Cem anos de solidariedade

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Igreja celebra centenário do empresário e filantropo adventista que fez história no Brasil e no mundo

Márcio Tonetti

Milton Soldani Afonso em entrevista recente ao programa FE em Ação, da TV Novo Tempo

Em 2018, o site Business Insider elencou 21 bilionários que tiveram uma infância difícil e construíram fortuna do zero. A lista incluía nomes como o de Larry Ellison, fundador de uma das principais empresas de tecnologia do mundo (a Oracle), George Soros, megainvestidor húngaro-estadunidense, e Li Ka-shing, um dos empresários mais ricos de Hong Kong.

A trajetória do brasileiro Milton Soldani Afonso tem paralelos com a desse grupo. Ele teve uma origem humilde na pequena cidade de Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), e cresceu em uma casa sem água encanada e banheiro.

Sua mãe trabalhava como costureira. Já o pai foi garçom e, depois, eletricista, mas gastava todo o salário em jogos e bebidas. Por isso, desde pequeno, Milton passou a vender doces caseiros que a mãe fazia para ajudar no orçamento doméstico. No entanto, essa “experiência comercial e de marketing” que adquiriu nas ruas, como disse mais tarde, refletiu-se positivamente em seu futuro.

Depois de ele e a mãe terem aceitado a mensagem adventista na década de 1930, Milton foi matriculado no então Colégio Adventista Brasileiro (CAB), na capital paulista. Os recursos financeiros escassos o forçaram a ingressar na colportagem, que foi outra grande escola. Antes de fazer fortuna vendendo seguros de saúde, o empreendedor mineiro vendeu livros da Casa Publicadora Brasileira (CPB), motivo pelo qual ele sempre demonstrou gratidão e respeito à editora adventista.

Técnicas aprendidas e aplicadas na colportagem lhe acompanharam na vida de empresário. “Ao entrar em contato com os grandes atacadistas, obtinha seus nomes em minha lista de fregueses. A seguir, abordava outros negociantes e lhes dizia: ‘Fulano de tal já encomendou estes livros’. E pronunciava os nomes de seus colegas e concorrentes. Usando essa abordagem, vendi enorme quantidade de livros, o que me tornou um colportor-evangelista de muito êxito. De fato, por volta do ano de 1943, tive a distinção de ser o colportor-evangelista com mais vendas em todo o Brasil”, relatou no livro intitulado Milton Afonso: Vida e Obra (CPB, 2004, p. 52).

De vendedor de livros, o empresário e advogado se tornou, alguns anos depois, dono de revistas voltadas para a área de legislação federal e fiscal. Mas, sem dúvida, seu empreendimento de maior sucesso foi a criação da Golden Cross, no Rio de Janeiro, há 50 anos. Em pouco mais de uma década, a instituição filantrópica se tornou uma das maiores companhias de saúde não somente da América Latina, mas do mundo. No auge de sua escalada de sucesso, Milton Soldani Afonso, um dos precursores dos planos de saúde no Brasil, chegou a comprar 17 hospitais, incluindo o maior de Minas Gerais.

A contribuição do doutor Milton Afonso para a igreja não pode ser medida apenas pela doação de recursos e patrimônio, mas também por sua visão e influência

Sua visão e ousadia o levaram longe. Mas, evidentemente, seu caminho não foi fácil. Em alguns momentos, ficou à beira da falência. E quando o governo confiscou 60 milhões de dólares das contas da Golden Cross no dia seguinte à posse do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1990, parecia que seu mundo tinha desmoronado. Infartou.

Mas, como ele costuma dizer, Deus, a quem atribui a razão de sua vida bem-sucedida, sempre o sustentou e realizou verdadeiros milagres. Inclusive restituindo o valor que havia sido boqueado das cadernetas de poupança de instituições filantrópicas como a Golden Cross. “Tenho uma gratidão a Deus que não consigo calcular”, disse no documentário O Menino Que Vendia Doces e Entregava Sonhos (Novo Tempo, 2012).

