Quando o talento dá as cartas

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Entenda por que pessoas talentosas e persuasivas têm maior responsabilidade diante de Deus e para com a sociedade

Júlio Leal

Crédito da imagem: Adobe Stock

O talento e a inteligência encantam as pessoas, e seu efeito transformador ajuda a moldar suas opiniões e preferências. Não que isso seja ruim em si mesmo, de forma alguma. Valorizar o que é bom, belo e verdadeiro não é nenhum crime. Pelo contrário, em certa medida, é isso que faz a humanidade avançar, expandindo suas fronteiras, concorda? Mas o que dizer do potencial que as pessoas de grande talento, inteligência e prestígio têm para alterar a verdade ou fazer o que é bom parecer ruim e vice-versa? Seria possível, com bons argumentos e boa performance, vender gato por lebre e se dar bem fazendo o mal? Olhe à sua volta e responda por si mesmo. O poder da influência e a capacidade para gerar mudanças estão cada vez mais nas mãos de pessoas talentosas e cada vez menos sob o domínio daqueles que, no passado, agiam em nome da tradição ou por força da autoridade. Cabe, portanto, perguntar: De fato, a sutileza, o tato, a capacidade de persuadir, o peso da boa argumentação, a diplomacia, as boas maneiras definem o justo valor das ideias, dos sentimentos e das coisas?

NÃO CONFUNDA TALENTO COM POPULARIDADE

Nem sempre o que soa bem aos ouvidos é bom para a alma. Nem tudo que agrada o paladar é bom para o estômago. Aparências enganam. Entretanto, às vezes, pagamos um alto preço por um espetáculo fugaz, ainda que, por muito tempo, nosso bolso reclame. Isso tudo tem que ver com o modo em que nossa sociedade tem se organizado e com o valor que hoje se dá ao que está ao alcance da vista e provoca nosso desejo. Dentro dessa nova realidade, ser capaz de cativar, persuadir e convencer é como acertar na loteria. Desde que o mundo virou uma “aldeia global” e a internet se transformou em outdoor, quem sabe mercar, vende; e quem sabe vender, sai no lucro e passa a dar as cartas. Talento e mercado nunca estiveram tão bem relacionados, e seu raio de alcance jamais havia sido tão abrangente. Fora desse aquário, hoje, nenhum peixe sobrevive e nada mais parece ter relevância.

Dizer coisas interessantes, saber captar a atenção ou ser atraente agora são itens de primeira necessidade. A ideia de que “beleza não se põe em mesa” envelheceu rápido demais. Agora ela é o prato principal, senão o único. Daí outras virtudes igualmente importantes ficaram em segundo plano, por exemplo, coerência, parcimônia, cortesia, visão de futuro, valorização do que é essencial. Nossa sociedade está apostando tudo na estética e no impacto da desejabilidade social. Como resultado, estamos engolindo camelos e nos engasgando com mosquitos. Em outras palavras, aquilo ou aquele que tiver poder para atrair as pessoas, ­impressioná-las, agradá-las, seduzi-las e deixá-las confortáveis consigo mesmas, ganha. De outro modo, nenhuma mudança é aceitável ou bem-vinda. As sereias venceram. Odisseu caiu. O futuro chegou, e poucos imaginavam que seria assim! São as telas e os holofotes que dizem se você existe ou não e informam se quem você é (e o que faz) têm alguma serventia ou não. A imagem pôs as letras no bolso. A popularidade e o prestígio roubaram a cena. Quem está fazendo gols ganha as medalhas. Quem fica nos bastidores, que lave as toalhas! E lá vamos nós.

Nas infovias em que trafegamos o tempo inteiro, o que importa já não é quem faz, mas quem faz acontecer. E quem faz acontecer é quem é visto. Por isso, dizem alguns, “quem não é visto é esquecido”. Dentre os cinco sentidos que nos conectam ao mundo, a visão finalmente conseguiu obter o primeiro prêmio. Na época da Revolução Industrial, éramos duas mãos ativas. Na era digital, somos um par de olhos vivos. Assim como nossa sociedade vem sendo objeto de reengenharia, nosso cérebro está sendo, de igual maneira, redesenhado. Por essa razão, popularidade deixou de ser uma meta, um sonho ou uma possibilidade; passou a ser um dever moral. A visibilidade social, por sua vez, transformou-se na qualidade de indivíduos com “luz própria”, daqueles que “nasceram para brilhar”. Por causa disso, o silêncio e o comedimento deixaram de ser considerados modéstia ou traço de personalidade e se converteram em fracasso. Discrição virou defeito. Ser conhecido passou a ser tudo. Ser procurado, tudo. Ser aplaudido, tudo. Ser lembrado, tudo. Ser desejado, tudo que alguém poderia querer; moeda de troca, capital de giro, pódio.

