Conheça a realidade da Igreja Adventista no país e as possibilidades que se abrem para a missão com a histórica reaproximação entre a ilha dos irmãos Castro e os Estados Unidos
Márcio Tonetti
A primeira visita de um presidente americano a Cuba em quase nove décadas, fato que repercutiu mundialmente nesta semana, representou um marco histórico no processo de reabertura política pelo qual vem passando a ilha dos irmãos Castro. A expectativa é que esse acontecimento favoreça não apenas o desenvolvimento econômico e melhore a vida da população, mas também contribua para um cenário de maior liberdade religiosa.
Uma das reuniões entre o governo cubano e o presidente dos Estados Unidos contou com a participação de 20 líderes religiosos que atuam na ilha. Para o presidente da Igreja Adventista em Cuba, pastor Aldo Perez, um dos convidados, “esse foi um momento histórico, uma vez que a igreja foi colocada entre as personalidades tanto do governo quanto da área religiosa no país”. “Tivemos a oportunidade de testemunhar de maneira eloquente nesse contexto de uma reconciliação entre Estados Unidos e Cuba”, declarou Perez à Adventist Review.
A reaproximação dos Estados Unidos e Cuba vem abrindo caminho para que os cubanos voltem a ter acesso à Bíblia e compartilhem sua fé (leia mais sobre isso aqui). Desde 1969, quando a distribuição das Escrituras foi abertamente proibida pelo regime comunista, até recentemente, os poucos exemplares disponíveis precisavam ser mantidos escondidos e com frequência eram apreendidos pelas autoridades locais. Na tentativa de levar literatura bíblica para o país, centenas de missionários foram presos ao longo dos últimos 50 anos. Porém, apesar das restrições que ainda existem para as igrejas, as fronteiras tem sido abertas para a pregação do evangelho aos habitantes da ilha.
Uma evidência disso é que neste mês um grupo de pastores, professores e alunos da Universidade Andrews (EUA) viajou para a ilha com o objetivo de promover um projeto evangelístico. Além de pregar em várias igrejas de Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país, eles doaram equipamentos para as igrejas locais e destinaram recursos para a manutenção de equipes de evangelismo.
Nesta entrevista concedida ao portal da Revista Adventista, Lisandro Staut, jornalista e mestrando em Teologia pela Universidade Andrews, conta como foi participar da iniciativa. Ele também explica como o país vem se abrindo para o cristianismo e, por outro lado, esclarece quais restrições ainda dificultam o avanço da missão.
Qual é a realidade da igreja hoje em Cuba? O país reúne quantos adventistas e quais são suas principais instituições?
Cuba é um país único, tanto como nação como para a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Em meio a uma população de menos de 12 milhões de habitantes vivem quase 35 mil adventistas. A União Cubana, órgão que administra a igreja na ilha, é dividida em quatro sedes: as associações Central, Oeste, Oriental e do Amanhecer. A única instituição mantida pela igreja é o Seminário Teológico Adventista de Cuba.
Que tipo de resistência os adventistas (e os cristãos em geral) ainda enfrentam para praticar e pregar sua fé?
Após a revolução de 1959, o regime comunista não proibiu completamente o exercício da fé, mas fez de tudo para inviabilizá-lo. O governo punia com prisão qualquer um que praticasse “excessos”. Líderes religiosos de todos os seguimentos enfrentaram essa realidade. Porém, nos últimos anos, o cenário mudou bastante e a perspectiva é de mudanças ainda maiores. Mas algumas restrições ainda existem, como a proibição de construção de novos templos. Apenas aqueles construídos antes de 1959 podem ser reformados livremente. Erguer novos templos é terminantemente proibido. A saída é usar o que eles chamam de “casas de culto”, ou home church, residências transformadas em local de reuniões. Entre as restrições que afetam a igreja também está a impossibilidade de organizações terem imóveis, automóveis ou outros bens patrimoniais. Ou seja, as casas que se transformam em igrejas precisam permanecer no nome de pessoas físicas. Além disso, por falta de recursos e devido à proibição de acesso à internet fora dos espaços regulados pelo governo, os sistemas de secretaria e de tesouraria das igrejas são todos feitos manualmente. Somado a isto, o trabalho da tesouraria deve ficar sob responsabilidade do próprio pastor, pois é o único autorizado pelo regime a gerenciar os recursos da igreja.
Quais as maiores necessidades da igreja lá?
