem puxada pelos quatro cavalos do método alegórico de Cassiano). Assim, o texto adquire quatro sentidos: histórico (literal), o tropológico (moral), alegórico (místico ou cristológico) e o anagógico (escatológico ou celestial). Apesar de haver pequenos focos de resistência, os quais eram duramente combatidos, a quadriga medieval foi conduzida pelos intérpretes por mil anos, até o advento da Reforma Protestante.

Século 16
Hermenêutica protestante

Martinho Lutero

Os reformadores procuraram romper com a autoridade da tradição e da filosofia, para propor a Bíblia como sua própria intérprete (Scriptura sui ipsus interpres). Assim, também lançaram as bases dos princípios sola Scriptura (somente as Escrituras), analogia Scriptura (analogia das Escrituras) e tota Scriptura (toda a Escritura) como as maiores bandeiras hermenêuticas da Reforma. Por outro lado, na aplicação de um princípio cristocêntrico de interpretação, Lutero contraditoriamente rejeitou a Epístola de Tiago, que considerava em oposição ao genuíno evangelho da graça apresentado por Paulo. Apesar disso, a Reforma produziu o chamado método gramático-histórico, que considera o texto em seu sentido expresso ou literal e analisa aspectos literários, morfológicos e sintáticos, em conjunto com o contexto histórico. Esse método permanece até hoje, sendo utilizado por evangélicos conservadores, assim como pelos adventistas do sétimo dia.

Século 17
Nascimento da crítica-histórica

Baruch Spinoza

O método crítico-histórico foi o primeiro a aplicar a suspeita à interpretação bíblica. Seus pressupostos surgiram com Baruch Spinoza (1632-1677), ou Benedito Espinoza, judeu holandês, filho de pais portugueses. Ele foi o primeiro a questionar abertamente a origem divina do Pentateuco. Em seu Tractatus Theologico-Politicus, Spinoza argumentou que as religiões serviam apenas para defender interpretações preestabelecidas. Defendia que a Bíblia continha erros como qualquer outro livro e que, por isso, não deveria receber um tratamento especial. Por suas ideias, foi excomungado da vida religiosa e comunitária judaica. Suas ideias influenciaram o sacerdote católico francês Richard Simon (1638-1712), que escreveu Histoire Critique du Vieux Testament (História Crítica do Velho Testamento), em 1678. Nela, Simon levantou questionamentos, visando destruir a confiança na autoridade da Bíblia. Argumentou em favor de um longo processo de redação e compilação do Pentateuco, rejeitou o princípio sola Scriptura e proclamou a Igreja Romana como única autoridade confiável em termos de fé (David Lyle Jeffrey e Gregory Maillet. Christianity and Literature: Philosophical Foundations and Critical Practice. Downer Grove, IL: IVP Academic, 2011, p. 221).

Séculos 18 e 19
Surgimento do método crítico-histórico

Jean Astruc

Em resposta a Richard Simon, Jean Astruc (1684-1766) procurou defender a autoria mosaica do Pentateuco. Em sua obra, Conjectures Sur Les Mémoires Originaux Dont Il Paroit Que Moyse S’Est Servi Pour Composer Le Livre de La Genèse (Conjecturas Sobre as Memórias Originais das Quais Parece que Moisés se Serviu Para Compor o Livro de Gênesis), ele compara o uso de certas palavras hebraicas em manuscritos antigos organizados em colunas, demonstrando como Moisés as escreveu a partir de diferentes fontes, as quais foram reunidas em um só material por um editor posterior. Esse método foi adotado e desenvolvido por eruditos alemães. Basicamente, a crítica histórica busca as supostas “origens verdadeiras” do texto bíblico: quem foi seu autor, as fontes do texto, possíveis intervenções editoriais e a possível “situação de vida” (sitz im leben), o contexto em que teria sido escrito. Ou seja, mais que entender o que o texto diz, qual é sua mensagem, a crítica bíblica tem uma abordagem mais “genética”, procurando descobrir de onde o texto veio e qual é seu verdadeiro contexto. No século 19, a crítica bíblica se converteu em método científico e dominou os meios acadêmicos até o fim do século 20. Contemporâneos ao surgimento do método crítico-histórico, os adventistas, assim como Ellen G. White, o rejeitaram completamente.

