Entenda como ele pode ser intencional, em vez de acidental, e parcial, em vez de total
Tem gente que pensa que perdoar é esquecer. Não é. Amnésia não é perdão. E justamente por isso, tem gente que sofre além do necessário com lembranças dolorosas das quais nunca consegue se livrar. São como vulcões adormecidos. Quando menos esperamos, elas entram em erupção, nos assustam, nos arrebatam, nos espancam, nos humilham e insistem em nos mostrar que, aparentemente, o passado não passa; fica lá, soltando fumaça, emitindo radiação, prometendo lava e fogo, tirando o sono, aterrorizando… É preciso entender essa realidade, descobrir o que significa e aprender a lidar com tudo isso.
Charles Carl Roberts não pôde entender. Ele não conseguia esquecer o que lhe havia acontecido. Daí, aos 32 anos de idade, num dia fatídico, que ficaria para sempre na história dos Estados Unidos, ele saiu de casa, deixando para trás a mulher e seus três filhos. Telefonou depois para avisar que não iria voltar. Então, na vila de Bart Township, no condado de Lancaster, Pensilvânia, no dia 2 de outubro de 2006, às 10h25, com um rifle, um revólver, uma pistola semiautomática e 600 balas, ele entrou numa escola e fez vários reféns, dentre eles muitas crianças, 15 das quais liberou depois: todos meninos, nenhuma menina. Em seguida, Charles matou cinco meninas com idade entre seis e treze anos e, finalmente, suicidou-se. Na carta que deixou, confessou que estava irado contra Deus. Charles, como pai magoado, nunca havia perdoado Deus por “ter deixado que a pequena Elise Victoria morresse”. A menininha nasceu doente, em 14 de novembro de 1997, e só viveu 20 minutos. Charles nunca superou essa perda. Quase dez anos depois, seu vulcão interior entrou em erupção, e as consequências foram catastróficas. Feridas não curadas, ressentimentos alimentados, sensibilidades exageradas, mágoas represadas, perdões negados… quanta dor e aflição podem trazer!
Por isso, faz muito sentido ler na Bíblia conselhos e exemplos como os do apóstolo Paulo, um homem profundamente marcado pela vida, perseguido por muitos, maltratado por tantos, prisioneiro no cárcere – não da emoção, mas das circunstâncias –, da idade, de um tempo de intolerância, de um mundo mau. Ele escreveu: “Esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo” (Fl 3:13 e 14). Paulo entendeu o óbvio: Não dá para andar para frente sem deixar o peso morto para trás. É preciso soltar certas coisas para poder pegar outras. Antes de enchermos as mãos de bênçãos, precisamos esvaziá-las daquilo que não é bênção ou que deixou de ser. Alguns nunca conseguem entender ou praticar isso, lamentavelmente! O profeta Jonas, por exemplo, tinha essa dificuldade. Seu forte senso de justiça não lhe permitia se alegrar com aqueles “malditos ninivitas” que, sem merecer, receberam o perdão de Deus e, assim, escaparam da destruição iminente. Jonas não sabia perdoar. Deus sim (Jn 4:11).
O Deus da Bíblia é o Deus dos recomeços. Quem a cada dia não deseja ter um recomeço enfrentará dificuldade para entendê-Lo e aceitá-Lo. Eu senti isso naquela senhora que conheci certa vez, na casa de um amigo, num culto de pôr do sol. Ela contou como a infância dela tinha sido destruída por uma mulher estranha que entrou na vida do pai, fazendo-o abandonar a mãe dela e trazendo um sofrimento indescritível para toda a família. “Ainda me lembro daquele vestido amarelo que ela usou para ir ao sepultamento de minha mãe. Nunca vou esquecer! Não me peça para entregar a minha mágoa a Deus. Isso é tudo o que tenho. Foi tudo o que me restou.” Pois é. Ou a mágoa, ou Deus. Ou o abismo escuro do não perdão, ou as novas portas e janelas que Deus abre para seu futuro. Cada um de nós tem que escolher. Todo ano-novo, cada novo dia é uma oportunidade. Deus zera a sua conta. Você pode continuar no vermelho, se quiser, mas Ele não quer. Você pode, sim, viver leve, se realmente quiser. Foi por isso que Ele carregou nosso fardo. Ele promete leveza agora e, muito em breve, vida perfeita no Céu.
