A beleza das Escrituras

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Por que a Bíblia é um livro singular

Fernando Dias

Crédito da imagem: Adobe Stock

Há pelo menos 25 anos leio a Bíblia com regularidade diária. Há muito essa leitura deixou de ser linear. Costumo seguir também o método do “ano bíblico”, programa para leitura de toda a Bíblia em um ano. Porém, não me detenho a isso, pois às vezes adianto-o um pouco lendo vários capítulos seguintes que me parecem interessantes. Isso acaba compensando o atraso quando tenho que passar por trechos mais enfadonhos. Sim, ainda não consegui deslumbrar-me com algumas passagens, como as longas sentenças dos profetas contra as nações do antigo Oriente Próximo. Mas, sem perder a esperança de um dia vislumbrar alguma glória velada nelas, não as negligencio, apenas avanço com passos mais arrastados. A perseverança, no entanto, compensa. Não é incomum que nos trechos que descrevem episódios aparentemente mais distantes da minha realidade encontre uma aplicação que responda às minhas inquietações mais pessoais.

Além dessa disciplina que me possibilita contemplar toda a Escritura dentro do período de um ano, exploro com mais assiduidade as passagens que me interessam. É comum reler várias vezes um capítulo já conhecido até descobrir nele novas verdades não percebidas antes. Lembro-me de ter relido em seguida cem vezes, ou mais, livros menores como as cartas a Filemom e a primeira de João, ou trechos como o Sermão do Monte. Algumas vezes, fiz um “intensivão” lendo um livro da Bíblia por dia. Só não consegui ler Jeremias em um único dia. Pouca gente sabe que o livro de Jeremias é o maior da Bíblia, em número de palavras. Talvez daí meu fracasso em digeri-lo por inteiro em uma só sentada.

O tempo para isso? Bem cedo descobri que, se empregasse o tempo que se gasta para assistir a um telejornal e a uma novela, diariamente, é possível ler a Bíblia inteira assombrosas oito vezes em um ano. Mantendo distância do televisor, e nos últimos anos do smartphone, sobra-me tempo para a leitura. Não fico tão desinformado porque as pessoas se encarregam voluntariamente de me transmitir as notícias mais relevantes (e outras nem tanto).

Não conto isso para me gloriar, ou para dar a impressão de ser “superespiritual”. Na verdade, estou bem longe disso. Frustra-me o fato de praticar exercício e desenvolver pouco músculo. Mas, mesmo assim, prossigo. Por alguma razão, me tornei um “bibliodependente”, um adicto da Palavra, alguém que não consegue ficar sem ela. Mesmo que eventualmente passe alguns dias me mantendo com um pequeno comprimido das Escrituras tirado da caixinha de promessas, logo entro em crise de abstinência e surge uma fome avassaladora que me impulsiona sobre a Palavra com uma gula insaciável por verdade, vida, consolo, paz e perdão.

Naturalmente não entendo tudo o que leio, nem o propósito de muitos trechos. Não sei por que tantas e tão longas genealogias no primeiro livro das Crônicas, a descrição de aspectos estéticos sem nenhuma metáfora espiritual do santuário israelita em Êxodo, a enumeração de centenas de cidades em Josué, o que parece só servir para alguns arqueólogos peneirarem toneladas de terra para tentar encontrar os cacos de uma cerâmica que comprovam um assentamento humano no local há três mil anos. Surpreende-me o fato de Ezequiel gastar longos trechos de seu livro para descrever em detalhes minuciosos um templo que jamais foi construído.

Ao mesmo tempo que me incomodo com as longas passagens aparentemente desnecessárias, inculca-me as espantosas omissões de informações importantes. Enquanto é possível traçar toda a genealogia de um periférico Aimaás até Adão, não sei nada sobre a família de Elias e menos informações ainda sobre Malaquias, autor de um dos livros da Bíblia. Sobre Jesus, o protagonista, não sabemos quase nada sobre seus primeiros trinta anos de vida e absolutamente nada entre seus doze e trinta anos.

Talvez, se eu tivesse escrito a Bíblia, julgaria mais prático produzi-la na forma de um dicionário, ou de uma enciclopédia sobre a vida espiritual, com verbetes para cada tema. Assim, se meu problema fosse o sentimento de culpa, abriria na letra “c” e encontraria no verbete “culpa” as respostas de Deus para minha inquietação. Se estivesse com medo do futuro, uma busca combinada em “medo” e “futuro” trariam refrigério para minha alma.

Mas Deus não é como eu, e, graças a Ele, a Bíblia não é assim. Pois é justamente essa assimetria da Bíblia, suas aparentes contradições e mistérios, as partes que para alguns podem ser chatas e confusas, o que a torna tão deslumbrante. A Bíblia descreve centenas de guerras e homicídios, mas, mesmo assim, sua leitura formou os melhores pacifistas do mundo. Nela encontramos expostos fracassos humanos, o que paradoxalmente incentiva a busca da santidade. Muitas de suas personagens foram promíscuas e polígamas, mas seu texto tem a força de tornar seus leitores castos e puros. Há uma discrepância enorme entre o gênero das personagens. A maioria esmagadora é de homens (o que eu tento desculpar dizendo às mulheres que é porque os homens precisam mais de exemplos e repreensão). Apesar disso, as virtudes mais femininas da gentileza, da hospitalidade, da amabilidade, entre outras, são incentivadas de forma equilibrada com as virtudes mais masculinas da honradez, da lealdade e da coragem.

Enfim, eu compararia a beleza das Escrituras não à de uma moderna cidade com seus retilíneos arranha-céus espelhados, mas a uma floresta de árvores tortas e terreno irregular. A metrópole pode ser organizada e prática, mas encontramos muito mais beleza, inspiração, graça e mistério na floresta. Não é à toa que o lugar mais apropriado para a leitura da Palavra seja à sombra de uma árvore retorcida.

Dentro da floresta, não há um caminho traçado, mas eu prossigo. Às vezes, o que me impressiona é o canto do passarinho, outras vezes é a beleza da flor. As sombras das copas podem amedrontar-me com seu frio tenebroso, os espinhos do mato me atingirem, mas eu não perco o gosto de estar na floresta por conta desses inconvenientes. O prazer de estar ali agrada tanto a mim, que não sou capaz de saber o nome da imensa maioria das árvores que ali vicejam e de muitos dos pássaros que ouço, quanto deleita o mateiro mais experiente ou ainda o biólogo mais especializado. A beleza da mata está justamente por não haver nela uma linha reta sequer, uma funcionalidade em cada galho de árvore caído ao chão. Isso é o que torna o bosque tão mais agradável do que o centro de uma cidade grande, onde toda construção é simétrica e tudo é funcional. É por isso que posso sair da mata refrigerado, inspirado e renovado.

Assim é com a leitura da Bíblia, esse livro de interesse fascinante justamente por ser assimétrico e paradoxal. O fato de a Bíblia ser radicalmente tão diferente de tudo o que eu planejaria escrever sobre o que eu penso ser relacionado a Deus me convence de que ela tem, de fato, autoria divina, e que sua leitura me tornará, pelo poder de Deus, mais parecido com Ele.

Leia a Bíblia com o prazer deslumbrante de quem não consegue entendê-la toda, mas não consegue viver sem ela.

FERNANDO DIAS, pastor e editor da Casa Publicadora Brasileira, está cursando mestrado em Teologia

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 por Márcio Tonetti.