A mulher nos tempos da Bíblia

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Embora a cultura ocidental veja o “empoderamento” das mulheres como uma conquista recente, novos estudos têm mostrado que elas já exerciam influência em várias áreas no contexto do Antigo Testamento
CHRISTIE G. CHADWICK
Se quisermos ter uma compreensão mais ampla da condição da mulher no Antigo Testamento, precisamos considerar quanto do retrato feminino no período vem da Bíblia e de outras fontes primárias e quanto é fruto de pressuposições do mundo ocidental moderno. Foto: Lightstock

Em 2017, o termo “feminismo” foi eleito pelo dicionário Merriam-Webster como “palavra do ano”. O interesse dos internautas pelo tema parece ter sido reflexo das diversas manifestações que ganharam repercussão internacional, como a Marcha das Mulheres (que levou milhares às ruas depois das afirmações polêmicas de Donald Trump) e os protestos de celebridades contra abusos sexuais cometidos por famosos de Hollywood.

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Não é de hoje que as mulheres lutam por direitos iguais, reconhecimento, espaço e respeito. No fim do século 19, elas começaram a se mobilizar, reivindicando o direito ao voto, educação e trabalho. Hoje, apesar de ainda existirem desigualdades entre os sexos, as mulheres têm desempenhado um protagonismo maior, ocupando posições de destaque em várias áreas.

O “empoderamento” feminino (para usar o neologismo que se popularizou nos últimos anos) é o tema do momento. Mas, embora a tendência da maioria das pessoas seja a de ver o protagonismo das mulheres como uma conquista recente do mundo ocidental, seu poder e influência também podem ser vistos em períodos anteriores. Apesar da imagem estereotipada que alguns têm da mulher na cultura dos tempos bíblicos, estudos etnográficos e arqueológicos recentes têm ajudado a desconstruir alguns mitos.

Na realidade, se quisermos ter uma compreensão mais ampla da condição da mulher no Antigo Testamento, precisamos considerar quanto do retrato feminino no período vem da Bíblia e de outras fontes primárias e quanto é fruto de pressuposições
do mundo ocidental moderno.

Uma leitura superficial favorece um retrato limitado e distorcido da vida das mulheres no período monárquico de Israel. Por outro lado, se fizermos um estudo aprofundado, acompanhado de uma análise interdisciplinar, perceberemos que seu valor e influência foram muito além da esfera doméstica.

NA ESFERA DOMÉSTICA

Em um artigo publicado em março de 1991 na revista Biblical Archaeologist, Carol Meyers afirma que, na sociedade do Antigo Oriente Próximo, o contexto doméstico envolvia aspectos econômicos, sociais, educativos e até mesmo políticos e religiosos. Nessa cultura, a casa era economicamente autossuficiente e independente.

O retrato advindo do texto bíblico demonstra que a mulher era respeitada como autoridade dentro de casa. Um exemplo foi Abigail, esposa de Nabal, a quem seus servos informaram e obedeceram sem questionar, mesmo quando ela foi contra a determinação do próprio marido (1Sm 25:14, 18-19). Outra evidência da autoridade feminina tem que ver com o fato de que, na maioria dos casos, era ela quem escolhia o nome dos filhos.

Porém, o desenvolvimento histórico e o progresso tecnológico parecem ter mudado essa condição. De uma unidade doméstica economicamente independente, passou-se a valorizar o trabalho que resultava em maior contribuição econômica, algo que, nas sociedades modernas, sempre foi exterior ao âmbito doméstico e, ao longo dos séculos, tem sido dominado pelo sexo masculino. A partir do período helenístico, isso causou uma depreciação do poder econômico da mulher, diminuindo sua influência e autoridade dentro e fora da casa, conforme analisou W. C. Trenchard no livro Ben Sira’s View of Women: A Literary Analysis (1982, p. 57, 94).

Outro aspecto interessante é que, no contexto do Antigo Testamento, frequentemente as mulheres eram associadas ao preparo de alimentos. Tamar foi chamada para assar bolos para seu irmão Amnom (2Sm 13:8); a viúva de Sarepta estava prestes a preparar o último bocado de pão quando Elias foi ao seu encontro (1Rs 17:12). Esse era apenas um dos passos no complexo processo de produção do principal item da dieta israelita antiga. O relato bíblico indica que, no plantio e colheita, ambos os sexos tomavam parte (Rt 2:8-9). No entanto, segundo Carol Meyers, o processamento do grão e a produção do pão ficavam a cargo das mulheres (Rediscovering Eve: Ancient Israelite Women in Context, 2013, p. 128).

O fato de terem sido encontrados implementos e instalações para moer e assar em casas da época evidencia que o trabalho era feito no âmbito doméstico. Também foram achadas estatuetas e pinturas que retratam mulheres no processo de moer o grão e preparar a massa. Porém, durante o período helenístico, as ferramentas manuais começaram a ser substituídas por moinhos mais eficientes, movidos por animais. Por volta desse mesmo período, o pão passou a ser produzido fora de casa, em padarias especializadas, tirando das mãos das mulheres parte do valor econômico da produção de comida, além de isolá-las, já que a atividade geralmente era realizada com outras integrantes da comunidade.

A tecelagem também é retratada dentro e fora da Bíblia como uma atividade feminina desenvolvida em conjunto. Por demandar tempo e habilidade, tinha alto valor econômico (Pv 31:13, 19, 21-22, 24), que também diminuiu a partir do período helenístico, com a invenção tecnológica do tear duplo.

