Inteligências adormecidas

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Entenda o papel crucial do pensamento crítico em uma sociedade saturada pela informação e pela tecnologia
Júlio Leal
Hipnotizados pelas telas, enfeitiçados pelas mídias, já não fazemos distinção entre o interessante e o verdadeiro; entre o verossímil e o real; entre o discurso e os fatos. Foto: AdobeStock

Para nosso bem, às vezes é preciso duvidar da própria inteligência. Pode parecer que não, mas só quem é esperto o suficiente consegue fazer isso. Vigiar a si mesmo evita autossabotagens, entre outros problemas. A médio e longo prazo, é um bom negócio. E embora o DNA da dúvida seja corrosivo e perturbador, ainda assim tem o potencial de restaurar o equilíbrio perdido em um sistema ou cenário regulado por falsas certezas (Pv 3:5). Reconhecer isso é básico num tempo como o nosso, em que juízos sumários, comentários rasos e declarações grosseiras captam mais a atenção e recebem mais aplausos que as coisas com as quais realmente valeria a pena gastar tempo.

Veja, por exemplo, o efeito das notícias falsas que circulam nos meios de comunicação e nas redes sociais. Qual pólvora, propagam-se e fazem estragos dentro e fora do mundo virtual. São como um vírus epidêmico e letal cuja vacina está longe de ser inventada; um vírus temível e, ao mesmo tempo, “desejável”. Desejável? Como assim?! As evidências falam por si mesmas. Convenhamos, passamos batidos com uma frequência fora do normal. Mesmo quando algo parece não encaixar, fazemos vista grossa. “Deixamos rolar”. É um caso para pensar. Se as notícias falsas não fossem “saborosas” em certa medida, por que perderíamos tempo deliciando-nos com elas? Se não as considerássemos relevantes, por que as compartilharíamos? Se, de alguma forma, elas não despertassem em nós nada de especial, por que nos atrairiam? É que por trás das fake news se esconde – mais que um mero descuido no lidar com a informação, mais que a intenção deliberada de enganar e mais que o desejo voraz de lucrar com isso – algo muito mais preocupante e básico: o desperdício de inteligência por pura inércia, tanto a de quem produz as fake news quanto a de quem, infelizmente, as consome.

Algo assim aconteceu com Pío Baroja, o célebre novelista espanhol, capaz de narrar com graça e maestria histórias inventadas por ele mesmo, mas de faltar com a sinceridade em seus ensaios e relatos factuais, ao menos da perspectiva de alguns de seus leitores. Mais sério ainda foi o que ocorreu com o jornalista alemão Claas Relotius, agora apelidado de “o rei das fake news” por ter publicado, numa das revistas mais prestigiosas da imprensa alemã, a Der Spiegel, notícias completamente fabricadas. Durante anos, ele burlou um sistema complexo incluindo um departamento com mais de 60 funcionários encarregados de averiguar a veracidade da informação publicada. Como ele conseguiu essa façanha? Simples: confundiu ambição com ganância, venerando as leis do poder. Esforçou-se para ter uma carreira brilhante, ganhou prêmios, fez um nome, virou celebridade, tornou-se “vaca sagrada” e, quando já era “intocável”, ficou acima do bem e do mal, e ninguém mais se dava ao trabalho de questioná-lo. Isso até que um colega anônimo, corajoso, impertinente e desconfiado, pondo o “pescoço na guilhotina”, seguiu seu instinto investigador e farejou o problema. Assim veio à tona um grande escândalo, motivo de espanto e vergonha para o jornalismo mundial: a compulsão por tornar as histórias atraentes leva alguns a sacrificar a verdade. No afã perfeccionista de não serem meros refletores do pensamento alheio, caem no erro oposto: exaltam a criatividade e o talento pessoal acima da ética e da razão.

Inteligências adormecidas são armas perigosas, mais perigosas até que as raquíticas e desnutridas. São sementes estéreis. Estão lá, mas não mostram a que vieram, não fazem a diferença. Foram cauterizadas, entorpecidas. São artigos meramente ornamentais. Brilham no escuro, mas sua luz não clareia; ofusca. Aparentam o que não são. Desviam-se por sendas escuras, rastejam como se não fossem capazes de voar, chafurdam na lama em vez de se erguerem acima das misérias humanas, algo difícil de fazer quando as limitações intelectuais são grandes demais.

