Nosso modelo de vida consagrada
FERNANDO DIAS DE SOUZA
Em fevereiro de 2024, a imprensa noticiou que, no Brasil, há mais espaços destinados à religião do que ao ensino e ao cuidado da saúde. No Censo Demográfico de 2022, pesquisou-se a finalidade de cada estabelecimento e descobriu-se que 579.798 eram dedicados à celebração das mais diferentes expressões de fé. As manchetes destacaram a religiosidade dos brasileiros. De fato, só parte da população estuda, e nem todos estão em tratamento médico, e o fato de a maioria dos brasileiros seguir uma religião demanda que existam mais locais de adoração que escolas, universidades, clínicas e hospitais.
O ser humano é religioso por natureza. Semelhantemente a uma roupa invisível, as peças simbólicas da espiritualidade promovem sensação de segurança e pertencimento. Cada grupo sociocultural traja conforme sua moda, e cada um tem sua crença. Aliás, assim como a religião é a vestimenta da alma, a roupa e os adereços costumam expressar aspectos da fé.
O ceticismo como corrente filosófica é antigo, mas como fenômeno social é recente. Os pretensos descrentes demonstram comportamentos, vícios, conceitos e percepções que, em sua psique, funcionam como rituais e dogmas de uma religião informal. Rubem Alves, teólogo que abandonou a fé, escreveu que “mais belo é o risco do lado da esperança que a certeza ao lado de um Universo frio e sem sentido” (O que é Religião? [Ars Poetica, 1996], p. 101). Até os descrentes precisam de espiritualidade. Há ateus que, apesar de sua incredulidade, praticam meditação e leem textos sagrados. Geralmente quem nega a existência de Deus pensa muito Nele.
O levantamento do IBGE citado anteriormente sugere que, se o leitor reside na zona urbana, há uma ou mais salas de adoração próximo à sua casa. Uma observação desses locais, porém, demonstra que a abundância de templos não é necessariamente algo positivo. Êxtase, charlatanice, simonia, manipulação e abuso integram a liturgia de muitos cultos. Constatar isso tem empurrado gente sensata para o abismo da secularização. Muitos que trilharam uma jornada espiritual nas cavernas da superstição emergem de lá ansiando a luz da espiritualidade genuína. Quem a teria para oferecer aos que a procuram?
Para o cristão, o modelo de espiritualidade é Jesus Cristo. Ele é o padrão. Inocente, para alcançar o Altíssimo não teria que Se arrepender; mas, mesmo assim, “Ele Se esvaziou e assumiu a forma de servo” (Fp 2:7). “Aquele que não conheceu pecado, Deus O fez pecado por nós, para que, Nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5:21). Para possibilitar que os seres humanos “sejam imitadores de Deus”, Cristo tornou-Se “semelhante aos seres humanos” (Ef 5:1; Fp 2:7).
Jesus submeteu-Se à administração da mesma ordenança que o pecador necessita receber ao crer: o batismo (Mc 16:16). O que seres finitos precisam para acessar o Infinito nosso Senhor praticava: as disciplinas espirituais (oração, jejum, orientação divina, solitude, leitura e memorização das Sagradas Escrituras e reflexão sobre o conteúdo da revelação, entre outras). Como resultado, Ele recebeu o batismo do Espírito, ouviu Deus Lhe declarar amor paternal, venceu as batalhas espirituais, derrotou o tentador, evitou o pecado e teve experiências com seres celestiais. Jesus viveu a vida que nós podemos viver Nele. A salvação em Cristo possibilita a imitação de Cristo.
PRÁTICAS DA ESPIRITUALIDADE
O cristianismo bíblico tem ritos simples, mas significativos. O batismo simboliza o novo nascimento da pessoa, sua adoção como filha de Deus; a imersão nas águas representa a imersão do arrependido na graça divina; ilustra o batismo no Espírito, quando Deus passa a habitar o ser humano. Ao ser batizado, Cristo experimentou o que é nosso privilégio desfrutar: a visão dos Céus abertos, a vinda do Espírito Santo e a declaração de amor do Pai, que disse a Jesus: “Este é o Meu Filho amado, em quem Me agrado” (Mt 3:16). Quando passamos pela mesma experiência, “o próprio Espírito confirma ao nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8:15).
