As lentes do santuário

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Mais do que uma crença distintiva do adventismo, o santuário é a chave para entendermos toda a verdade bíblica

Adriani Milli Rodrigues

Foto: Adobe Stock

O fato de o santuário ser o centro da teologia e do pensamento adventista tem sido mal interpretado por algumas tradições religiosas. Existe a ideia de que, ao fazermos isso, substituímos Jesus por uma estrutura da antiga aliança, o que seria um indicativo de que ainda precisamos descobrir a graça. De certo modo, isso deriva de outro elemento comum em grande parte da tradição cristã, a saber, a compreensão de que o Antigo Testamento ficou para trás. Nesse caso, o santuário seria coisa do passado, uma vez que toda a sua base de articulação é o AT. Outra objeção frequentemente apresentada é a de que, se Cristo perdoa e esquece nossos pecados, por que haveria a necessidade de um juízo investigativo?

Afinal, se Jesus é o centro das Escrituras, por que enfatizamos tanto o santuário? Não estaríamos caindo no legalismo? Que respostas poderiam ser dadas a essas críticas?

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Na realidade, não há dicotomia entre o santuário e Jesus. Ao enfatizarmos o ministério sacerdotal de Cristo, por exemplo, de modo algum estamos diminuindo a cruz, mas valorizando a obra que nosso Salvador passou a desempenhar no Céu depois do Calvário. Semelhantemente, tudo no santuário construído no deserto apontava para o plano da salvação por meio do Cordeiro de Deus. Mas alguns ainda têm dificuldade de entender isso, o que é um reflexo da tendência de separar Jesus das doutrinas. Você já ouviu pessoas dizerem que amam Jesus, mas não querem saber de doutrinas? De fato, é possível falarmos de doutrinas sem que Jesus esteja no centro delas, mas é igualmente perigoso quando ocorre o inverso.

Certa vez, após uma palestra que proferi, alguém me abordou dizendo que seu interesse era somente por temas cristocêntricos. Ver sua igreja se dividir por causa de discussões doutrinárias tinha lhe causado bloqueios e traumas. Para exemplificar que uma coisa está ligada a outra, procurei mostrar que a convicção a respeito da divindade de Cristo e Sua encarnação, ensinamentos com os quais ela concordava plenamente, tem que ver com cristologia (doutrina de Cristo); a realidade do pecado e a necessidade de um Salvador que morreu numa cruz remete à soteriologia (doutrina da salvação); e a crença de que Cristo voltará pela segunda vez, de maneira visível, diz respeito à escatologia (doutrina dos eventos finais). Só para citar alguns exemplos.

Uma abordagem verdadeira sobre Cristo leva ao campo doutrinário, sem o qual não é possível conhecê-Lo verdadeiramente. Sem contar que as diferenças doutrinárias também revelam, em última instância, tipos diferentes de Cristo. Afinal, estamos falando do Cristo que supostamente “aboliu” a lei ou do que não a revogou? Daquele que virá secretamente para salvar alguns ou do que voltará de maneira visível para salvar a todos? Você compreende?

Ao falar sobre o santuário precisamos fugir de informações soltas, levando as pessoas a entenderem que ele está dentro de uma lógica narrativa

Como podemos perceber, os detalhes fazem a diferença. Nesse sentido, a forma como enxergamos o Antigo Testamento é fundamental para entendermos a obra salvífica de Cristo sem perder de vista o significado de Sua ministração em nosso favor no santuário celestial.