CARREIRA FILANTRÓPICA

No período em que cursava Direito, Milton se tornou líder político entre os estudantes. Depois de um protesto contra o governo de Getúlio Vargas, chegou a ser torturado e preso, dividindo a cela com outros manifestantes, políticos e jornalistas que se opunham ao regime. Porém, sua passagem pela polícia acabou influenciando sua decisão de seguir outro caminho. Entendeu que não seria pela militância política que ele lutaria por um mundo melhor, mas sim por meio da filantropia.

Esse desejo de ajudar quem não conseguiria por si mesmo superar sua condição social foi manifestado por Milton Afonso bem antes de ele construir um império. Quando ainda não tinha tantos recursos, chegou a atrasar o aluguel algumas vezes para manter em dia as mensalidades dos estudantes que apoiava. Aliás, mesmo nos momentos mais difíceis ele procurou investir no sonho de quem não vislumbrava um futuro. “Quando faço outras pessoas felizes, me torno mais feliz ainda. Não fiquei mais pobre por isso”, realçou no documentário produzido pela TV Novo Tempo.

Em seus cálculos, até hoje já concedeu mais de 60 mil bolsas de estudos, especialmente para jovens universitários, além de ter financiado muitos orfanatos e construído várias escolas ao redor do Brasil. Fez isso motivado pela própria história: “Teria sido alguém sem futuro. Mas foi através da educação que consegui romper este ciclo de pobreza e ignorância, e sabia que a educação poderia ser a chave para outros também”, disse em sua biografia, escrita por Manuel Vásquez (p. 79).

Entre as milhares de pessoas que ele ajudou a ter um futuro melhor por meio da educação está Benício Thomas Souza, que ficou órfão aos 11 anos de idade. Com o auxílio do empresário, cursou Biomedicina na Universidade Adventista del Plata (UAP), na Argentina, e hoje atua como diretor clínico de uma instituição adventista de saúde em São Roque (SP). “Vejo um homem próspero, mas que não foi egoísta. Ele se tornou as mãos de Deus para abençoar tantas outras vidas”, declarou em uma reportagem divulgada na edição do dia 4 de dezembro do programa FE em Ação, da TV Novo Tempo.

O teólogo Rodrigo Silva, também faz parte desse grupo. “Sem me conhecer, o doutor Milton enviou recursos financeiros para ajudar a pagar parte do meu mestrado quando perdi o auxílio que tinha na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia”, relata o professor do Unasp, que já foi chamado muitas vezes por Milton Afonso para realizar estudos bíblicos com pessoas influentes. Ele também ressalta que o filantropo ajudou a montar a coleção que hoje integra o Museu de Arqueologia Bíblica do Centro Universitário Adventista de São Paulo, o MAB. “Fico imaginando como seria sem a ajuda dele. O museu certamente não existiria com todo esse acervo”, conclui.

A solidariedade do doutor Milton desconhece fronteiras. O angolano Mario Cumandala veio estudar no Instituto Petropolitano Adventista de Ensino (IPAE) em 1987 e recebeu apoio de Milton Afonso em diversas ocasiões. Por exemplo, quando precisou regularizar sua documentação. Em outra ocasião, teve seus pertences furtados logo depois de retornar de uma campanha de colportagem na Argentina. Na época, o doutor Milton lhe encaminhou para algumas lojas de grife em Copacabana e disse que ele poderia comprar tudo o que precisasse para o novo ano letivo. “Por trás desse grande empreendedor, existe uma história magnífica, dignificante e motivadora”, escreveu Mario, que hoje é economista e fez questão de prestar seu tributo por meio de um texto encaminhado à Revista Adventista.

Muitas pessoas apadrinhadas por Milton Afonso no Brasil e no mundo não tiveram o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, mas cultivam eterna gratidão. “Tenho a alegria de encontrar ao redor do mundo pessoas que tinham poucas perspectivas na vida e que ajudei a se tornarem vitoriosas por meio da educação adventista”, ele ressaltou recentemente no programa FE em Ação.

APOIO À IGREJA

Ao se tornar rico e influente, Milton não fez de sua vida uma ilha, embora a prosperidade financeira tenha lhe permitido comprar uma no famoso arquipélago de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Idealista, seu grande objetivo sempre foi investir nos jovens, oferecer assistência às crianças sem teto e ajudar a igreja a cumprir a missão.