Após Seu batismo, “Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome” (Mt 4:1). O novo nascimento é seguido de crescimento. Para crescer, é necessário nutrir-se, e para se obter comida, é preciso trabalhar, fazer algo. As práticas que o ser humano faz para receber de Deus o alimento para a alma são chamadas de disciplinas espirituais. “Disciplinas espirituais são atividades que estão ao nosso alcance e que nos permitem fazer aquilo que não somos capazes de fazer por um esforço direto” (Dallas Willard, A Grande Omissão [Mundo Cristão, 2007], p. 57).
PARA O CRISTÃO, O MODELO DE ESPIRITUALIDADE É JESUS CRISTO. ELE É O PADRÃO
No deserto, Jesus praticou disciplinas espirituais. Ele submeteu-Se à orientação do Espírito Santo, refugiou-Se em solitude, jejuou, orou, memorizou textos bíblicos e refletiu sobre eles. Como ser humano, Jesus dependia exclusivamente de Deus para desenvolver Sua espiritualidade, cumprir Sua missão e vencer o mal. Quando praticamos as disciplinas espirituais, fazemos o nosso possível; se nos tornamos pessoas espirituais, é porque Deus, em resposta, realiza por nós o que nos é impossível.
DESVIOS DA ESPIRITUALIDADE
Assim como há ao nosso redor opções religiosas ruins, Cristo também recebeu um cardápio com três sugestões espirituais perigosas.
Legalismo. A primeira delas foi a de buscar o reconhecimento do Pai por meio da prática de obras. O tentador sussurrou a Jesus: “Se Você é o Filho de Deus, mande que estas pedras se transformem em pães” (Mt 4:3). Essa frase sugeria descrer daquilo que o Pai Lhe dissera após Seu batismo e incitava Jesus a fazer algo espetacular para comprovar Sua filiação divina.
Caímos nessa tentação quando praticamos obras com o intuito de garantir o amor de Deus. Foi esse o pensamento do pródigo quando planejou dizer ao pai: “Já não sou digno de ser chamado de seu filho; trate-me como um dos seus trabalhadores” (Lc 15:19). O irmão mais velho também pensava que seu serviço motivava o pai a amá-lo (v. 28-31). O servo devedor da parábola considerava-se autossuficiente, dizendo: “Tenha paciência comigo, e pagarei tudo” (Mt 18:26). No entanto, era incapaz de compartilhar a graça que recebia. Em outra parábola, o fariseu considerou-se superior ao publicano por causa do que fazia e do que não fazia, mas essa atitude não o justificou (Lc 18:9-14).
Legalismo é a barganha com Deus, é a tentativa de impressioná-Lo com a prática de boas obras. O Salvador combateu essa doutrina maligna. Deus não nos ama por causa de nossos acertos nem nos odeia devido a nossas faltas. “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4:10). “Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Jesus Cristo, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois por obras da lei ninguém será justificado” (Gl 2:16).
Liberalismo. A segunda opção de espiritualidade oferecida a Cristo também nos seduz. “O diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre o pináculo do templo e disse: ‘Se Você é o Filho de Deus, jogue-Se daqui, porque está escrito: “Aos Seus anjos dará ordens a Seu respeito. E eles O sustentarão nas suas mãos, para que Você não tropece em alguma pedra”’” (Mt 4:6). Assim como a primeira, a segunda tentação foi espiritual: na Cidade Santa, no ponto mais alto do templo, uma promessa bíblica descontextualizada sinalizou um atalho perigoso. A fala do maligno sugere duvidar do amor do Pai.
O diabo nos tenta a abusar da misericórdia de Deus; a reivindicar as promessas bíblicas sem a condição para seu cumprimento, que é a fé. Alguns distorcem a graça e sentem-se à vontade para serem maus porque Deus é bom. Dizem: “Pratiquemos o que é mau, para que nos venha o que é bom” (Rm 3:8). Acreditam que Deus os salvará ainda que saltem irresponsavelmente do alto do pináculo do templo de sua presunção piedosa. No entanto, essa não é a atitude dos que adotam a espiritualidade de Jesus. “Que diremos, então? Continuaremos no pecado, para que a graça aumente ainda mais? De modo nenhum!” (Rm 6:1, 2).
