A natureza e o papel da igreja

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Lições sobre eclesiologia a partir da primeira epístola de Pedro

Eduardo Rueda

Crédito da imagem: Adobe Stock

O que significa ser igreja? Você já parou para refletir sobre isso? No Novo Testamento, há uma carta em especial que dá ótimas respostas a essa questão. Escrita para encorajar os crentes de origem judaica e gentílica espalhados em várias partes da Ásia Menor (atual Turquia) a permanecer firmes em meio à oposição, 1 Pedro é uma carta repleta de citações e alusões ao Antigo Testamento, e esses links com as Escrituras Hebraicas são fundamentais para entender sua mensagem. Além disso, essa epístola é um dos livros mais eclesiológicos do Novo Testamento, isto é, um dos que mais apresentam indicativos do que significa ser igreja. Para isso, um dos recursos que o apóstolo Pedro utiliza são comparações e metáforas, também extraídas do Antigo Testamento. A seguir, vamos explorar algumas dessas figuras retóricas e ver o que elas nos ensinam sobre a natureza e o papel da igreja.

A IGREJA COMO POVO DE DEUS EXILADO E PEREGRINO

Logo no começo da carta (1Pe 1:1, 2), Pedro faz alusão a dois eventos muito importantes da história de Israel: o êxodo e o exílio babilônico. As expressões “eleitos” e “aspersão do sangue” fazem referência ao êxodo (cf. Êx 24:1-11; Dt 7:6-8), e “forasteiros” e “diáspora” remetem ao exílio (cf. 1Pe 5:13). Com essas duas imagens, usadas de maneira metafórica, o apóstolo dá a entender duas coisas: (1) A igreja é a continuação de Israel. Em 1 Pedro não há um rompimento entre Israel e a igreja, tampouco uma sobreposição. O que há é uma continuidade. Entende-se que a igreja deve continuar o legado e a missão de Israel ao mundo – obviamente de forma ampliada pela revelação do evangelho. (2) A igreja é forasteira neste mundo. Roma, de onde Pedro escrevia, e a sociedade pagã do Império Romano, eram hostis e contrárias ao estilo de vida dos cristãos. Aquela não era sua pátria. Assim como os judeus em Babilônia, os seguidores de Cristo precisavam se lembrar que estão no mundo por um tempo determinado, e em algum momento voltarão à sua verdadeira pátria (cf. Fp 3:20).

Do versículo 3 ao 12, Pedro continua fazendo uma série de referências diretas e indiretas ao Antigo Testamento, desta vez para falar das bênçãos maravilhosas que os cristãos têm como povo de Deus, apesar de serem exilados e peregrinos no mundo. E do versículo 13 ao 25, o apóstolo começa a falar sobre as implicações práticas de a igreja ser o povo do Senhor, a continuação do Israel de Deus (essa ênfase prática será maior a partir de 1 Pedro 2:11). Uma vez que a igreja foi tirada do cativeiro do pecado, assim como Israel foi liberto do Egito, os cristãos agora precisam: preparar-se para a volta de Jesus, como os hebreus se prepararam para o êxodo na Páscoa (v. 13); andar em santidade em sua peregrinação pelo mundo, como Deus esperava que Israel se santificasse perante Ele em sua peregrinação pelo deserto (v. 15-17); não se esquecer de que eles foram redimidos pelo sangue do Cordeiro (Jesus), assim como os hebreus na noite da libertação do Egito (v. 18, 19); e, por fim, lembrar-se de que eles foram regenerados pela Palavra de Deus (v. 22-25).

A IGREJA COMO TEMPLO E SACERDÓCIO DE DEUS

No capítulo 2, Pedro continua exortando seus leitores e agora introduz um “portanto” (v. 1). Ou seja, em face de tudo o que ele falou antes – sobre a maneira maravilhosa como Deus os resgatou e deles cuida –, os cristãos deveriam procurar viver sem maldade, hipocrisia, inveja, etc. Ao contrário, deveriam desejar ardentemente o “genuíno leite espiritual”, uma representação da mesma Palavra de Deus que os regenerou (v. 2, 3).

O trecho de 1 Pedro 2:1-10 é o mais denso em citações e alusões de toda a epístola, e, a partir do versículo 4, Pedro passa a usar uma sequência de metáforas tiradas do Antigo Testamento para ilustrar de forma bastante contundente o papel da igreja no mundo. Esses versículos, portanto, podem ser considerados o núcleo identitário da epístola.

Cristo é apresentado como uma pedra viva, rejeitada pelos homens mas escolhida e exaltada por Deus (v. 4; cf. Sl 118:22). A imagem da pedra rejeitada possivelmente tenha como pano de fundo o contexto em que se rejeitavam certas pedras durante o processo de construção por não parecerem adequadas para uso no edifício. Algumas dessas pedras recusadas eram redescobertas mais tarde como as melhores para atender a determinadas finalidades, sendo então usadas para concluir a estrutura.

Na proporção em que nos achegamos a Cristo, nós também nos tornamos pedras vivas (v. 5), e Deus usa tais pedras para construir um santuário, um templo espiritual. Nesse templo, somos também sacerdotes, responsáveis por oferecer “sacrifícios espirituais” (v. 5; cf. Rm 12:1).