É nesse panorama que duas coisas curiosas e inovadoras estão acontecendo: as celebridades passam a filosofar abertamente sobre a vida e os filósofos passam a arrastar multidões, tornando-se célebres fora de suas diminutas confrarias e obsoletos círculos intelectuais. Daí, a verdade que não é palatável perde relevância, porque entender é mais importante que saber. A ciência que não é digerível perde espaço, porque fazer é mais importante que saber o que fazer. O orador cujas palavras não encontram eco perde o púlpito, porque aprovação é mais importante que veracidade ou probidade. A ditadura dos ditadores compete com a ditadura das multidões. Difícil saber qual delas é a pior. “Tempos momentosos”, diria Ellen White.

TALENTO, VIRTUDE E FAMA NÃO SÃO A MESMA COISA

Saudosismo à parte, os novos tempos nos desafiam a repensar o valor do talento, tanto profissional quanto artístico. Quer seja inato, quer aprendido, o talento se projeta para o mundo e para a vida como algo positivo e revolucionário, capaz de despertar o melhor que há em nós, de inspirar o crescimento, de evocar uma resposta franca, de nos fazer sair da zona de conforto, de despertar dentro de nós o gigante adormecido. Essa é a questão, e aí também mora a grande contradição. Nunca dantes houve tanta sede de virtude e tanta expectativa em torno da coerência entre o ser e o dizer. E nunca, no passado recente, foi tão difícil explicar o que ser coerente, afinal, quer dizer. O problema não está no talento. Ninguém questiona o valor do talento e seu poder para atrair e influenciar. O talento pode tocar todos os corações, mas só melhora alguns deles, infelizmente. Por quê? Porque, sem caráter, o talento amplia o fosso que separa as pessoas umas das outras e as afasta, inclusive, de si mesmas. Cria um mundo onde alguns agem enquanto outros só reagem; onde alguns brilham enquanto outros só pagam a conta de luz; onde alguns trazem a mensagem enquanto outros só acolhem alegremente o mensageiro (como se mensagem e mensageiro fossem a mesma coisa, sem tirar nem pôr). Desejamos (e até exigimos) dos demais coerência e perfeição, mas esquecemos que a única encarnação plena entre vida e ensinos, ninguém, até hoje, além do Homem de Nazaré, conseguiu alcançar.

Nossa sociedade está apostando tudo na estética e no impacto da desejabilidade social. Como resultado, estamos engolindo camelos e nos engasgando com mosquitos

Por isso, não dá para falar de talento sem falar de identidade. E, ao menos neste momento da História, não dá para falar de identidade sabendo, com certeza, do que estamos falando. Quinze séculos de filosofia parecem ter sido pouco para nos ajudar a enfrentar os desafios que nos espreitam a cada esquina, a cada tese, a cada like, a cada post, a cada notícia, a cada tweet de alguém famoso, cuja opinião sensata ou impensada somos impelidos a comentar ou repostar. Embora andem juntos com frequência, talento, virtude e fama não são a mesma coisa; espero que você já tenha percebido isso. E tomara que tenha percebido também que ideias esdrúxulas podem ser bela e habilmente promovidas por quem tem talento. Acontece de vez em quando. Isso porque a cereja do bolo não diz do sabor da massa, mas vende o produto. Fique atento. A estética nunca é neutra, mas às vezes é ambígua. É como as antigas especiarias trazidas da Índia: disfarça o que é ruim e aumenta o valor do que já era bom. Isso acontece porque coisas bonitas e experiências interessantes deixam nossos cérebros anestesiados. Controlam nossas reações diante do incontrolável, daquilo que nos supera, devido à sua intensidade, sensibilidade e poder. Ficamos hipnotizados, absortos, perplexos, entorpecidos. Sentimo-nos agradecidos, satisfeitos, plenos. Suspendemos por um instante nosso juízo de valor. Baixamos a guarda. Brincamos com cavalos de Troia. Flertamos com o mal.