Outra evidência de seu desprendimento é que, na década de 1980, Milton Afonso decidiu colocar nas mãos da igreja todo o patrimônio que havia construído até aquele momento: a Golden Cross, 28 hospitais, uma universidade com 15 mil alunos e quatro campi, escolas e 13 orfanatos, além de uma fazenda e coleções particulares. A papelada para que tudo isso fosse administrado pela igreja após a morte do empresário chegou a ser assinada. Porém, algum tempo depois, o então presidente mundial da denominação, pastor Neal Wilson, o chamou até a sede da Associação Geral para dizer que a igreja havia decido devolver-lhe tudo. “Na verdade, o senhor está mais qualificado para dirigir um império tão grande como a Golden Cross. Foi um gesto nobre de sua parte, porém assinaremos um documento devolvendo tudo ao senhor e à sua família. A missão da igreja não é acumular edifícios, mas preparar pessoas para o Céu”, justificou o pai do atual líder mundial dos adventistas (Milton Afonso: Vida e Obra, p. 118, 119).

Depois disso, o empresário continuou contribuindo com a igreja de outras formas. E possivelmente, conforme destacou o empresário Sérgio Azevedo, no programa FE em Ação, Milton Afonso seja um dos maiores doadores de todos os tempos da Igreja Adventista no mundo.

Especialmente na área de comunicação, ele foi responsável por uma verdadeira revolução, a ponto de um perfil publicado em 2014 pela Revista Adventista compará-lo à figura de Assis Chateaubriand, visionário que se tornou um ícone na história da imprensa brasileira.

O pastor Antonio Tostes, diretor da Rede Novo Tempo de Comunicação, explica que a contribuição de Milton Afonso se deu de várias formas. Primeiro, ele apoiou a igreja doando dezenas de emissoras de rádio, bem como a propriedade de Nova Friburgo (RJ) na qual teve início a TV adventista. Além disso, destinou muitos recursos e equipamentos para a expansão da rede adventista de comunicação.

Outra grande contribuição foi sua influência e visão. “Se nos tornamos uma das maiores redes de comunicação do Brasil; se temos mais de 150 emissoras de rádio espalhadas pela América do Sul; se alcançamos hoje milhões de pessoas e enviamos centenas de milhares de estudos bíblicos todos os anos é porque o doutor Milton teve a visão, investiu, acreditou e influenciou”, ressalta o pastor Tostes.

MOTIVO DE CELEBRAÇÃO

Ele já sobreviveu a um infarto décadas atrás e, mais recentemente, a 21 dias de internação por causa da Covid-19. No próximo dia 12 de dezembro, Milton Soldani Afonso completará 100 anos de existência, o dobro de seu maior empreendimento, a Golden Cross. Não é apenas uma data, mas uma vida a ser celebrada.

Tendo isso em vista, nesta quarta-feira (8), a TV Novo Tempo sediou uma programação especial em homenagem ao patrono da comunicação adventista na América do Sul. O evento contou com a participação inclusive do pastor Ted Wilson, atual líder mundial da igreja, que tem recebido apoio de Milton Afonso desde a época em que atuava na Divisão Euroasiática. Infelizmente, a esposa do empresário, Arlete Afonso, não pôde presenciar esse momento, pois faleceu de ataque cardíaco no começo do ano passado, aos 96 anos.

“Gratidão é o que define o momento de celebração dos 100 anos da vida do irmão Milton Soldani Afonso, um grande apoiador da Igreja Adventista em diversas áreas”, expressou o pastor Stanley Arco, líder da Divisão Sul-Americana, por meio seu perfil no Twitter.

Programa na Novo Tempo homenageou Milton Soldani Afonso tendo em vista o seu 100º aniversário e a imensa contribuição dada à igreja

Deus concedeu uma vida longa ao menino pobre que se tornou empresário bem-sucedido para que ele pudesse ajudar mais pessoas e impulsionar a missão da igreja.

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MÁRCIO TONETTI é jornalista e atua como editor associado da Revista Adventista

Última atualização em 22 de dezembro de 2021 por Márcio Tonetti.