A Bíblia e a música de mãos dadas

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Como é possível conjugar arte e teologia na música cristã da atualidade?

Crédito da imagem: Fotolia
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A canção “Escolhi acreditar”, com letra de Mário Jorge Lima e música de Lineu Soares, aborda a crença religiosa no cenário moderno de oposição entre fé e razão, religião e ciência. A essa falsa dicotomia, há que se responder com firmeza teológica, mas sem perder a ternura poética:

Modernas teorias, novas formas de pensar
Existem por aí nos meios intelectuais
Que vão do ateísmo mais profundo e radical
Até o humanismo com tinturas sociais

Versos como esses não são comuns na música cristã contemporânea. Poucos letristas escrevem termos como “ateísmo” e “humanismo com tinturas sociais” na mesma estrofe.

E hoje mesmo a crença tenta se modificar
E quer que o homem seja o fim da sua pregação
Senhor dos seus problemas, dos seus sonhos e ideais
Buscando aqui e agora a total libertação

Para o sociólogo John Carroll (Humanism: The Wreck of Western Culture, p. 2, 3), o humanismo se consolidou como uma ideia de autossuficiência humana e o estabelecimento de uma ordem inteiramente humana na terra, “em que a liberdade e a felicidade prevalecessem sem quaisquer apoios transcendentais ou sobrenaturais”, ou seja, “o homem é todo-poderoso, se sua vontade for suficientemente forte”.

Opondo-se a essas ideias, a letra da canção reforça o vigor e a utilidade da religião:

No entanto, eu escolhi acreditar
Que existe um plano para a salvação
E que há um Deus no Céu a governar o meu viver
Mas que me dá poder até pra aceitá-Lo ou não
O Seu reino é liberdade, é amor
Espera sem forçar a decisão
Ele é descomplicado, não confunde o pecador
E fala tanto à minha mente como fala ao coração

Nesses versos, a declaração de fé não surge como resultado de manipulação sobrenatural nem adesão interesseira a uma igreja, sendo, na verdade, uma escolha individual que assinala o instante em que a razão da mente se une às razões do coração. Os autores da música cantam que o Deus no qual acreditam é o Deus da liberdade pessoal: espera sem forçar a decisão. Tais palavras nos lembram um verso bíblico: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a Minha voz e abrir a porta, entrarei…” (Ap 3:20). O Deus que espera alguém abrir a porta.

O ser humano hoje só volta para si
Buscando atender necessidades essenciais
Mas sem levar em conta que há uma vida superior
Que poderá suprir os seus anseios mais reais

Cada vez mais o ser humano parece perder um sentido teleológico da vida, de que sua existência possui uma finalidade ou de que a história terrestre destina a uma resolução última de todos os conflitos entre o bem e o mal. Zygmunt Bauman, autor de muitos livros que diagnosticaram o mal-estar da sociedade ocidental, afirma que a inquietação a respeito da eternidade foi retirada da agenda humana, e que nossa vida está sendo elaborada “de tal modo que pouco ou nenhum tempo foi deixado para cuidar de tais inquietações”.

E há os que procuram tudo racionalizar
Só crendo no que a ciência e a cultura podem ver
Querendo um milagre pela lógica explicar,
Se fecham para as coisas do espírito e da fé

Agora a letra aborda a falsidade da oposição entre razão e fé. Ambas são distintas, mas não precisam ser excludentes. O neoateísmo prega que a fé cristã é “uma falsa crença persistente que se sustenta mesmo diante de fortes evidências que a contradigam” (Richard Dawkins, Deus, um delírio). Por outro lado, veja a definição de fé segundo o teólogo anglicano W. H. Griffith-Thomas: “[A fé] afeta toda a natureza do homem. Começa com a convicção da mente com base na evidência adequada; continua na confiança do coração, ou emoções com base na convicção, e é coroada no consentimento da vontade, por meio do qual a convicção e a confiança são expressas em conduta”. É esse conceito de fé que rege esta canção:

No entanto eu escolhi acreditar
E esperar assim em meu Jesus
Filósofos e mestres nunca irão avaliar
Aquilo que o amor de Deus mostrou na cruz
O meu Deus é poderoso e é real
Só nele eu encontrei, enfim, perdão
Prefiro depender de sua força sem igual
E quero ter, então, por Ele transformado o coração

Essa é uma lista de motivos para escolher acreditar:
1. O filosoficamente imensurável amor divino aceito pela fé;
2. A cruz como símbolo da redenção da humanidade;
3. A transcendência onipotente (o meu Deus é poderoso) e a imanência da presença de Deus (e é real);
4. O perdão como parte integrante do caráter de Deus;
5. A submissão do homem ao amor e poder divinos (prefiro depender…)
6. A combinação entre o anseio humano por ser transformado e a capacidade divina de graça transformadora.

Quando ouvimos a música feita para esta letra, percebemos que a teologia que corre nos versos é compatível com a sofisticação melódica e harmônica da música, numa delicada carpintaria que equilibra erudição e simplicidade.

“Escolhi acreditar” não foi composta para admirarmos sua excelência musical e poética, mas seu modelo que conjuga arte e teologia tem sido tão raro que é preciso chamar atenção para ela. Se, como diz o Salmo 85, na salvação “a justiça e a paz se beijaram”, nos versos dessa música a Bíblia e a poesia se abraçaram.

JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor do livro Música e Religião na Era do Pop

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.