A humilhação da cruz

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Ao ser pregado no madeiro, Cristo suportou a vergonha e a dor em nosso lugar

Carlos Olivares

Crédito da imagem: Adobe Stock

É comum que as representações artísticas da crucificação retratem Jesus parcialmente nu. Isso significa que, embora Seu peito, Seus braços e Suas pernas apareçam descobertos, geralmente as imagens do calvário mostram o Salvador usando algum tipo de tabardo frontal. Talvez, com o objetivo de tornar a mensagem da cruz acessível a todos. Mas será que existem evidências bíblicas e históricas que apoiem isso? Ou Cristo teria sido crucificado nu?

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Aplicada pelos romanos, a crucificação foi um dos castigos mais cruéis e desumanos do passado. Embora os cidadãos romanos estivessem isentos desse tipo de execução, alguns casos específicos mostram que essa regra poderia ser quebrada. Por volta do século I, por exemplo, Cícero acusou Caio Verres, ex-governador da Sicília, de crucificar sem provas suficientes um cidadão romano acusado de espionagem (Cícero, Verr. 5.165-168; cf. Suetônio, Gal. 9.1). Em sua descrição, ele afirma que o crucificado estava nu (Cícero, Verr. 5.158, 161).

Um retrato compartilhado pelo historiador grego Dionísio de Halicarnasso, a respeito da crucificação de um escravo sentenciado à morte por seu mestre, também mostra que ele havia sido despojado de suas roupas (Dionísio de Halicarnasso, Ant. Rom. 7.69.1-2; Artemidoro, Oneir. 2.61). Em ambos os relatos, o elemento comum que os une é a nudez das vítimas na crucificação, indicando um provável costume romano no que diz respeito ao referido castigo.

A tradição oral judaica não menciona a crucificação, mas descreve como era o procedimento nos casos de apedrejamento (m. Sotah 3:8; Sanh. 6:3). Embora seja verdade que alguns permitiam que os condenados caminhassem até o local da execução cobrindo suas partes íntimas, há relatos de que essas pessoas deveriam ser despidas assim que chegassem lá (c. Sanh. 6: 3).

Entretanto, no Novo Testamento não vemos um procedimento semelhante ao que é descrito nas fontes orais. Por exemplo, ao serem apedrejados, Estêvão e Paulo aparentemente estavam vestidos (At 7:59; 14:19). No entanto, é importante considerar que esses casos devem ser interpretados como vinganças espontâneas e não como julgamentos oficialmente sancionados e organizados. Já a crucificação de Jesus ocorreu após um julgamento popular, aprovado por Roma (Mt 27:1-26; Mc 15:1-15; Lc 23:1-25; Jo 18:28–19:16). Portanto, é possível que a tradição descreva uma prática seguida pelo judaísmo no tempo de Jesus.

Tanto Mateus quanto Marcos concordam que, depois de zombarem de Jesus e O maltratarem, os soldados romanos O vestiram e, em seguida, O levaram para ser crucificado (Mt 27:31; Mc 15:20). O fato de Cristo estar vestido no caminho do Pretório ao Gólgota parece supor que os romanos estivessem respeitando a tradição judaica mencionada anteriormente, que permitia que o condenado cobrisse suas partes íntimas no caminho até o local da execução. 

Porém, os evangelhos concordam que, ao chegarem no Gólgota, os soldados repartiram as vestes de Jesus (Mt 27:35; Mc 15:24; Lc 23:34; Jo 19:23), dando a entender que talvez Jesus tenha sido pendurado nu na cruz. Contudo, uma conclusão desse tipo deve ser examinada sob outras perspectivas e requer avaliar os argumentos contrários que parecem contradizê-la.

Inicialmente, devemos atentar para o fato de que, na Bíblia, a palavra nudez retrata pessoas desprovidas de qualquer tipo de vestimenta (Gn 2:25; 3:7, 10-11; Ne 4:23), bem como indivíduos parcialmente vestidos (Jó 22:6; Ez 18:7; Mt 25:36). Para determinar o tipo de nudez que o autor bíblico tem em mente, o intérprete deve examinar o contexto. É por causa dessa variedade semântica que alguns sustentam que Jesus não foi crucificado nu. Soldados romanos teriam mostrado respeito por Jesus, crucificando-O com algum tipo de cobertura. Afinal, o relato bíblico não indica que Jesus foi crucificado nu.