Século 19
Guilherme Miller

Guilherme Miller

Antes deísta e racionalista, Guilherme Miller se converteu à fé cristã, trazendo consigo uma perspectiva lógica da Bíblia – enquanto revelação de Deus, ela deveria ser coerente consigo mesma. Como fruto de seus estudos, Miller registrou suas 14 regras de interpretação da Bíblia, amparadas em textos-prova. Miller se fundamentou em grandes princípios protestantes de interpretação, os quais são identificados em suas regras, envolvendo afirmações como “toda a Escritura é necessária” (regra 2), a comparação entre textos bíblicos (regra 3) e a ideia da Bíblia como sua “própria expositora” (regra 5). Miller também deu sua contribuição ao afirmar que certos textos marcados por figuras e parábolas devem ter tratamento especial (regras 6 a 9, 11 e 12). Ele ainda levou em consideração o princípio dia-ano (regra 10), o cumprimento de profecias (regra 13) e a necessidade de fé (regra 14). Ellen G. White afirmou que a pregação da mensagem adventista está assentada sobre as regras hermenêuticas de Miller (Review and Herald, 25 de novembro de 1884).

Século 20
Ressurgimento da filosofia hermenêutica

Martin Heidegger

Por séculos reduzida à área da Teologia, a trilha da hermenêutica passou a cortar os campos das ciências humanas no fim do século 19 e nas primeiras décadas do século 20. A questão do sentido (se ele é inerente às palavras ou apenas atribuído a elas), analisada pelos antigos gregos, como Sócrates e Platão, voltou pouco a pouco ao centro do debate. Seguindo as contribuições de Emmanuel Kant, Wilhelm Dilthey e outros separaram as ciências naturais das ciências humanas, colocando ambas no mesmo patamar – as ciências naturais, explicando as causas, e as humanas, os sentidos. A hermenêutica surge como um elo entre os saberes. Após isso, Dilthey, Heidegger e seu discípulo, Hans-Georg Gadamer, propuseram a hermenêutica como parte essencial do próprio ser humano, dentro do qual se desfaz a separação entre sujeito (intérprete) e objeto (o que é interpretado), ideia que ganhou força nos anos 1930. Gadamer, em sua obra Verdade e Método (1960), foi mais além ao propor a fusão dos horizontes do intérprete e do evento histórico interpretado, o qual é também idealizado pelo intérprete. Segundo seu raciocínio, no processo interpretativo, o intérprete não consegue exercer uma compreensão neutra das informações históricas, pois está imerso em sua própria historicidade e lê o passado conforme sua compreensão particular do presente. Junto a Gadamer, o pensamento de Paul Ricoeur colocou a hermenêutica no centro da função da filosofia, que é interpretar o sentido da existência por meio da leitura dos fenômenos. Distingue a hermenêutica da tradição (que ouve o texto atentamente) e hermenêutica da suspeição (que duvida do texto, buscando encontrar a verdade por trás dele). As ideias desses e de vários outros nomes abriram as portas para dezenas de perspectivas hermenêuticas nas décadas seguintes até o presente.

Séculos 20 e 21
Crise hermenêutica

Se a trilha da hermenêutica extrapolou o campo da Teologia e se fixou também na área das humanidades, ela voltou transformada para os estudos bíblicos, originando inúmeras novas formas de compreensão do texto bíblico. A fusão dos horizontes do texto e do leitor permitiu a construção de interpretações bíblicas a partir de qualquer ponto de vista. Surgiram, assim, as abordagens crítico-literárias, que consideram o texto bíblico enquanto literatura. Também surgiram as abordagens sociocríticas (antropológica, sociológica e psicológica) e as pós-modernas – desconstrucionismo, crítica pós-colonial, teologia da libertação, reader-response, crítica feminista, críticas ideológicas (asiática, africana, latina, pós-holocausto, gay, lésbica, etc.), entre outras. A multiplicidade de interpretações e de escolas causam vertigem e provocam uma verdadeira crise hermenêutica.

DIOGO CAVALCANTI, pastor, jornalista e mestrando em estudos judaicos, com ênfase na Bíblia Hebraica, na Universidade de São Paulo (USP), é coordenador da editoria de livros na CPB

[Créditos das imagens: Wikipedia e Lightstock]

Última atualização em 13 de dezembro de 2017 por Márcio Tonetti.