Podemos dizer que uma das maiores necessidades da igreja em Cuba é a financeira. Nesse país onde muitos são apaixonados por Cristo, os recursos são escassos. Para se ter uma ideia, o salário do pastor, que segue os padrões gerais estipulados pelo regime socialista cubano, é de aproximadamente vinte dólares americanos, o que equivale a menos de cem reais por mês. Comparando esse salário com o custo médio da reforma ou construção de uma “casa de culto” com capacidade para cem pessoas, que é de cerca de 20 mil dólares, se percebe que a ajuda realmente precisa vir de fora. A mesma necessidade existe em relação a equipamentos como computadores e projetores de vídeo.
Mas até que ponto o governo cubano permite a entrada de recursos externos?
O caminho para apoiar a igreja em Cuba passa pela própria estrutura administrativa mundial da denominação que tem abertura para remeter fundos visando à manutenção de seus servidores no país. Por outro lado, essa ajuda também é possível através de iniciativas como o projeto que foi organizado pela Universidade Andrews neste mês (saiba mais adiante). Cada missionário pode entrar em Cuba com três mil dólares americanos. No caso dos recursos provenientes do projeto Care For Cuba, o dinheiro foi integralmente utilizado na compra de equipamentos e na manutenção de equipes de evangelismo.
Qual foi o impacto da visita do presidente Barack Obama a Cuba?
O povo cubano sabe que, na prática, o regime socialista fracassou. Em conversas que tive com cidadãos comuns, um deles me disse “todo cubano tem uma bandeira americana pintada na testa”. Por isso, a expectativa sobre a visita do presidente americano era grande. É claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido. E eles têm consciência disso. Mas, sem dúvida, o maior impacto foi a esperança de um futuro melhor para o país.
No âmbito religioso, o que deve mudar com esse processo de reabertura política no país? Que mudanças já ocorreram?
Mesmo o cubano mais sedento pela abertura política do país sabe que muitos riscos estão envolvidos. Um deles é o que eles chamam de “ódio represado.” Há um temor geral de que não haja uma transição pacífica e que isso possa afetar toda a sociedade, inclusive a igreja. Mas, a longo prazo, pode surgir um problema ainda maior. Há pouco mais de um ano, o acesso à internet passou a ser autorizado em pontos como praças e outros estabelecimentos. Apesar de o acesso à rede não ser permitido nas casas ou instituições, a conexão limitada já representou, de certo modo, uma janela para o mundo. Contudo, nas palavras de um dos entrevistados, “o cubano não está acostumado com a liberdade” e a livre oferta de todo tipo de conteúdo pode afetar, evidentemente, a igreja.
Como foi o projeto do qual você participou juntamente com outros estudantes da Universidade Andrews?
Pelo quarto ano consecutivo, o Seminário da Andrews enviou um grupo de estudantes e professores à ilha cubana. Em 2016 foram 31 pessoas. Além de estudantes do Mestrado em Divindade e do diretor e idealizador do projeto, Luiz Fernando Ortiz, os pastores Dwight Nelson e Ron Whitehead também fizeram parte da delegação. O grupo se dividiu para atender congregações adventistas de Santiago de Cuba, a segunda maior cidade do país, cuja população é de aproximadamente meio milhão de habitantes. Mais do que uma oportunidade de prática de evangelismo para os estudantes, esse é um projeto que também viabiliza recursos para a igreja trabalhar. Com o apoio de doadores, trouxemos dezenas de computadores e projetores de vídeo, mais de cem bicicletas foram adquiridas e oferecidas a instrutores bíblicos, e até mesmo cavalos e burros foram providenciados para aqueles que trabalham nas regiões montanhosas. Da parte dos estudantes, mesmo os itens pessoais trazidos nas malas para os 11 dias do projeto ficaram na país. Como resultado do trabalho de seis meses dos instrutores bíblicos, da participação dos estudantes e da semana de colheita ministrada pelo pastor Dwight Nelson no teatro Heredia, mais de 250 batismos foram registrados, segundo cálculos preliminares da Associação Oriental Cubana.
(A edição de junho da Revista Adventista trará reportagem especial do jornalista Lisandro Staut sobre os desafios e avanços da pregação do evangelho em Cuba, bem como a respeito da realidade do adventismo em países como China e Coreia do Norte)
Última atualização em 15 de janeiro de 2021 por Rafael.