Para tanto, você precisa aprender a praticar os três perdões. Primeiro, perdoar a Deus. O profeta Jonas infelizmente não conseguiu (Jn 4:2). Charles Roberts também não. Outros conseguiram. Outros ainda estão lutando com Deus, como Jacó. Esses serão vitoriosos! Segundo, é preciso perdoar a si mesmo, entender que só o adulto maduro que você quer se tornar pode perdoar a criança boba que você foi ou o adolescente inconsequente que ainda mora em você. O autoperdão cura, sobretudo se Deus derramar nele a Sua graça e a sabedoria necessária para você entender os limites do humano, um problema que o plano redentor de Deus logo vai solucionar de uma vez por todas. O terceiro e último perdão – para alguns o mais difícil – é o que você dá àquele que o ofendeu, feriu, humilhou e o tratou com injustiça ou sem lhe dar o devido valor e atenção. Você deve perdoá-lo não apenas pelo que ele fez, mas por quem ele é. O resto é assunto de Deus e, às vezes, da polícia, do juiz, do chefe, da diretoria. Não ponha condições. Você se frustrará. Sei do que estou falando. Deus perdoa você incondicionalmente, dependendo apenas de sua aceitação, de nada mais. Seu perdão não pode ser superior ao perdão divino, portanto, não o condicione a uma mudança de atitude. Só perdoe. Liberte o encarcerado e deixe-o ir embora, ainda que ele volte para o crime. Isso já não é assunto seu. Lembre-se de que brincar de Deus pode não ser nada divertido no final…
Perdoar e esquecer são coisas bem diferentes. Mesmo assim, eu diria que, para termos um dia melhor, um ano melhor, uma vida melhor precisamos “esquecer”, ou seja, abandonar as coisas que ficam para trás e avançar, assim como a Bíblia ensina. Entenda. A palavra usada para “avançar”, no texto de Filipenses, nos ajuda a compreender por que perdoar não pode ser sinônimo de esquecer. Em grego, epektéino significa “estirar-se para a frente” como o atleta olímpico que, na corrida, já perto da linha de chegada, se estica e se inclina para a frente com todo o seu corpo, a fim de bater a meta, cruzando a linha que o separa da vitória que ele persegue. Um atleta não deve se deixar levar nem pelos aplausos que recebe durante a maratona, nem pelas vaias e xingamentos que venha a sofrer. Deve, por assim dizer, “esquecer” tudo isso, ignorar, para não se distrair. Tampouco deve ceder à dor e à pressão interna do próprio corpo, cuja resistência pode ser posta à prova e levada a um extremo quase insuportável.
O lado bom do esquecimento é que ele pode ser intencional, em vez de acidental, e parcial, em vez de total. O que alguns chamam de “esquecer” pode ser, na verdade, a habilidade para controlar a atenção; a capacidade de se concentrar seletivamente apenas naquilo que vale a pena; não desmontar o cenário, mas direcionar o canhão de luz, para que o espetáculo seja como tem que ser. É a meta que nos faz “esquecer” as coisas ruins que acontecem. A realidade não muda, nós é que mudamos, treinando e controlando nosso olhar, nosso foco, nossa emoção. Li certa vez, pichada num muro, a seguinte frase: “Obstáculos são aquelas coisas medonhas que você enxerga quando perde de vista seus objetivos”. Não perca o alvo. Não perca a meta. Não desvie o olhar. Não ceda. Não aceite menos. Não negocie o inegociável. Mas perdoe sem esquecer. Seja nobre. Perdoe lembrando! Ou melhor, lembre-se, mas aprenda a “deixar para trás”. Enterre. Mesmo sabendo o endereço da sepultura, mesmo sentindo às vezes o mau cheiro do defunto, enterre-o. Assim como prometeu, Deus há de fazer novas todas as coisas e, nesse dia – não antes – desaparecerá toda e qualquer “lembrança das coisas passadas”. Dali em diante, “jamais haverá memória delas” (Is 65:17). Até lá, deixe o passado passar e prossiga. Não só o seu futuro, mas também o seu presente depende disso. Conselho de amigo.
JÚLIO LEAL é pastor, doutor em Educação e editor de livros didáticos na Casa Publicadora Brasileira
SAIBA +
Al-Hussaini, Hana; Les amish sous le choc. L´Éxpress. 3 out. 2006. Disponível em: <lexpress.fr/actualite/monde/les-amish-sous-le-choc_460437.html>. Acesso em: 26 dez. 2017.
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Morales, Lourdes E.; Eu perdoo, mas… por que é tão difícil? Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010.
Última atualização em 9 de janeiro de 2018 por Ruben Santana.