A exemplo do que ocorreu na Reforma Protestante, todo empreendimento de inovação musical precisa ser tratado com cautela e critérios
Depois de ter passado um ano escondido no castelo de Wartburg, Martinho Lutero voltou para a mesma Wittenberg onde havia publicado suas 95 Teses que acenderam o pavio da Reforma Protestante. Ao chegar lá, ele se deparou com um panfleto com 53 tópicos combatendo o formato da missa, tanto a ministração em latim quanto a música. Para Andreas Karlstadt, autor das críticas, a missa deveria ser celebrada na língua alemã e o canto coletivo deveria ser uníssono, representando a unidade do corpo de Cristo.
Era março de 1522 e tudo estava mudando: havia cristãos que não mais eram católicos, navegadores davam a volta ao mundo e o livro era uma novidade.
Nesse cenário em mutação, muitos esperavam que Lutero apoiasse o levante contra a liturgia romana, até porque ele mesmo era um crítico excomungado do poder papal. No entanto, Lutero rejeitou a reforma litúrgica de Karlstadt e preparou uma série de oito sermões apontando que a reforma luterana da liturgia não seria radical.
As propostas de Lutero preservaram o aparato cerimonial da missa católica, cuja música, linguagem e ornamentações possuíam alto valor simbólico na mente religiosa popular. Não era seu objetivo primordial modificar em demasia aquele ritual e aquela música, visto que ele desejava que as pessoas cantassem textos com os novos princípios teológicos, ainda que a música não fosse diferente. Desse modo, ensinava-se a nova teologia por meio da música sacra previamente conhecida, sem, a princípio, modificar substancialmente suas melodias.
Lutero esclareceu que sua intenção não era extinguir a liturgia: “[…] não é nossa intenção eliminar o serviço [litúrgico], mas restaurá-lo novamente para seu uso correto” (“Concerning the Orders of Public Worship”, Luther’s Works 53, p.11).
Seguiu-se, então, uma variedade de práticas. Em algumas cidades, cantava-se partes da missa (como Introito, Kyrie, Agnus Dei, Gloria, Credo) em latim ou em alemão, usava-se canto polifônico ou músicas mais simples, canto melismático (várias notas feitas em uma sílaba) ou canto silábico (uma nota para cada sílaba). Lutero concordava com essa variação idiomática e musical. “Que cada igreja tenha a música segundo seu próprio livro e costume. Pois, eu mesmo não gosto de ouvir as notas, em um responsorial ou noutro cântico, modificadas daquilo a que fui acostumado na juventude. Estamos interessados em mudar o texto, não a música” (“Preface to Burial Hymns”, Luther’s Works 53, p. 328).
Vamos analisar esse parágrafo de Lutero ponto a ponto. Primeiro, quando Lutero escreveu: “que cada igreja tenha música segundo seu próprio livro e costume”, ele entendia que as cidades e igrejas alemãs tinham seu próprio ritmo de adesão às mudanças e que poderiam conservar coletâneas musicais de acordo com suas tradições. Por isso, Lutero aconselhava as igrejas a entoar os cânticos em latim juntamente com cânticos em alemão quando achassem necessário.
Em segundo lugar, ao dizer que não gostava de ouvir cânticos modificados em relação ao que ele estava acostumado desde a juventude, Lutero compartilhava o antigo fato de que os mais velhos gostam de cantar os hinos do jeito que faziam quando eram jovens. No entanto, o apreço pelos cânticos de sua juventude não impediu que ele adotasse mudanças musicais a fim de tornar o canto coletivo mais acessível a todos.
Por último, ao escrever que estava interessado “em mudar o texto, não a música”, Lutero afirmou que o mais importante naquele momento era reformar o ensino da Bíblia antes de alterar a missa. De modo semelhante, era importante mudar as letras dos cânticos a fim de que seu conteúdo comunicasse as novas doutrinas, ainda que se preservasse inicialmente a melodia original ou o idioma, latim ou alemão.
A experiência de Lutero já havia ocorrido anteriormente entre os padres que adaptaram cantos para o louvor e para o ensino de doutrinas, e voltaria a se repetir na trajetória das igrejas cristãs. Por exemplo, os fundadores do adventismo não tinham música própria. Assim, adaptaram quase todo o repertório das igrejas protestantes da época (metodistas, presbiterianos e batistas), modificando a letra original quando queriam abordar doutrinas específicas, como o sábado, o santuário, o estado dos mortos.
A atitude dos pioneiros adventistas confirma que a preocupação dos líderes da igreja naquela época era cantar a nova teologia por meio de hinos previamente conhecidos, sem modificar suas melodias. Aliás, quando a letra original não contradizia nenhum ensino adventista, os pioneiros conservavam a letra original do hino. Naquele momento específico da história da igreja, a preocupação era com a correção teológica da letra, visto que as melodias utilizadas eram praticamente as mesmas cantadas pelas igrejas protestantes americanas.
Em resumo, ao se adotar um cântico de outra igreja cristã, é necessário atentar para a teologia de sua letra. Os pioneiros adventistas promoveram versões e adaptações a fim de não contradizer doutrinas e incorporaram nas letras dos hinos as crenças da igreja.
Semelhantemente, ao se buscar renovação, não precisamos descartar a tradição musical da congregação, os cânticos a que muita gente foi acostumada desde sua juventude.
Não é porque as gerações adultas apreciam a música sacra do seu tempo de juventude que se irá impedir os novos cânticos jovens. É bom ter em mente que todo empreendimento de inovação musical precisa ser tratado com cautela e critérios, sem extremismos tradicionalistas ou liberalizantes.
JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo. É professor na PUC-PR e autor do livro Música e Religião na Era do Pop
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.