FORA DE CASA

A mulher desse período tinha autoridade e presença dentro e fora de casa, em praticamente todas as esferas da vida diária: social, política e religiosa. Foto: Lightstock

Em 1 Samuel 8, por exemplo, vemos que o trabalho da mulher não estava limitado ao âmbito doméstico. De acordo com Nahman Avigad, diversos selos encontrados por aqueólogos estampavam nomes de mulheres, o que oferece pistas de seu papel em transações econômicas e políticas (Corpus of West Semitic Stamp Seals, 1997, p. 30 e 31).

Três mulheres com grande poder político e religioso são descritas nas Escrituras: Maaca, rainha-mãe que foi deposta pelo próprio filho (1Rs 15:13); Atalia, que se fez rainha em lugar dos netos e estabeleceu um templo a Baal em Jerusalém (2Rs 11:1-20); e Jezabel, que reinou ao lado de Acabe e estabeleceu o culto a Baal em Israel (1Rs 18; 21:1-15).

NA MÚSICA

Elas também tinham participação no canto e na música instrumental. Apenas para citar alguns exemplos, mulheres cantaram e tocaram instrumentos ao receber o exército de Israel depois da vitória contra os filisteus (1Sm 18:6-7). A canção de Ana, relatada no capítulo 2 de 1 Samuel, evidencia que algumas também eram compositoras.

Em um estudo sobre sexo, gênero e música, T. W. Burgh demonstrou a participação ativa de mulheres em performances musicais no Egito, Mesopotâmia, Fenícia, Filístia e Israel (Listening to the Artifacts: Music Culture in Ancient Palestine, 2006, p. 44-105). Ou seja, essa prática parece ter sido bem aceita culturalmente tanto no contexto israelita quanto fora dele.

NA RELIGIÃO

Apesar de não haver sacerdotisas no sistema ritual e religioso tradicional israelita, as mulheres não eram excluídas do processo de adoração e sacrifício. Ana foi ao templo sozinha para pedir a Deus um filho (1Sm 1:9-12). Depois de ter sua oração atendida, ela levou Samuel ao templo para os rituais de dedicação e do voto nazireu (v. 24 e 25).

No mesmo período, há menção a mulheres que trabalhavam na entrada do templo. Apesar de a Bíblia não detalhar quais eram suas funções e tarefas (1Sm 2:22), o verbo hebraico utilizado nesta passagem (tsov’ot) é o mesmo usado para descrever a função dos levitas em seu serviço no templo (Nm 4:23; 8:24). Considerando o lugar das mulheres no culto de Israel, P. Bird sugere que elas preparavam as refeições sacrificiais (Ancient Israelite Religion, 1987, p. 406).

Durante os séculos seguintes do período do Primeiro Templo, igualmente foi permitido o acesso das mulheres às áreas públicas do edifício sagrado. Elas também tinham liberdade para consultar os profetas (1Rs 14:2-3; 2Rs 4:22-23). Além disso, era comum sua participação em atividades rituais e em festivais religiosos, como indicado pela expectativa do marido da sunamita de que ela procurasse o “homem de Deus” (Eliseu) em um dia religioso.

Contudo, conforme Ziony Zevit, as evidências arqueológicas sugerem que as mulheres estavam mais envolvidas com o culto doméstico do que com o oficial centralizado no templo (The Religions of Ancient Israel: a Synthesis of Parallactic Approaches, 2001, p. 554 e 555).

O papel da mulher no período monárquico de Israel antigo parece ser, portanto, significativamente diferente do retrato geral imaginado nos dias de hoje sobre aquele período. A mulher dessa época tinha autoridade e presença dentro e fora de casa, em praticamente todas as esferas da vida diária: social, religiosa e política. A mulher tinha poder para realizar transações comercias (Pv 31), negociar questões militares (2Sm 20:15-22), governar (1Rs 15:13; 21:8-11; 2Rs 11:1-3) e participar de rituais religiosos (1Sm 1:24-25; Jr 7:18).

A imagem da mulher como propriedade masculina, limitada ao ambiente doméstico, sem poder político ou comercial, parece vir de um tempo posterior ao retratado nas descrições da época dos reis de Israel e Judá. Provavelmente seja proveniente do período helenístico.

Assim, se levarmos em conta o contexto histórico-cultural do Antigo Oriente Próximo, o retrato apresentado a respeito das mulheres no texto bíblico é muito positivo. Embora alguns continuem vendo a Bíblia como um livro machista, ela tem muito a
nos ensinar sobre o valor e o papel da mulher.

SAIBA +

SABEDORIA FEMININA

Foto: Lightstock

Atos de sabedoria são igualmente associados à figura feminina no texto bíblico. Abigail, esposa de Nabal, é uma que recebe esse título (1Sm 25:3). Joabe busca uma mulher sábia em Tecoa para convencer Davi a levar Absalão de volta a Jerusalém (2Sm 14:2). Nos capítulos seguintes, vemos que uma mulher de Abel Bete Maacá negocia com ele em favor da cidade, desempenhando o papel de uma anciã influente (2Sm 20:15-22). Outro exemplo é o da rainha de Sabá, que viajou para testar a sabedoria de Salomão com “perguntas difíceis” (1Rs 10:1). Na cultura hitita, segundo D. P. Wright, mulheres de idade também eram consideradas sábias e responsáveis pela instrução das mais jovens, educando as novas gerações em práticas rituais (The Disposal of Impurity in the Priestly Writtings of the Bible with Reference to Similar Phenomena in Hittite and Mesopotamian Cultures, 1984, p. 36-38, 102, 246).

CHRISTIE G. CHADWICK, doutora em Arqueologia Bíblica e História do Antigo Oriente pela Universidade Andrews (EUA), é professora no seminário teológico do Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)

(Artigo publicado na edição de março de 2018 da Revista Adventista)

Última atualização em 15 de março de 2019 por Márcio Tonetti.