Como incentivar o uso do novo Hinário Adventista em um contexto de ampla produção, circulação e divulgação musical
Joêzer Mendonça
Quando a Associação Geral publicou o primeiro hinário oficial da Igreja Adventista, em 1869, muitos dos hinos ali selecionados eram conhecidos das reuniões evangelísticas e cultos. Aquele hinário possuía algumas características peculiares:
- Tratava-se de uma compilação de cânticos que estiveram presentes em coletâneas e hinários anteriores à organização institucional da Igreja Adventista do Sétimo Dia, como nas coletâneas editadas por Tiago White.
- Quase a totalidade do repertório vinha de hinários de outras igrejas protestantes. Alguns daqueles hinos são cantados ainda hoje, como “Rocha Eterna”, “Oh Que Amigo em Cristo Temos” e “Foi na Cruz”.
- O repertório, selecionado por Urias Smith e Tiago White, trazia cânticos separados por seções como Bíblia, Sábado, Batismo, Ceia do Senhor, Funeral, Segundo Advento, Juízo, Devoção Familiar, etc.
Essas três características – compilação de cânticos conhecidos, abertura a cânticos de outras denominações evangélicas e seções temáticas – também estão presentes no novo hinário adventista.
Vários hinos tradicionais amados pelas congregações continuam no repertório e somam-se a cânticos mais recentes, alguns bem conhecidos na voz de grupos como Arautos do Rei e Novo Tom, e outros já gravados nos CDs Jovens nos anos 1990 e 2000. Isso não é uma novidade, pois o Hinário Adventista do Sétimo Dia lançado em 1996 incluiu cânticos que haviam sido parte do repertório de grupos vocais como Prisma e Arautos do Rei, e outros que estavam presentes nas coletâneas jovens dos anos 1970, como “Lado a Lado”, “Deus é Tão Bom” e “Caminhando”.
Curiosamente, ao serem integrados ao hinário oficial da igreja, esses cânticos, chamados antigamente de “corinhos”, passaram a ser “hinos”. É interessante ver como a passagem do tempo e o selo institucional atuam no processo de sacralização ou, no mínimo, de consagração das músicas. O que era chamado de “corinho”, ou seja, um cântico inferior, supostamente passageiro, a que nem sempre se dava a chancela de sacro, passou a ser visto como um hino honorável, respeitável, e, 30 anos depois, até tradicional.
Nessa perspectiva, podemos prever que os cânticos provindos dos CDs jovens e infantis incluídos no novo hinário estarão em breve revestidos de uma sacralidade que nem sempre lhes foi concedida desde que foram lançados há 5, 10, 20 anos.
A terceira característica comum aos hinários dos pioneiros do adventismo e ao novo hinário é o objetivo de ressaltar a identidade doutrinária da igreja. Essa prática não é uma invenção adventista, visto que Martinho Lutero, juntamente com outros músicos e teólogos da Reforma Protestante, fazia da música uma ferramenta pedagógica capaz de instruir os novos crentes a respeito de temas caros à Reforma, como a preeminência da Bíblia, o papel mediador de Cristo, a graça redentora e a salvação por meio da fé.
Os fundadores da Igreja Adventista do Sétimo Dia também acreditavam na força educativa dos cânticos. Por isso, seus hinários apresentavam um índice temático em que os hinos selecionados incorporavam a interpretação bíblica distintiva que ressaltava o sábado, o segundo advento e o juízo, mas também reunia doutrinas comuns a outras igrejas evangélicas. Naquele tempo, para suprir a falta de músicas sobre o sábado e o segundo advento, os editores alteravam a letra (hymn) e preservavam a melodia (tune) conhecida. Não é por acaso que o primeiro hinário oficial adventista se chamava Hymns and Tunes For Those Who Keep God’s Commandments and Have the Faith in Jesus (Hinos e melodias para aqueles que guardam os mandamentos de Deus e têm a fé em Jesus, em tradução livre). Um título bastante revelador da percepção teológica da igreja, ainda que apresente certo senso de exclusividade, aliás, bastante característico de denominações evangélicas organizadas nos séculos 18 e 19.
A comissão responsável pela edição do novo hinário recebeu a tarefa de enfatizar as doutrinas por meio da música. De fato, essa estratégia pode ajudar não apenas na escolha de um hino adequado para determinada temática abordada em um sermão, como também serve de instrumento pedagógico da identidade teológica do adventismo. Vale lembrar que, embora o hinário tenha incorporado hinos sobre temas distintivos da teologia adventista, esses hinos ocupam uma pequena parte do repertório. Assim como nos hinários anteriores, o espaço mais amplo é concedido aos temas comuns do cristianismo.
