A igreja precisa de músicos que procurem equilibrar os pêndulos da tradição e da modernidade
Uma ideia que persiste na maioria das comunidades cristãs com mais de um século de existência é a de que a música adequada para adoração deve ter a mesma idade dessa igreja. Não é raro que parte desse antigo repertório proclame a verdade presente com o som inadequado para os ouvidos contemporâneos. E também não é raro que esses hinos tradicionais ainda tenham mais a nos dizer do que muitas canções contemporâneas.
Não é que a igreja hoje seja menos racional, menos emotiva, menos envolvida ou menos ativa do que a igreja do século 19. Aliás, quem se dedicar a conhecer os cultos e as músicas dos seus pioneiros terá muitas surpresas. Na verdade, é somente uma igreja diferente, multiétnica, distribuída em centenas de países, distante mais de um século da cultura musical na qual surgiram os hinos que nós chamamos de tradicionais e que os pioneiros consideravam contemporâneos.
Na verdade, seria muita pretensão nossa exigir que todas as músicas compostas num reduto norte-americano do século 19 continuassem sendo cantadas com o mesmo entusiasmo pelas congregações do século 21. Se nem todos serão alcançados pelos mesmos métodos, por que deveríamos pensar que todos vão ser tocados pelas mesmas músicas?
Não foi por acaso que, há pouco mais de um século, os músicos cristãos fizeram cânticos diferentes daqueles dos tempos de Martinho Lutero ou de John Wesley. Não somente a experiência espiritual era diferente, mas também o conhecimento teológico e a cultura poética e musical.
Os primeiros cristãos costumavam utilizar melodias hebraicas, até porque essa era a cultura musical dos primeiros cristãos. O crescimento da igreja nos primeiros séculos depois de Cristo também propiciou a combinação de músicas de origem hebraica e grega. No livro Sound of Light (p. 7), o historiador Don Cusic compara essa combinação sacro-musical com o fato de que as epístolas do apóstolo Paulo eram escritas em grego, bem como a liturgia primitiva, enquanto a influência judaica estava no sentimento das orações e do louvor. Assim, a tradição e a novidade caminhavam juntas em prol do avanço da mensagem de Cristo.
Até o século 19, a música só era escutada ao vivo. Fosse nas praças, nos teatros ou nas igrejas, o acesso à música naquela época ocorria de um modo muito diferente. As pessoas de cem anos atrás tinham pouco acesso a novas músicas do mesmo modo que tinham pouco acesso à informação. Hoje, se ouve música em quase todo lugar e quase o tempo todo, até quando não se deseja ouvir nada.
Roupas, penteados e sapatos mudaram desde sempre? Sim, a cultura da aparência visual muda, mas permanece o bom conselho da modéstia. A cultura musical mudou? Sim, mas permanece a recomendação de que “todas as coisas são lícitas, mas nem todas as coisas edificam” (ICo 10:23).
E há outro fator complicador: nem sempre o mesmo estilo musical que atende a uma congregação inteira vai tocar espiritualmente de forma positiva uma pessoa só. Às vezes, essa pessoa ouve somente gravações antigas, enquanto outra prefere arranjos mais modernos; uma compreende melhor letras e melodias simples, outra é tocada por poesias refinadas e harmonias elaboradas. Não posso me arvorar a prescrever o estilo musical e poético que cada indivíduo deva usar em sua devoção particular. Por outro lado, não é tão difícil perceber quais os cânticos antigos e modernos que atendem adequadamente os cultos congregacionais de minha igreja reunida.
Então, qual seria um bom critério para a seleção musical para os cultos congregacionais? Penso que entre os critérios está o conhecimento da história da igreja e de sua música, pois isso nos ajuda a entender que somos parte de um movimento com passado, presente, futuro e finalidade. Nessa perspectiva, enquanto os hinos dos movimentos espirituais do passado nos conectam ao legado da igreja, os cânticos atuais representam uma igreja em movimento.
A igreja militante continua compondo cânticos que confortam, que reforçam crenças, que relembram experiências de conversão e que animam os conversos à ação. As novas músicas também ajudam pessoas em sua peregrinação de fé. Em sua caminhada, haverá avanços e tropeços, momentos de dúvida e de certeza, de dor e alegria, vivências e convicções que também são a matéria-prima da música da igreja contemporânea.
É por isso que a igreja precisa de músicos que procurem equilibrar os pêndulos da tradição e da modernidade, promovendo o encontro entre a música e a sua identidade bíblica, conciliando a “velha e feliz história” com a inovação artística.
Por outro lado, é reconfortante cantar uma música que os pioneiros da igreja também cantavam. É como ligar nossa experiência a deles, num continuum de trabalho, fé e esperança que só será interrompido quando enfim confirmar-se a bendita esperança do cristão, que culminará num evento em que todas as linhagens de salvos poderão entoar a mesma música de louvor e alegria ao Cordeiro. [Créditos da imagem: Fotolia]
Joêzer Mendonça, doutor em Música (UNESP), é professor da PUC-PR e autor do livro Música e Religião na Era do Pop
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.