Entre os versículos 6 e 8, Pedro faz uma citação de três textos do Antigo Testamento para confirmar o que acabou de falar: Isaías 28:16; Salmo 118:22 (ao qual já havia aludido) e Isaías 8:14. Os três textos possuem um teor messiânico, tendo sido aplicados ao Messias tanto na tradição judaica quanto na tradição cristã.

Finalmente chegamos aos versículos 9 e 10, que podem ser considerados os versos áureos não somente da eclesiologia petrina, mas também de sua missiologia. Talvez melhor do que qualquer outro livro do Novo Testamento, esses versículos definem a missão da igreja, com base em títulos de Israel extraídos do Antigo Testamento.

A IGREJA COMO ANUNCIADORA DAS MARAVILHAS DE DEUS

Em 1 Pedro 2:9, o apóstolo aplica títulos de Israel no Antigo Testamento à igreja do Novo Testamento. De modo mais específico, Pedro mistura epítetos presentes em Êxodo 19:6 e Isaías 43:20, 21 (com base na tradução grega do Antigo Testamento chamada Septuaginta):

“Geração eleita” (cf. Is 43:20). O Israel bíblico foi uma gente eleita, separada, para mostrar ao mundo o caráter do Deus verdadeiro. O mesmo ocorre com a igreja hoje – incluindo judeus e gentios que aceitaram o evangelho.

“Sacerdócio real” (cf. Êx 19:6). Por meio de Cristo, todos nós obtivemos total acesso à presença do Pai. Como já visto, todos somos agora sacerdotes do Senhor. Embora Israel tivesse uma classe sacerdotal, a nação como um todo também tinha um papel de sacerdote, de mediador entre Deus e as outras nações. Semelhantemente, cabe a nós hoje, à igreja, fazer a ponte entre o Senhor e aqueles que estão distantes Dele.

“Nação santa” (cf. Êx 19:6). A ideia aqui é reforçada: o povo de Deus é santo, separado para Lhe servir. Portanto, deve ter um viver igualmente santo (1Pe 1:15, 16).

“Povo de propriedade exclusiva de Deus” (cf. Is 43:21). Deus “comprou” os israelitas dentre as outras nações, pagando o preço por eles; os hebreus foram resgatados do Egito pelo Senhor para se tornarem Sua propriedade particular. Da mesma forma, a igreja foi comprada pelo sangue de Jesus (1Pe 1:18, 19) e pertence exclusivamente a Ele.

Agora vem o “para quê”. Pedro declara que a igreja foi adquirida pelo Senhor, tornada geração eleita, sacerdócio real e nação santa para proclamar as virtudes Daquele que a chamou das trevas para Sua maravilhosa luz. Aqui o apóstolo continua aludindo a Isaías 43:21, texto em que é dito que o Senhor formou Israel para celebrar ou proclamar Seu louvor. Identicamente, a igreja foi formada para manifestar ao mundo a glória de Deus, o Seu caráter, as Suas obras.

Deus é Aquele que chamou a igreja das trevas para a luz. Entre outros textos (cf. Is 9:2; 42:12), essa linguagem imediatamente nos remete à criação dos céus e da Terra em Gênesis 1, quando Deus, pela Sua palavra, trouxe o mundo das trevas para a luz. Isso implica uma nova criação (cf. 2Co 5:17). O plano divino é que cada cristão seja um instrumento para que outros também possam experimentar completa regeneração.

Encerrando a perícope, no versículo 10, Pedro alude ao contexto de Oseias 2:23, em que Israel havia deixado de ser povo do Senhor quando Dele se afastou, mas voltou a ser povo quando Ele o resgatou. Igualmente, antes não éramos povo do Senhor, mas agora desfrutamos de todos os privilégios (e responsabilidades) de ser o povo escolhido de Deus.

A MELHOR RESPOSTA

Poderíamos gastar muito tempo filosofando e teorizando acerca do que significa ser igreja. Entretanto, é provável que nenhuma definição teórica seja plenamente satisfatória. É por isso que a Bíblia, de modo mais específico a Primeira Epístola de Pedro, prefere definir a igreja em termos essencialmente práticos. As comparações e metáforas utilizadas pelo apóstolo Pedro nos ajudam a entender que a natureza da igreja é mais bem definida por seu movimento e sua atuação no mundo, ou seja, por sua missão.

É nosso privilégio desfrutar da condição de povo escolhido de Deus, tendo comunhão com Ele e oferecendo-Lhe o que temos de melhor. Igualmente, é nossa responsabilidade proclamar as virtudes ou maravilhas do Senhor manifestadas em nossa redenção, a fim de que as outras pessoas também tenham a oportunidade de conhecê-Lo e sair das trevas para Sua gloriosa luz. Isso é o que, na prática, significa ser igreja. 

EDUARDO RUEDA é editor de livros denominacionais na Casa Publicadora Brasileira

(Artigo publicado na Revista Adventista de fevereiro/2024)

Última atualização em 5 de fevereiro de 2024 por Márcio Tonetti.