Os evangelhos concordam que, ao chegarem no Gólgota, os soldados repartiram as vestes de Jesus, dando a entender que talvez Jesus tenha sido pendurado nu na cruz

No entanto, isso é difícil de ser provado. Antes da crucificação, os soldados cuspiram Nele e O espancaram, zombando do “rei dos judeus” (Mt 27:27-31; Mc 15:16-20). Essas ações evidenciaram total insensibilidade para com o crucificado. Os soldados continuaram agindo dessa forma mesmo quando Jesus já estava crucificado (Lc 23:36). É verdade que eles provavelmente fossem sensíveis à tradição judaica, concordando que Jesus caminhasse parcialmente vestido até o Calvário (Mt 27:31; Mc 15:20). Mas a tradição judaica também autorizava o despojamento do culpado ao chegar ao local de sua sentença. Portanto, os romanos estavam livres para aplicar a punição seguindo o padrão usual, ou seja, despindo e humilhando o culpado.

Outros consideram o problema estabelecendo diferenças semânticas com a palavra vestuário. Todos os quatro evangelhos relatam que os soldados lançaram sorte sobre as vestes de Jesus (Mt 27:35; Mc 15:24; Lc 23:34; Jo 19:23). O termo grego para vestimenta é himation, que, dependendo do contexto, descreve uma vestimenta usada sobre roupas íntimas (Mt 9:20; 24:18; At 7:58). De acordo com o relato de João, Jesus Se despiu da sua himation para lavar os pés dos discípulos (Jo 13:4, 12). Ou seja, Jesus deixou de lado Seu “manto” para realizar o ritual. Dessa perspectiva, os soldados teriam tirado apenas a roupa “exterior” de Jesus, permitindo que Ele usasse uma que cobrisse Suas partes íntimas.

Porém, observe que, no momento da crucificação, ocorre algo diferente. Os soldados lançam sorte sobre as “roupas” de Jesus (ta himatia). Ao descrever o traje de Jesus no plural, a cena pode ser interpretada como significando que os soldados despojaram Jesus de mais de uma roupa, e não apenas do manto (cf. Ap 16:15). Isso explica porque Marcos afirma que foi lançada sorte “sobre eles” (Mc 15:24). João lança luz sobre a expressão no plural ao observar que, enquanto os soldados levaram as “roupas” de Jesus (ta himatia), eles também “levaram a Sua túnica, que não tinha costura, tecida de alto a baixo” (Jo 19:23).

O termo grego que algumas versões do texto bíblico (incluindo a NVI) traduzem como túnica é o substantivo chit?n, que geralmente descreve a vestimenta que estava sob o manto. São duas palavras diferentes, mas que se complementam. A título de exemplo, em Atos lemos que as viúvas lamentaram a morte de Dorcas e mostraram a Pedro “as túnicas [chit?nas] e as vestes [himatia]” que ela havia confeccionado (Atos 9:39). Dessa diferenciação entre manto (himation) e túnica (chit?n) pode-se entender que Jesus foi despojado de ambas as vestes pelos soldados (Mt 27:35; Mc 15:24; Jo 19:2, 3). Portanto, pelas evidências apresentadas, Ele deve ter sido crucificado nu.

Na cultura greco-romana, como em muitas culturas hoje, a nudez pública denotava humilhação (Plutarco, Quest. rom. 274 A; Juvenal, Sat. 1.73). Da mesma forma, a nudez pública era vista de forma negativa no judaísmo antigo (Jub. 3:21-22, 30-31; 7:8-10, 20). Ideia semelhante é repetida na Bíblia, pois tanto o Antigo quanto o Novo Testamento associam negativamente a nudez à vergonha, descrevendo cenas de opróbrio e rejeição social (Gn 9:20-24; Is 20:4; Ez 16:36; 1Co 12:23; Ap 3:18).

Desse modo, embora o condenado pudesse se deslocar parcialmente nu até o local em que seria morto, sua honra era destruída no momento da crucificação. Segundo os evangelhos, líderes religiosos, soldados, transeuntes e a própria mãe de Jesus viram o Filho de Deus ser crucificado (Mt 27:32-56; Mc 15:21-32; Lc 23:26-43; Jo 19:17-27).

Assim, Jesus experimentou humilhação pública, sendo ridicularizado em todos os sentidos (Mt 27:39-44; Mc 15:29-32; Lc 23:36, 39). Ao ocupar o nosso lugar, Cristo suportou a vergonha e a dor (Is 53:2-9; Fl 2:5-11; Hb 12:2). Mas foi graças a esse elevado preço pago na cruz que a nossa salvação se tornou possível.  

CARLOS OLIVARES é professor de Novo Testamento no seminário teológico do Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)

Última atualização em 6 de abril de 2023 por Márcio Tonetti.