ÚTERO INTELECTUAL

O teólogo escocês Thomas F. Torrance compreendia que Israel é o “útero intelectual” da compreensão messiânica, no sentido de que o Antigo Testa­mento fornece “ferramentas conceituais” para o entendimento prévio e adequado de Cristo (Incarnation: The Person and Life of Christ [InterVarsity Press, 2008], p. 41). De maneira similar, podemos dizer que o santuário, tema crucial do Antigo Testamento e centro da vida de Israel, não é uma mera doutrina entre outras, mas um princípio hermenêutico de articulação de outras doutrinas. Toda ideia, para ser melhor assimilada, precisa passar por um processo de “gestação”. Isso porque a aprendizagem requer tempo para a melhor articulação do conhecimento. No processo educativo de Deus também é assim. O Antigo Testamento representa cerca de 4 mil anos de revelação. Ou seja, o Messias não caiu de paraquedas, por assim dizer. Havia uma estrutura para que, quando Ele viesse, pudesse ser devidamente reconhecido e compreendido. É verdade que nem todos do Seu próprio povo O reconheceram/aceitaram, mas pessoas de outras nações vieram para adorá-Lo, a começar pelo contexto de Seu nascimento.

Encontramos de maneira abundante o santuário no Antigo Testamento. É o lugar no qual as ideias foram sendo processadas e os conceitos formados, não de maneira abstrata. Tendo em vista que os rituais do santuário não mais fazem parte do nosso cotidiano, essa realidade pode ser mais teórica para nós hoje. Mas, no dia a dia do povo do Antigo Testamento, consistia em algo absolutamente prático, palpável e concreto. Tratava-se de um sistema pedagógico, tendo uma função hermenêutica.

NEUTRALIZAÇÃO HERMENÊUTICA DO SANTUÁRIO

É provável que estejamos acostumados a pensar no santuário como um tema doutrinário entre outros, no contexto do pensamento bíblico-adventista. Mas esse pensamento é absolutamente problemático para nossa compreensão doutrinária. Mais especificamente, considerar o santuário como um tema entre outros significa neutralizar a força do santuário no pensamento adventista, visto que o santuário tem caráter eminentemente hermenêutico na articulação teológico-doutrinária. Em outras palavras, neutralizar hermeneuticamente o santuário consiste em tirar dele o caráter de “útero intelectual”, a partir do qual interpretamos o todo do pensamento bíblico-doutrinário. Por isso, a doutrina do santuário não pode ser colocada apenas como mais uma entre outras. Na verdade, ela é a doutrina por meio da qual enxergamos as demais. Essa é sua função hermenêutica ou interpretativa.

CHAVE DE INTERPRETAÇÃO

Assim como uma casa com vista panorâmica, o santuário é a janela por meio da qual vemos o plano da salvação de uma perspectiva ampliada. Usando outra analogia, podemos dizer que ele também funciona como uma placa indicativa. O santuário dos israelitas não cumpria uma função em si mesmo, mas abria a compreensão para entender outras coisas.

O santuário permite entendermos não somente as doutrinas bíblicas, mas a própria identidade e missão da igreja

Ellen White também interpretou o que ocorreu nos primórdios do adventismo por uma ótica semelhante: “O assunto do santuário foi a chave que desvendou o mistério do desapontamento de 1844. Revelou um sistema completo de verdades ligadas harmoniosamente entre si, o qual mostrava que a mão de Deus havia dirigido o grande movimento adventista e indicava novos deveres ao esclarecer a posição e obra de Seu povo” (O Grande Conflito [CPB, 2021], p. 358).

Nessa declaração, percebemos que a pioneira usou ainda outra metáfora, ao comparar o santuário a uma chave hermenêutica que abriu a visão para a compreensão de um sistema completo de verdades. Assim como os primeiros discípulos diante da crucifixão, os pioneiros do adventismo ficaram desapontados com o fato de Jesus não ter retornado em 22 de outubro de 1844. Certamente, a mão de Deus estava conduzindo tudo, mas o que foi necessário para entender isso? A resposta é: a chave do santuário que abriu a visão não apenas para o que tinha acontecido, mas para a missão do movimento profético adventista. Assim foi possível compreender melhor a posição e obra desse povo.

