A esperança adventista de três militantes dos direitos civis nos Estados Unidos
Fernando Dias
Grandes manifestações tem sido frequentes no Brasil. Multidões interditam ruas e protestam. Algumas aglomerações são pacíficas; outras, violentas. As causas nem sempre são tão definidas, mas questionam a legitimidade de atos do governo e dos próprios governantes. Estes são apontados como os responsáveis pelas mazelas que instigam a indignação popular.
O cristão, inserido na sociedade, acha-se num dilema. Manifesta seu apoio às reivindicações por justiça? Optar pelo sim pode implicar em referendar eventuais atitudes agressivas dos movimentos ou mesmo causas paralelas que são defendidas num mesmo pacote, mas que um cristão não pode subscrever. Agir com indiferença às preocupações sociais traz a culpa de ser omisso no combate à injustiça.
Afinal, o cristão não deve se indignar diante da iniquidade? O cristianismo fomenta o desejo de justiça. A injustiça social provoca a indignação de Deus (Is 1:23, 24). Quando Cristo vier, a atitude diante dos desfavorecidos será o critério para distinguir os salvos dos perdidos (Mt 25:31-46). O cristão sabe que a raiz do problema não são governantes, tampouco os sistemas de governo. Não há por que combatê-los. Deus estabeleceu todas as autoridades (Rm 13:1-7), e elas devem ser respeitadas (1Pe 2:17). A raiz das injustiças é o pecado, e o cristão deve trabalhar para levar pessoas, independentemente de sua posição na sociedade, a abandonar as atitudes pecaminosas que instigam diferenças.
No Ocidente, uma das razões da desigualdade social foi a escravidão. Durante mais de 300 anos, africanos e índios foram escravizados no continente americano. No Brasil, a escravidão foi proibida pela Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888, há 128 anos. Abolir legalmente o trabalho escravo foi importante, mas sua herança social ainda perdura nos países onde existiu.
No Brasil, os adventistas não tiveram contato com a escravidão legalizada. O primeiro missionário só chegou no país em 1893, cinco anos após a Lei Áurea. Nos Estados Unidos, a emancipação dos escravos ocorreu no mesmo ano da organização da igreja (1863), e muitos pioneiros do movimento adventista foram abolicionistas. A injustiça da escravidão, incompatível com a liberdade anunciada no evangelho, mereceu a militância dos primeiros adventistas. Seu engajamento é um modelo de ativismo social pacífico.
Até a década de 1960, a segregação racial estava institucionalizada em alguns estados do Sul dos Estados Unidos. Assim como o escravismo, as leis que impunham separação entre as pessoas também indignaram muitos adventistas, e a atitude de alguns deles foi decisiva para a revogação dessas leis.
Em destaque, três mulheres que, em épocas diferentes, tiveram a atitude cristã de se posicionarem contra a injustiça.
SOJOURNER TRUTH
Isabela Baumfree nasceu escrava em 1797, no condado de Ulster, estado de Nova York. Aos nove anos, a menina foi incluída em um rebanho de ovelhas e leiloada por cem dólares. Ela passou por vários donos até pertencer a John Dumont. Aos 18 anos, ela se apaixonou por Robert, um escravo pertencente a um vizinho dos Dumont. O dono de Robert não queria que um escravo seu se casasse com uma escrava que não era dele. Se isso acontecesse, as crianças que nascessem pertenceriam ao dono da mãe.
Robert encontrava Isabela secretamente. Um dia, seu dono descobriu-o e o açoitou tão brutamente que Robert morreu vítima dos ferimentos. A lembrança da experiência assombraria Isabela por toda a sua vida. Depois do incidente, casaram Isabela com um escravo cuja esposa havia sido vendida. Ela teve cinco filhos.
O dono de Isabela prometeu libertá-la em 1826, mas não cumpriu o compromisso. Ela então fugiu com sua filha recém-nascida. A família de Isaac Van Wagener, um metodista, a acolheu e pagou 20 dólares a Dumont para ficar com Isabela, pedindo para ela o direito de visitar os demais filhos. Em julho de 1827, uma lei libertou os escravos no estado de Nova York.
A liberdade não pôs fim ao sofrimento. Peter, seu filho de cinco anos, havia sido vendido ilegalmente por Dumont para um fazendeiro do Alabama, estado que mantinha a escravidão. Com a ajuda de Van Wagener, Isabela entrou numa luta judicial para recuperar a criança. Conseguiu. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, uma mulher negra ganhou uma causa judicial contra um homem branco.
Isabela passou a trabalhar para uma família na cidade de Nova York. Quando seu patrão morreu, acusaram-na de envenená-lo. Foi julgada e absolvida como inocente. Seu filho Peter foi trabalhar em um navio baleeiro e ela não teve mais notícias dele após 1842. Em 1843, a ex-escrava adotou o nome de Sojourner Truth (“Peregrina da Verdade”). Sentindo que o Espírito Santo a chamava para combater a escravidão, associou-se a abolicionistas importantes, como Frederick Douglass e William Lloyd Garrison, e se tornou uma oradora famosa. Nessa época, ela aceitou a mensagem milerita da breve vinda de Cristo e começou a pregá-la. Mesmo passando pelo desapontamento, quando Jesus não veio em 1844, ela não perdeu a fé.