Como sociedade, estamos a ponto de sepultar uma era em que os gênios das artes e das ciências não recebiam muito mais que homenagens póstumas e um tardio reconhecimento de que eles eram pessoas para além de seu tempo. Recentemente, porém, inauguramos um século no qual somos constrangidos a aplaudir de imediato aqueles que são ovacionados pelas multidões a despeito de não impactarem, senão “esteticamente”, a vida de quem quer que seja. Estamos perdidos em uma cortina de fumaça e, aparentemente, não nos importamos com isso, pois clarividência se tornou uma virtude arrogante, suspeita, solipsista e tediosa. Nesse contexto, alguns dirão provocativamente: “Se somos prósperos e felizes, qual o problema? Carpe diem!” O problema é que, embora as emoções sejam parte significativa da existência, existir em um mundo de hiper-realismo requer de nós a capacidade de ir além daquilo que nossos sentimentos autofabricados sugerem. Requer ir além do prazer; ir além da dor.

Viver dói. Pensar dói. A realidade dói. Por essa razão, coragem e resiliência nunca foram tão essenciais quanto agora. Talvez o peso da existência hoje não seja maior que o suportado pelos ombros de nossos pais e avós, que viveram em tempos de guerra, imobilismo, escassez e privação. Talvez a percepção da dor é que tenha mudado, junto com a ideia de que o prazer a que temos direito deva ser autorregulado, e jamais controlado externamente, como era no passado. Mas – atenção! – a nova estética é filha de uma nova ética, não o contrário. Talvez o problema de nossa era seja justamente essa (sedutora) sensação de que merecemos mais, o desejo intenso de não ser incomodado por ninguém, o direito que conquistamos de ignorar o outro sob a alegação de que não é possível se conectar a ele se negligenciarmos a nós mesmos. O espelho se quebrou. Entre mim e você existe um mundo a ser explorado – todos sabemos disso –, mas a viagem não precisa começar pelo meu umbigo. Portanto, não deixemos que ir à Marte se torne mais importante que investigar o que está acontecendo aqui e agora.

INTELIGÊNCIA É DIFERENTE DE ESPERTEZA

O que está acontecendo é que as verdadeiras virtudes humanas têm concorrentes bem enganosos e sutis que, devido às suas semelhanças, são ­ameaças reais. Umas são figuras; as outras são sombras. Porém, é relativamente fácil confundi-las. E isso ocorre porque os tons de cinza, tão valorizados e celebrados em nossos dias, saltaram das telas dos pintores para as telas dos consumidores de produtos digitais e deixaram de ser objeto de entretenimento de uma elite artística ou intelectual, passando a povoar o imaginário e o dia a dia dos residentes de cada esquina do planeta, onde quer que haja um poste de luz e uma antena de telefonia celular. Os claro-escuros e lusco-fuscos trazidos à luz pela arte barroca nunca sonharam em ir tão longe. A roda da moralidade foi reinventada. Por isso, a “antiga escola” dos valores cristãos tenta hoje, por um lado, resistir e, por outro, procura se recriar a fim de não se tornar indigesta e garantir, pelo menos, que será compreensível para esta geração.

Numa geração passada, porém, uma veterana e pioneira do adventismo escreveu, no ano de 1899, as seguintes palavras, de admoestação: “Há jovens que têm certa espécie de esperteza que é reconhecida e admirada pelos companheiros, mas sua habilidade não é santificada […] e Deus não a pode usar para benefício da humanidade e [para a] glória de Seu nome. Sob o disfarce de religião, suas habilidades estão sendo usadas para estabelecer normas falsas, e, ao olharem para eles, os não convertidos sentem-se desculpados por causa de seu procedimento errado. […] Têm habilidade, mas é indisciplinada; possuem capacidade, mas não cultivada. Foram-lhes dados talentos, mas empregam-nos mal e degradam-nos pela tolice, arrastando outros para seu baixo nível” (Mensagens aos Jovens, p. 31). Mais claro que isso, impossível. Talento é bênção. Mal-usado, porém, é maldição.

“Não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes, a vitória, nem tampouco dos sábios, o pão, nem ainda dos prudentes, a riqueza, nem dos inteligentes, o favor” (Ec 9:11). “Não é a posse de esplêndidos talentos que nos ajudará a vencer” (Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 237). “Habilidades e talentos não são os únicos fatores decisivos quando se trata de alcançar resultados” (Alf Lohne, O Amanhã Começa Hoje, p. 23). Beleza, inteligência, talento, boa oratória, nada disso é bússola. É apenas motor. Sendo assim, quando você pisar no acelerador, por favor, primeiro, use o cinto de segurança e, segundo, tenha cuidado com o rumo que toma. O ano, a marca e o modelo de seu carro não são tão importantes quanto o lugar para onde você está indo.

JÚLIO LEAL é pastor, professor e escritor

(Artigo publicado originalmente na edição de março/2023 da Revista Adventista)

Última atualização em 20 de março de 2023 por Márcio Tonetti.