COMPREENSÃO CORRETA

Por mais que possa parecer complexo, o tema do santuário precisa ocupar um lugar central no púlpito de nossas congregações e na vida dos membros. Visto da perspectiva correta, ele nos ajuda a ter a compreensão precisa das doutrinas como um sistema harmonioso e uma noção clara da identidade da igreja.

Se você fosse explicar para alguém de outra denominação cristã o que é a Igreja Adventista, o que diria? Que nossa igreja é praticamente igual às demais, com a diferença que guardamos o sábado e evitamos comer alguns tipos de alimentos? Esse pode ser um resumo do adventismo, mas trata-se de uma definição bastante limitada.

O livro de Salmos pode ser um bom ponto de partida para explorarmos essa riqueza de perspectivas em nossas igrejas, pois ele conecta o santuário à experiência religiosa e à vida de adoração

Vamos pensar no sábado, por exemplo, a partir da ótica de um “sistema harmonioso de doutrinas”. Qual é a relação do sétimo dia com o santuário? Em primeiro lugar, é preciso ter em vista a importância do sábado para a lei de Deus, que tem total conexão com o santuário. De fato, a lei não apenas está presente nessa estrutura, mas se encontra no compartimento mais importante, uma vez que foi colocada no lugar santíssimo. Desse modo, quando colocamos a lei dentro do santuário, podemos entendê-la melhor. O santuário é o ambiente que abriga a lei de Deus, e ela é a referência principal, que inclui o sábado, para todos os ritos e serviços do santuário. Se o santuário é a forma privilegiada do povo de Deus contar com a presença relacional do Senhor, os mandamentos de Sua lei dizem algo acerca dessa presença. Assim, quando inserimos nossa compreensão da observância do sétimo dia no contexto do santuário, particularmente em termos de detalhamento da presença relacional de Deus com Seu povo, compreendemos de maneira mais ampla seu papel e significado.

Além disso, Deus configurou o santuário para ser uma chave que abre nossa compreensão no que diz respeito aos Seus planos se cumprindo ao longo da história; isto é, um processo profético que culminou no surgimento de um povo escolhido para a missão especial de proclamar as três mensagens angélicas, último convite divino ao mundo. Portanto, se perdermos a noção do santuário, consequentemente não teremos uma visão doutrinária completa nem uma concepção clara da identidade profética da igreja e para onde ela caminha.

No passado, era comum que alguém que deixasse de ser adventista não se filiasse a nenhuma outra denominação. Hoje parece que o quadro mudou um pouco. Será que, em parte, esse fenômeno não está atrelado ao risco de perda dessa identidade profética?

LÓGICA NARRATIVA

Sem dúvida, o tema do santuário está presente ao longo da Bíblia. Mas existem alguns pontos de concentração, dentre os quais destacam-se os que estão no quadro abaixo.

Evidentemente, poderíamos começar falando sobre o santuário em Gênesis, uma vez que ali vemos altares, sacrifícios e outros elementos interligados. Porém, de modo detalhado, o santuário aparece de maneira mais forte em Êxodo. Aliás, é curioso notar que a saída do Egito ocupe menos da metade do livro (apenas os primeiros 12 capítulos). Dos capítulos 13 ao 40, o tema predominante é o santuário. De fato, o clímax do livro é a inauguração do santuário, cuja conclusão está no último capítulo. Êxodo apresenta instruções detalhadas sobre o santuário (capítulos 25-30) e, então, traz informações específicas sobre a construção do tabernáculo no deserto (capítulos 35-40), enfatizando que o que fora construído estava de acordo com a orientação divina, conforme indicada anteriormente.

Mas há algo que introduz o tema da construção do santuário: a aliança. Antes, o povo era dominado pelo faraó, que o escravizou. Contudo, após a libertação do Egito, Deus Se torna o rei dos israelitas, lutando por eles e guiando-os em meio às intempéries do deserto. O Senhor desejava que eles fossem Seu povo e que Ele fosse o Deus deles. Essa linguagem bíblica da aliança denota um relacionamento sendo estruturado.