Em 1849, Sojourner Truth, num ato de perdão, visitou seu antigo dono John Dumont. No ano seguinte foi publicado seu livro A História de Sojourner Truth, uma Escrava Nortista, no qual há um capítulo apresentando a doutrina adventista. Em maio de 1851, já conhecida nacionalmente, participando da Convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, ela proferiu o discurso “E não sou uma mulher?” A palestra é um marco na história dos direitos civis.
Nos Estados Unidos, a emancipação dos escravos ocorreu no mesmo ano da organização da igreja (1863), e muitos pioneiros do movimento adventista foram abolicionistas
Em 1857, ela se mudou para Battle Creek e se uniu aos adventistas do sétimo dia, sendo batizada pelo pastor Uriah Smith. Durante a Guerra de Secessão, Sojourner Truth foi homenageada pelo presidente Abraão Lincoln por sua contribuição para a causa abolicionista. Mesmo após a emancipação dos escravos, ela continuou a promover os direitos civis até morrer, em 1883. Seu funeral foi realizado no Tabernáculo Dime, templo adventista de Battle Creek. Ela foi enterrada no Cemitério de Oak Hill, onde Ellen White também seria sepultada. É considerada uma das cem personalidades norte-americanas mais influentes de todos os tempos.
IRENE MORGAN-KIRKALDY
Em 1944, Irene Morgan, de 27 anos, viajava de ônibus entre os estados de Maryland e Virgínia. Ao entrar no estado da Virgínia, o motorista solicitou que Irene, que estava grávida, se levantasse e viajasse em pé no fundo da condução. Isso porque a lei estadual determinava a preferência de assentos para os passageiros brancos. Irene, sendo negra, não poderia permanecer nos assentos da frente e deveria viajar em pé no fundo do ônibus. Irene se recusou.
Na próxima parada, o motorista chamou o xerife, que queria prendê-la por desrespeitar a lei de segregação. Ela resistiu e entrou com uma ação judicial para não ser presa. Dois dos mais famosos advogados do país se interessaram em defender a empregada doméstica, e o caso foi parar na Suprema Corte americana. Em 1946, os juízes deram causa ganha a Irene e consideraram a legislação segregacionista do Estado da Virgínia inconstitucional. O fato foi noticiado nos principais jornais da nação.
Irene foi adventista durante toda a vida. Por sua atuação para o fim das leis de discriminação racial, recebeu várias homenagens, inclusive uma medalha das mãos do presidente Bill Clinton. Com 68 anos, ela concluiu a faculdade e, com 73, obteve um mestrado. Ela morreu em 2007, com 90 anos de idade.
ROSA PARKS
Em 1954, Edward Earl Cleveland, um evangelista adventista bem-sucedido, armou uma grande tenda no subúrbio de Montgomery, Alabama. As leis estaduais proibiam brancos e negros de sentar-se juntos num auditório, mas a regra não era seguida durante as reuniões evangelísticas na tenda.
Cleveland entendia que os adventistas não deviam se envolver com causas políticas e revolucionárias. Mas corajosamente descumpriu uma lei que, para ele, dificultava a pregação do evangelho. Apesar de ter problemas com a polícia por causa do auditório misto, a campanha fez a comunidade adventista de Montgomery saltar de 35 membros para mais de 500. De alguma forma, a ausência de segregação nos cultos adventistas influenciou quem frequentou a tenda, entre eles a metodista Rosa Parks e um observador curioso, o jovem pastor batista Martin Luther King Jr., de quem Cleveland se tornou amigo.
Rosa Louise McCauley Parks nasceu em 1913. A costureira, com uma atitude pacífica, mas firme, precipitou um movimento nacional em favor da igualdade.
Em 1º de dezembro de 1955, Rosa tomou o ônibus para casa e se assentou num banco reservado para “pessoas de cor”. Quando o veículo lotou, o motorista exigiu que os passageiros negros cedessem seus lugares às pessoas brancas que estavam em pé. Rosa se recusou. O fato de ela ter sido presa por isso foi a faísca para que, a partir do dia 4 de dezembro, milhares de pessoas boicotassem o transporte coletivo na cidade durante 381 dias, até que as leis de segregação fossem revogadas.
A atitude corajosa de Rosa repercutiu no país, mas ela foi ameaçada e teve que se mudar da cidade. Apesar de famosa, Rosa Parks viveu na pobreza durante toda a vida. Recebeu condecorações e, quando morreu em 2005, foi velada com honras pela Guarda Nacional.
A atitude de Sojourner, Irene e Rosa demonstra que há lugar adequado para o ativismo na vida cristã. Em 1881, Ellen White sonhou com um homem que pedia assinaturas em favor de um projeto de lei para restringir o comércio de bebidas alcoólicas, uma causa de interesse dos adventistas. Ela o ouviu dizer: “Deus tem o propósito de de nos ajudar em um grande movimento sobre esta questão” (Arthur White, Ellen White: Mulher de Visão, p. 201). Deus espera de seu povo uma influência social marcante.
FERNANDO DIAS é pastor e editor associado na Casa Publicadora Brasileira
(Perfil publicado originalmente na edição de maio de 2016 da Revista Adventista)
Última atualização em 12 de junho de 2020 por Márcio Tonetti.