Entenda por que a saúde espiritual depende da capacidade para assumir a imperfeição e a maldade inerentes à condição humana
Existem diversas maneiras e motivos para se assumir um erro. Às vezes, fomos pegos em flagrante e simplesmente não o podemos negar, daí fazemos mea culpa. Outras vezes o ofendido pode revidar com força ou nos expor publicamente, daí dar o braço a torcer pode se tornar um ato de inteligência pura e calculista, um meio de atenuar o castigo ou de evitar o assassinato de uma reputação meticulosamente construída. Também podemos fazer isso numa tentativa de nos redimir, de recuperar a confiança perdida. Seja como for, nem sempre a razão subjacente ao pedido de desculpas é a melhor.
Isso ficou patente na polêmica recente em torno do ator José Mayer, que teria protagonizado, nos bastidores da Rede Globo, cenas de assédio sexual contra a figurinista Susllem Meneguzzi Tonani. Em sua justificativa formal, publicada numa carta divulgada pela mídia no dia 4 de abril, o ator atribui ao machismo típico de sua geração parte da responsabilidade por seu, digamos, deslize.
Desculpas aceitas? Talvez não. Desculpar-se não é fácil. Perdoar muito menos. Embora, do ponto de vista cristão, o ideal fosse não impor condições para oferecer o perdão a alguém que se diz arrependido, a maioria de nós, na prática, seleciona bem as circunstâncias nas quais decidimos ser benevolentes. Diante de falsos arrependimentos, normalmente somos mais duros e inclinados a nos portar como justiceiros. Perguntamo-nos: Será que ele teria confessado se não tivesse sido descoberto? Teria se desculpado sem ser pressionado? Mudaria de atitude se não houvesse nenhum tipo de punição possível? Obviamente não dá para saber. São só conjecturas de uma mente consternada diante de uma ação no mínimo imprópria, para ser suave nas palavras. É impossível não julgar. Nosso juiz interno quer dar o veredicto. Porém, julgar e condenar são duas coisas bem diferentes.
Mas voltemos ao réu. Tal como o sacerdote Arão, irmão de Moisés, o ator global e tantos outros, todos nós temos uma tendência a racionalizar sobre nossos motivos e ações. Freud explica. Esse sofisticado recurso mental é um dos principais mecanismos de defesa do ego, segundo Sigmund e Anna Freud, fundadores da psicanálise. Arão fez uso disso quando, questionado por ter forjado um bezerro de ouro para satisfazer o impulso idolátrico de um povo rebelde recém-saído do Egito, ele disse: Eu só joguei o ouro no fogo, aí saiu esse bezerro! (Êx 32:24) Um passe de mágica. Será? Arão tremeu na base e, como todo mundo faz de vez em quando, jogou a culpa em alguém, livrou-se da batata quente: Foi o povo! Ele disse a Moisés: Bem sabes, meu senhor, que esse povo é inclinado ao mal, é de dura cerviz. Dura cerviz? Arão não percebia que o teimoso ali era ele. Ele é que não queria ver sua parcela de responsabilidade dentro da situação, como ocorreu no caso do “assédio global”, que levou dezenas de mulheres igualmente sensíveis a esse tipo de humilhação a se identificarem com a dor e a infâmia.
A confissão sincera e o perdão são os dois principais elementos da única fórmula capaz de conter essa bola de neve. O terceiro elemento, às vezes dispensável, é a punição. Porém, para falar desse último eu precisaria de um espaço extra do qual não disponho nestas poucas linhas. Por ora, então, deixemos as coisas assim.
A confissão de Arão é bastante reveladora. Diz de sua dificuldade para situar dentro de si mesmo a responsabilidade ou causa de suas ações. Os psicólogos que teorizam sobre a atribuição de causalidade para os comportamentos humanos dizem que alguns de nós têm uma inclinação para externalizar essas causas, na tentativa de expurgar suas culpas e medos. Foi o que Arão fez. A dificuldade da prova justifica a desonestidade e a cola? Para alguns, sim. De fato, é nas provas mais difíceis e arbitrárias que a maioria dos alunos recorre a esse expediente, sem remorsos, sem dores de consciência. É sob pressão que cedemos. É na pobreza que alguns encontram a justificativa para roubar (embora ricos também roubem!). Depois dizem que a ocasião faz o ladrão. Faz… ou revela?
Arão revelou a insegurança emocional que sempre teve, a fraqueza moral de alguém amante dos aplausos, firme como uma maria-mole, pouco preparado para manter uma opinião impopular frente ao critério divergente da maioria. Ele racionalizou seu comportamento atribuindo à dificuldade das circunstâncias a responsabilidade, ao menos parcial, pelo ocorrido. Acusou o povo. Acusou Moisés de ser impaciente (Êx 32:22). Indiretamente acusou Deus de pô-lo num beco sem saída. Em outras palavras, passou a bola, não se arrependeu. Quem se arrepende de verdade não se justifica; no máximo se explica, e às vezes nem isso.
A história da humanidade é pródiga em arrependimentos incompletos e simulados: Judas, faraó, Acã, Saul, Balaão… A longa lista poderia até incluir a mim e a você! A esse respeito, Ellen White escreve em Patriarcas e Profetas: “Há uma grande diferença entre admitir fatos depois que os mesmos foram provados, e confessar pecados apenas conhecidos por nós mesmos e Deus. […] O verdadeiro arrependimento é mais que tristeza pelo pecado. É uma decidida renúncia ao mal.” (p. 498, 557).
Em suma, a saúde espiritual depende da capacidade para assumir a imperfeição e a maldade inerentes à condição humana. “Eu te confessei o meu pecado e não escondi a minha maldade. Resolvi confessar tudo a ti, e tu perdoaste todos os meus pecados” (Sl 32:5, Nova Tradução na Linguagem de Hoje).
Por outro lado, nossa saúde psicológica e emocional depende do nosso equilíbrio e sensatez ao situarmos dentro ou fora de nós as “culpas” associadas a nossos erros. Às vezes você precisará relativizar um pouco – não racionalizar, mas relativizar –, para não correr o risco de afundar na depressão. Outras vezes, precisará fazer mea culpa – não para satisfazer a uma exigência social, legal ou institucional –, mas porque é a coisa certa a ser feita.
JÚLIO LEAL é pastor, doutor em Educação e editor de livros didáticos na Casa Publicadora Brasileira
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.