O povo passou a ter uma constituição, uma lei que regeria o relacionamento com Deus. No processo de estruturação da aliança, vemos as tábuas da lei, escritas pelo Senhor no “cartório do Sinai”, sendo entregues a Moisés. As vias do contrato estavam sendo autenticadas pelo próprio Deus. No entanto, Ele não entregou somente as tábuas da lei. Moisés desceu o Sinai trazendo também o plano de construção da estrutura que iria abrigá-las (compare 35:18 com 24:12 e veja o conteúdo apresentado entre essas duas passagens). O santuário seria o palácio do Rei e Sua lei estaria ali.

Por isso, o primeiro item do santuário a ser descrito é a arca da aliança, dentro da qual se encontrariam as duas tábuas da lei (veja 25:10-16). Curiosamente, o santuário é descrito de dentro para fora. E o livro de Êxodo termina no capítulo 40 com a inauguração dessa estrutura.

Uma vez inaugurado, o tabernáculo precisava funcionar. Então, temos o livro de Levítico dizendo como seria a dinâmica de todo esse complexo que envolveria serviços sacerdotais, rituais de sacrifício e festas no calendário da nação. E todo o serviço do santuário descrito em Levítico tem que ver com o fato de a lei estar ali. Com base nos serviços do santuário, podemos aprimorar nossa compreensão de como os rituais desempenhavam um papel essencial na conexão entre a presença de Deus e o relacionamento do Seu povo com Ele. Tais serviços informam, de maneira bastante concreta, nossa compreensão da grandeza e da santidade de Deus, bem como do Seu amor e Seu desejo de Se relacionar e salvar Seu povo. Além disso, os rituais do santuário nos ensinam sobre a realidade do pecado, da purificação, do perdão e da salvação, entre outros temas teológicos.

Por sua vez, o livro de Salmos pode ser chamado de “gigante adormecido do santuário”, pois trata do tema mais do que imaginamos. Para a maioria das pessoas, esse não é o primeiro livro da Bíblia que vem à mente quando se pensa no tema. No entanto, Salmos apresenta muita coisa sobre o santuário. Aliás, ele era o hinário do templo, trazendo, inclusive, os cânticos de peregrinação para o próprio santuário.

O Salmo 23, um dos mais conhecidos, termina com a seguinte declaração: “Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do Senhor para todo o sempre” (v. 6). Aliás, o livro de Salmos pode ser um bom ponto de partida para explorarmos essa riqueza de perspectivas em nossas igrejas, pois ele conecta o santuário à experiência religiosa e à vida de adoração.

Isso mostra que o santuário não está presente apenas nos livros de Daniel e Apocalipse, que abordam o tema da perspectiva profética, e em Hebreus, onde vemos Cristo atuando como nosso sumo-sacerdote no santuário celestial, feito não por mãos humanas (Hb 9:24). Além disso, ele se situa dentro de uma lógica narrativa, articulando um sistema harmonioso de crenças no contexto da história do relacionamento de Deus com Seus filhos. O santuário é, portanto, a chave para avaliarmos a vida de maneira diferente, compreendendo adequadamente as verdades bíblicas. A partir de uma sólida compreensão do nosso relacionamento com Deus à luz do ritual do santuário, podemos apreciar de forma ainda mais ampla a história do grande conflito e o triunfo do reino de Deus, conforme aprendemos com a mensagem profética de Daniel e Apocalipse, que tem como referência Cristo no santuário celestial, como lemos em Hebreus.

Nesse contexto espiritual e profético, precisamos estudar e proclamar a mensagem do santuário para enxergarmos mais e melhor as verdades bíblicas, com suas harmoniosas conexões conceituais e práticas, o que torna nosso relacionamento com Deus algo muito mais significativo e profundo.

ADRIANI MILLI RODRIGUES é coordenador da graduação em Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)

(Matéria de capa da Revista Adventista de outubro/2023)

Última atualização em 20 de outubro de 2023 por Márcio Tonetti.