A história de uma tradicional música natalina e de suas versões
Joêzer Mendonça
A versão brasileira de um hino estrangeiro nem sempre corresponde exatamente à letra original desse hino. Devido à dificuldade de encaixar as rimas e o tamanho das palavras originais da canção, o trabalho de tradutores e versionistas é reproduzir o objetivo e o sentido geral da letra de origem. Mas o caso do cântico de Natal Oh Holy Night (“Santa Noite”, na versão em português) chama a atenção porque a tradução eliminou uma estrofe inteira, o que deu um sentido diferente a esta música.
Este cântico tem origem na França do século 19. Sua letra é embasada no poema “Minuit, chrétiens” (Meia-noite, cristãos), escrito por Placide Cappeau, em 1843. O autor, que era comerciante e poeta, escreveu o poema a pedido do pároco da vila de Roquemaure para celebrar a restauração do órgão da igreja. Tempos depois, o também francês Adolphe Adam, compositor de óperas e balés, escreveu a melodia. A música foi chamada de Cantique de Noël e estreou publicamente em 1847.
Os versos do poema começavam assim:
Meia-noite, cristãos,
É a hora solene
Em que o Homem-Deus desceu até nós […]
Os últimos versos da primeira estrofe também exprimem a espiritualidade cristã:
O mundo inteiro treme de esperança
Nesta noite que lhe dá um Salvador.
Ajoelhados, aguardam sua libertação!
Natal! Natal! Aqui está o Redentor!
O reverendo John Sullivan Dwight escreveu em 1855 uma versão em inglês deste cântico. Ele modificou bastante a primeira estrofe original. Estes são os primeiros versos da versão em inglês, cantada até hoje:
Ó santa noite, as estrelas brilham intensamente,
É a noite do nascimento do querido Salvador;
Por muito tempo o mundo jazia em pecado,
Até que Ele apareceu e a alma sentiu o seu valor.
O mundo cansado se alegra em um sentimento de esperança
Pois ali rompeu uma nova e gloriosa manhã.
Compare estes versos com a primeira estrofe da mais conhecida versão em português:
Noite de paz, o céu está brilhante.
Feliz Natal de Jesus Salvador.
Num mundo mau imerso em pecado,
Jesus nasceu para nos libertar.
E todos temos nova esperança,
A luz do céu, um novo alvorecer
No poema original em francês, a segunda estrofe trazia uma abordagem diferente para o Natal:
O Redentor rompe todo obstáculo:
A terra está livre e o céu está aberto.
Ele vê um irmão onde havia somente um escravo,
O amor une aqueles que foram acorrentados por ferro.
Quem vai dizer a Ele nossa gratidão?
É por todos nós que Ele nasceu, sofreu e morreu.
Levantem-se, cantem sua libertação!
Natal! Natal! Cante o Redentor!
Esta estrofe aponta que o Natal não deveria ser apenas um evento rememorativo do nascimento de Jesus. Seus versos relembram aos cristãos que todos, sem exceção, foram redimidos por Cristo, e que, em Cristo, não há distinção de pessoas de nenhuma procedência ou condição social.
Ao escrever sua tradução do poema francês, o reverendo John Dwight conservou em uma de suas estrofes o sentido da dupla libertação do pecado moral e social:
Verdadeiramente, Ele nos ensinou a amar uns aos outros;
Sua lei é Amor e Seu evangelho é Paz;
Ele quebra as correntes, pois o escravo é nosso irmão,
E em Seu nome cessará toda opressão.
Aliás, no fim da década de 1850, essa versão foi muito bem acolhida na região norte dos Estados Unidos pelos grupos abolicionistas. No entanto, boa parte das gravações modernas deste cântico de Natal exclui essa estrofe, como é o caso das versões em português.
De certo modo, isso parece retratar a própria perda de significado do Natal. Embora o clima natalino desperte em muitos cristãos um espírito solidário, alguns passam a maior parte do ano sem se lembrar das pessoas que estão sem emprego, sem saúde, sem alimentos, escravizadas e oprimidas pela luta diária da sobrevivência.
Enquanto esteve entre os seres humanos, Cristo proporcionou liberdade espiritual da escravidão do pecado e também deu libertação aos doentes, aos famintos, aos abandonados pela sociedade de seu tempo. Que nossas músicas e atitudes sejam um reflexo do nascimento e da vida de Cristo! Feliz Natal.
JOÊZER MENDONÇA, doutor em Musicologia (Unesp) com ênfase na relação entre teologia e música na história do adventismo, é professor na PUC-PR e autor dos livros Música e Religião na Era do Pop e O Som da Reforma: A Música no Tempo dos Primeiros Protestantes
Última atualização em 22 de dezembro de 2021 por Márcio Tonetti.