Falei sobre aspectos históricos e temáticos do hinário, mas agora temos uma questão prática: num tempo de acesso facilitado a áudios e vídeos de novos grupos musicais e de diferentes comunidades evangélicas, o hinário não corre o risco de parecer algo antigo, e até obsoleto?
Vivemos em uma sociedade de produtos efêmeros, que perdem sua utilidade rapidamente. Na lógica de consumo contemporâneo, os bens culturais (como a música) se tornam mercadoria e acabam sendo tratados como os próprios aparelhos nos quais são ouvidos ou assistidos. Isto é, quando surge um novo modelo, o antigo é facilmente descartado. Rádios, TVs e toca-CDs se tornaram peças tradicionais diante da possibilidade de se ouvir e assistir o que se quer na tela dos smartphones. O avanço tecnológico tornou mais facilitada a gravação musical e a divulgação e circulação de música feita por cristãos. Isso gerou um cenário em que inúmeros grupos e cantores evangélicos disponibilizam semanalmente músicas e vídeos. Canções novas envelhecem rapidamente, seja pelo consumo e exibição midiática intensas que geram saturação ou pela simples adesão dos ouvintes a uma novidade musical recém-lançada.
Nessa perspectiva de troca incessante de repertório e de rápida saturação de uma música, principalmente entre as gerações que crescem nesse cenário musical-tecnológico-comercial, nenhum repertório cria raízes. Os diretores de música das igrejas têm acesso livre a novos cânticos, podem aprender uma nova música numa semana, ensiná-la à igreja no sábado e depois de 6 meses talvez ninguém mais esteja cantando essa música. As congregações podem se acostumar com esse processo de obsolescência musical. Em certo sentido, o novo hinário vem se contrapor a essa tendência da transitoriedade.
Sugiro então algumas formas de incentivar o uso do hinário. Obviamente, o hinário não é o livro musical de uso exclusivo dos adventistas. Aliás, nenhum hinário ou coletânea tirou de circulação outros cânticos. Mas podemos valorizá-lo pela nossa maneira de o enxergarmos:
- O hinário pode ser visto como um modelo da música congregacional. A abordagem multitemática, a acessibilidade melódica, a justeza poética e a fundamentação teológica podem ser usadas em favor de um movimento de incentivo aos jovens compositores, rapazes e moças que ainda são estudantes de música e sonham em desempenhar um ministério musical na igreja. O hinário pode motivá-los a compor sobre temas variados com beleza poética, força teológica e melodia acessível à congregação.
- O hinário é a Bíblia cantada. Os hinos selecionados conduzem a passagens e contextos bíblicos que servem de inspiração, conforto e comunhão. Geralmente, as músicas atuais de adoração são monotemáticas, tendo como tema predominante o louvor à grandeza de Deus. O hinário, até pelo fato de comportar muito mais músicas, é multitemático, aborda os mais variados temas e doutrinas, respondendo a um universo de situações vividas pelos fiéis no seu dia a dia. O uso do hinário nos cultos individuais e familiares sempre será um facilitador na transmissão e confirmação de princípios, crenças e valores espirituais, além de proporcionar a quem canta (crianças, jovens e adultos) a oportunidade de entoar um hino sobre temas nem sempre favorecidos em sermões ou gravações musicais.
- O hinário é uma ponte entre o passado e o presente da igreja. Os pioneiros da igreja também cantaram músicas que estão no novo hinário. Em seu tempo de vida, eles vibravam com a graça, a salvação e o advento de Cristo quando entoavam esses mesmos hinos que hoje as congregações adventistas podem cantar. Essa percepção nos coloca no mesmo caminho que eles trilharam, nos lembra que continuamos no mesmo rumo, que carregamos a mesma chama. Também nos dá um senso de comunidade, de história, de expressão da mesma razão para agradecer e dar continuidade à jornada.
Pouco adianta ter um novo livro e novas músicas se, ao cantar, não tivermos a atitude sincera de adoração. Tal atitude não diz respeito aos sinais exteriores, como gestos físicos e volume de voz. Claro, o entusiasmo da fé pode levar as pessoas a cantar mais forte e com mais gestos. Mas o sentimento de gratidão e esperança não se revela somente na exterioridade. Deus vê além do gesto. Deus vê o coração de quem O adora em espírito e em verdade, em sinceridade de coração, com propósito de cultuar, com a mente renovada por Cristo.
Cantemos num novo hinário!
JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor dos livros Música e Religião na Era do Pop e O Som da Reforma: A Música no Tempo dos Primeiros Protestantes
Última atualização em 6 de julho de 2022 por Márcio Tonetti.