A salvação é do pecado, não no pecado. O salvo não abusa da graça de Deus, que o salva sem a prática de obras. Ele, porém, se vale da graça salvadora para renegar “a impiedade e as paixões mundanas” e viver “neste mundo de forma sensata, justa e piedosa, aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tt 2:12, 13). “Pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura Dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2:8, 9).
CRISTO REJEITOU AS FALSAS ESPIRITUALIDADES PORQUE CULTIVAVA A ESPIRITUALIDADE BÍBLICA. LEGALISMO, LIBERALISMO E MISTICISMO SÃO RELIGIOSIDADES ANTICRISTÃS
O liberalismo está ilustrado nessa tentação. Quando se lê a Bíblia sem fé no amor de Deus, sua mensagem é usada para justificar o pecado. No liberalismo, o mau comportamento não é considerado ofensivo. O liberal atira-se do alto dessa doutrina ilusória com a presunção de que o amor de Deus o salvará apesar de sua conduta irresponsável. Deus não nos salva para que nos atiremos no pecado esperando ser amparados nos braços de uma graça barata, mas para nos fazer “cavalgar sobre os altos da terra” (Is 58:14).
Misticismo. Cristo vislumbrou uma terceira opção de espiritualidade quando o diabo “mostrou-Lhe os reinos do mundo e a glória deles e disse: ‘Tudo isso Lhe darei se, prostrado, Você me adorar’” (Mt 4:8, 9).
Enquanto a primeira tentação sugeria praticar uma obra espetacular para Se reconhecer como Filho de Deus, e a segunda induzia a abusar da graça, a terceira ofertava ter as bênçãos de Deus sem ter o Provedor de “toda boa dádiva e todo dom perfeito” (Tg 1:17). Os reinos deste mundo pertencem a Cristo (Ap 11:15). Por meio Dele, tornamo-nos filhos de Deus (Jo 1:12). “Se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo” (Rm 8:17). O Pai celestial nos afirma o mesmo que, na parábola, o pai assegurou ao irmão do pródigo: “Meu filho, você está sempre Comigo; tudo o que Eu tenho é seu” (Lc 15:31).
A cobiça de ter o que é de Deus sem ter Deus é misticismo. É tentar manipular o sobrenatural para conseguir o material. O rei Saul queria uma palavra do profeta morto apesar de ter desprezado a chamada ao arrependimento que ele lhe fizera enquanto vivia. Ao recorrer ao misticismo, encontrou-se com a morte (1Sm 28). Simão, o mágico samaritano, ofereceu dinheiro para comprar poder espiritual e foi repreendido por isso (At 8:18-23). Experiências sobrenaturais por si só não comprovam salvação de ninguém (Mt 7:21-23; 1Co 13).
CONCLUSÃO
Cristo rejeitou as falsas espiritualidades porque cultivava a espiritualidade bíblica. Legalismo, liberalismo e misticismo são religiosidades anticristãs. A espiritualidade de Jesus derivava de Sua convicção na Palavra de Deus. Ele não duvidou do que Deus Lhe disse após o batismo e usou as Escrituras para proteger Sua fé no amor do Pai.
Ao responder que a vida humana depende da fé na Palavra de Deus, Jesus evitou acreditar que uma obra espetacular comprovaria Sua filiação divina (Mt 4:4). Quando replicou que não se deve pôr Deus à prova, protegeu-Se de crer numa graça libertina, que condescende com o pecado e dispensa a santificação (v. 7). Sua insistência no culto exclusivo a Deus livrou-O da cobiça de ter as bênçãos materiais sem um relacionamento com o doador das bênçãos (v. 10).
Experiências sobrenaturais de origem divina resultam de uma espiritualidade bíblica. Após Jesus resistir às tentações, anjos O serviram (v. 11). Muitos buscam a todo o custo ter experiências sobrenaturais que não vêm de Deus. Se, porém, modelarmos nossa espiritualidade à Bíblia e ao exemplo de Cristo, nossas necessidades materiais e imateriais serão atendidas de forma surpreendente. Veremos o invisível, tocaremos o intangível e, como o Mestre, ouviremos Deus nos declarar Seu amor.
FERNANDO DIAS DE SOUZA é editor na Casa Publicadora Brasileira
(Matéria de capa da Revista Adventista de julho/2024)
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Última atualização em 3 de julho de 2024 por Márcio Tonetti.