Cantando sobre o passado, olhando para o futuro

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Músicas para lembrar o que Deus fez e o que Ele disse que fará

Joêzer Mendonça

Crédito da imagem: Adobe Stock

O povo hebreu atravessa o Mar Vermelho em seco e, olhando para trás, vê as águas tragarem seus perseguidores. O alívio é imediato. E a gratidão pelo livramento também, pois Moisés e os filhos de Israel entoam ali mesmo, às margens do mar, um cântico ao Senhor (Êx 15:1-19). Essa passagem bíblica chamada de “Cântico de Moisés” é uma das amostras mais antigas da poesia hebraica. Testemunhava a libertação divina (versos 4-10) e apontava para os futuros atos de Deus em favor do povo (versos 14-17).

O primeiro verso desse cântico (“Cantarei ao Senhor, porque triunfou gloriosamente e lançou no mar o cavalo e seu cavaleiro”) parece ser uma espécie de refrão, talvez sendo uma ponte ou variação entre as estrofes. Esse verso é cantado e repetido por Miriã e todas as mulheres que “saíram atrás dela com tamborins e danças”, conforme indicam os versos 20 e 21.

Trata-se de um trecho interessante que merece uma observação mais detida. Naquela época não havia levitas músicos nem tabernáculo nem templo. O que ocorreu ali, à beira-mar, foi uma explosão espontânea de louvor, alegria e gratidão da qual participaram homens e mulheres. A participação das mulheres com tamborins e danças naquele momento viria a se repetir como uma atitude natural de um contentamento que não cabia apenas em palavras (Jz 11:34; 1Sm 18:6; Sl 68:25). Essa atitude se tornou tão característica que Jeremias a utilizou como metáfora do lamento transformado em júbilo: “Você será edificada, ó virgem de Israel! Mais uma vez você se enfeitará com os seus tamborins e sairá com o coro dos que dançam” (Jr 31:4).

Adufe e tamborim são o mesmo instrumento, o tof, formado de um aro de madeira e provavelmente duas peles e que é traduzido também como tambor ou tamboril em diferentes trechos da Bíblia. Em ocasiões posteriores, o louvor comunitário dirigido a Deus seria exclusivamente organizado por homens sacerdotes descendentes da tribo de Levi. O cântico do povo em Êxodo 15 também é uma expressão comunitária e a “antífona”, ou “refrão”, era liderada por uma mulher.

Curiosamente, no Egito dos tempos dos faraós, os rituais e oferendas eram realizados com acompanhamento de canto responsorial e antifonal liderado por mulheres que atuavam como oficiantes musicais (shemayet). Ao se buscar gravuras e pinturas do Antigo Egito, encontra-se a figura de mulheres como instrumentistas e também dançarinas que participavam ativamente das celebrações religiosas. Vale ressaltar que as danças ritualísticas do Antigo Egito costumavam ser acompanhadas de cantos apoiados por um padrão rítmico binário que também era utilizado em culturas vizinhas como símbolo de serenidade e simetria.

Nossa música de louvor deve rememorar o passado com gratidão, mas também deve nos lembrar de olhar para o futuro com esperança

Nessa perspectiva, quando as mulheres hebreias entoaram sua antífona com adufes e danças não se sabe se elas saíram pulando de felicidade ou se seu movimento era mais sereno, mas podemos dizer que Miriã e as demais mulheres não desconheciam a liderança musical e a participação feminina em celebrações coletivas.

Outro verso do cântico de Moisés que chama atenção é aquele que diz:

“O Senhor é a minha força e o meu cântico;

Ele Se tornou a minha salvação.

Este é o meu Deus, portanto, eu O louvarei;

Ele é o Deus de meu pai; por isso, O exaltarei” (Êx 15:2)

O profeta Isaías, em seu “Canto de louvor pela restauração de Israel” (Is 12:1-6), retomou a expressão mosaica de que “o Senhor Deus é a minha força e o meu cântico; Ele Se tornou a minha salvação” (v. 2). Esse cântico de louvor lembra que “o Senhor […] fez coisas grandiosas” e conclui com a esperança de ver o Santo de Israel junto do povo (Is 12:5-6).

O Salmo 118, a seção poética e musical que encerra a antologia ou coleção dos salmos do Hallel (113 a 118), evoca o cântico de Moisés em suas linhas: “O Senhor é a minha força e o meu cântico, porque Ele me salvou” (Sl 118:14). As ações de graças e louvor do Hallel concluem com esta lembrança dos feitos de Deus no passado e aponta também para “a pedra que os construtores rejeitaram”, a Pedra Angular.

Patriarcas, profetas e reis cantaram agradecidos pelo livramento e pela restauração futura. Cantaram o que já foi e o que virá. Louvar a Deus, então, não é apenas cantar sobre o que Ele fez, mas é cantar também sobre o que Ele prometeu fazer. Nossa música de louvor deve rememorar o passado com gratidão, mas também deve nos lembrar de olhar para o futuro com esperança.

JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor dos livros Música e Religião na Era do Pop e O Som da Reforma: A Música no Tempo dos Primeiros Protestantes

Última atualização em 29 de novembro de 2021 por Márcio Tonetti.