Os estudos de Piaget demonstraram que a inteligência nos permite interagir com o mundo, interpretá-lo, modificá-lo e nele sobreviver. Em função dela, tanto o sujeito como o ambiente poderão passar pelas adaptações necessárias, serão bem-sucedidos, garantirão sua existência. Será, então, que viver de aparências em nossa sociedade é um meio de garantir a existência? Será que contar mentiras é uma forma viável de sobreviver? Será que funcionar no automático e economizar massa cinzenta fazem de nós pessoas mais bem adaptadas e mais felizes? Pão e circo apenas bastarão para saciar a fome de nossa alma?

Na sociedade da aprendizagem, na era da informação, comportamo-nos às vezes como pequenos bits ingênuos e destrambelhados que não sabem nadar num mar revolto de terabytes insensíveis que nos tragam sem remorso algum. Assim, por uma questão de sobrevivência talvez, somos tentados a ficar boiando na superfície, a confiar nas vozes autorizadas, não por causa de sua familiaridade, procedência ou honra, mas por falta de uma canoa menos furada que essa. Nós nos rendemos. Capitulamos. Desistimos. Daí o blecaute, o curto-circuito, a pane dentro da caixa preta. Daí o comentário acertado de Sébastien Charles em Os Tempos Hipermodernos: “Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos” (p. 27, 28).

Por essa razão, nunca antes na história foi tão crucial a necessidade de pensar, analisar, refletir. Nunca antes tantas pessoas tiveram a chance real de fazer isso livremente e, nunca antes, esse sofisticado “privilégio” esteve ao alcance de tantos. O curioso, contudo, é que não aumentou apenas a oferta de informação e saber, mas também a de toda sorte de entretenimento, e este seduz bem mais que as (tediosas) reflexões “filosóficas” e as disciplinas intelectuais. Hipnotizados pelas telas, enfeitiçados pelas mídias, já não fazemos distinção entre o interessante e o verdadeiro; entre o verossímil e o real; entre o discurso e os fatos. O experimento científico feito por Milgram sobre conformidade social nos ajuda a entender o porquê. Quando obedecemos a certas autoridades (médicos vestidos de branco, policiais fardados, doutores diplomados, cavalheiros distintos e engravatados, pessoas de prestígio em geral), tendemos a ficar off-line em nossa mente e a transferir para o outro a responsabilidade pelos nossos atos e pensamentos. Ou seja, “paramos” de raciocinar e “seguimos o mestre” sem questionar, sem perguntar, sem nos expor, para não parecermos bobos nem petulantes. Submetemo-nos ao efeito manada, comportamo-nos como massa, turba, multidão. Obviamos a ética. Despersonalizamo-nos. Deixamos de ser gente; viramos uma “coisa”.

É nesse ponto que fraquejamos diante da sedução do poder e sacrificamos nossos princípios. É aí que cedemos à pressão da maioria e perseguimos com mais força o tipo de sucesso que é socialmente valorizado. É nesse momento que silenciamos nossa consciência moral, justificamos nossas decisões mais polêmicas, racionalizamos, ludibriamos, damos de ombros, extorquimos, nos enquadramos e, depois, tentamos seguir com a vida, dormir sem tranquilizantes.

Tudo isso tem um preço que acabamos por pagar mais cedo ou mais tarde, quer em nossa vida coletiva, quer na individual. E quando isso acontece, vemos então as falhas e as contradições que há na ideia de que só vale o que funciona. Nesta luta livre em que estamos, neste mundo cada vez mais tenso, imperfeito e complexo, pendurar o cérebro como quem aposenta uma chuteira velha não é, definitivamente, a melhor resposta para os problemas que temos hoje e que, certamente, ainda haveremos de ter amanhã.

JÚLIO LEAL é pastor, doutor em Educação e editor de livros didáticos na Casa Publicadora Brasileira

SAIBA +

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Última atualização em 1 de março de 2019 por Márcio Tonetti.