Secretária do Meio Ambiente do Estado de São Paulo desafia a igreja a fazer a lição de casa
Por Márcio Tonetti
O Estado de São Paulo representa um terço da economia nacional e concentra 22% da população do Brasil. Responder pelas questões ambientais nesse contexto ecologicamente desafiador é uma atribuição que exige o perfil de alguém com a competência de Patrícia Faga Iglecias Lemos. Pela primeira vez ocupando uma equipe de governo, sem nunca ter se filiado a qualquer partido político, a atual secretária do Meio Ambiente de São Paulo traz uma ampla bagagem acadêmica na área do Direito Ambiental como mestre, doutora e livre-docente pela USP.
Um dos principais focos de suas pesquisas é a gestão de resíduos sólidos, tema cada vez mais crucial no cotidiano das grandes cidades e que exige políticas públicas inovadoras e mais eficientes. Porém, conforme ela acredita, a resolução dessa questão passa inevitavelmente pela capacidade de reciclar e reduzir a produção desses resíduos. Isso tem tudo que ver com a necessidade de adotar um estilo de vida mais simples, como sugere o adventismo.
Criada num lar adventista, Patrícia Iglecias acredita que sua preocupação com o meio ambiente vem desde sua educação religiosa e passagem pelo clube de desbravadores, quando aprendeu noções de respeito ao próximo e à natureza. Fiel às suas origens, a secretária de governo continua vendo a igreja como um espaço fundamental para a conscientização ambiental. No entanto, ela considera que os cristãos em geral ainda não estão fazendo a lição de casa.
Nesta entrevista, a secretária reforça a necessidade de mudanças urgentes na esfera individual e desafia a igreja a ser mais efetiva no âmbito socioambiental. Segundo ela, não há desculpas, nem respaldo bíblico, para que a crença em “um novo céu e uma nova Terra” nos libere da tarefa de preservar o planeta hoje.
Você faz parte da terceira geração de adventistas na sua família. Essa base cristã influenciou na escolha de sua carreira?
Entendo que os valores cristãos transmitidos durante a minha educação influenciaram não somente na escolha pelo direito ambiental, mas na própria escolha da carreira no direito. O respeito ao próximo é um exemplo da relação que existe entre os valores cristãos e minha carreira. A base do direito ambiental, por sua vez, está muito ligada à solidariedade, ao fato de que determinadas ações, como o uso dos recursos naturais, devem ser tomadas também pensando nos demais.
Sua participação em programas e projetos da igreja reforçou essa visão?
Tive a oportunidade de ser desbravadora dos 8 aos 14 anos de idade. Isso influenciou muito minha vida. Além de ser desbravadora, participei do projeto Prisma assim que concluí a faculdade. Esse programa de voluntariado, coordenado pelo pastor Ronaldo de Oliveira, incluía médicos, dentistas e outros profissionais que trabalhavam pela melhoria da qualidade de vida entre os índios da Ilha do Bananal (TO). Fiquei aproximadamente um mês na região do Rio Araguaia atuando entre as crianças carajás. Naquela época, eu ainda não pensava em cursar direito ambiental, mas acredito que essa experiência também foi uma influência positiva.
Como você avalia a atuação das igrejas em geral no campo da ecologia?
Não acho que as igrejas estejam concentradas nisso. Nem mesmo em coisas mínimas, como a coleta seletiva de resíduos. Aqui no município de São Paulo, por exemplo, temos a legislação que determina que os grandes geradores – aqueles que produzem acima de 200 litros de resíduos por dia – precisam fazer a separação. Como as igrejas não funcionam todos os dias, talvez nem todas cheguem a atingir essa classificação na geração de resíduos. Mas acredito que a coleta seletiva seja uma atitude elementar em qualquer igreja. Por isso, acho estranho chegar em uma congregação e não encontrar os recipientes coletores para a separação dos resíduos.
As denominações e os governos podem ter uma agenda em comum no que diz respeito à proteção ao meio ambiente?
Acredito que sim. Recentemente, o Vaticano e a ONU se uniram para alertar o mundo sobre o problema das mudanças climáticas. Para citar um exemplo mais próximo de parceria, no Estado de São Paulo temos um projeto que pretende recuperar a vegetação localizada às margens de nascentes, rios, córregos, lagos e represas que protegem e limpam nossas águas. O objetivo final do “Programa Nascentes” é promover a restauração de cerca de 20 mil hectares de matas ciliares e proteger 6 mil quilômetros de cursos d’água. Fiz uma sugestão de um trabalho conjunto de plantio de espécies nativas com os desbravadores [para saber mais sobre essa parceria, clique aqui]. Envolvê-los num programa como esse é uma forma de sensibilizar as novas gerações. De igual modo, acho que nós também poderíamos pensar em projetos de recuperação de áreas de nossas próprias igrejas e colégios a partir desse esforço coletivo.
Como secretária de governo, você pretende estabelecer um diálogo com líderes adventistas para outras parcerias?
Sim. Já temos até uma reunião agendada para discutir possíveis projetos para ser realizados em parceria com os voluntários da igreja.
Como a igreja também pode ajudar a combater o consumismo, que é um dos principais vilões ambientais?
Em um de meus livros, intitulado Resíduos Sólidos e Responsabilidade Civil Pós-Consumo, falo sobre a evolução do consumo numa sociedade em que muitos vivem para consumir em vez de consumir o que é necessário para viver. O que os estudos têm mostrado é que esse consumo patológico está bastante ligado a alguns problemas do dia a dia, como o superendividamento das famílias. Muitas vezes a pessoa consome para se sentir bem. Outros estudos mostram que o consumo nunca é um ato individual, mas um ato social. Toda a influência do marketing e da mídia tem um papel muito forte na geração de mais consumo. Mas, para quem conhece tudo que a Bíblia ensina, fica muito claro que não podemos nos deixar levar por essas influências. Só que, para isso, precisamos preparar nossas crianças para viver de maneira diferente. Entra aqui o papel importantíssimo dos pais no ensino da redução do consumo e na prática de uma vida mais simples, conforme sugere o cristianismo. Precisamos mostrar que o que importa são as pessoas, e não as coisas.
Há estudos mostrando quanto tempo mais o planeta pode suportar se continuarmos nesse ritmo de consumo?
Não há estimativas seguras porque isso depende do crescimento da população e de vários outros fatores. Mas o que já é possível afirmar é que isso se torna um problema maior para algumas regiões, como o Japão, um país superpopuloso e com um território pequeno. Em junho do ano passado tive a oportunidade de conhecer o aterro de Tóquio, que, segundo os técnicos, tem uma vida útil de 50 anos. Depois disso, eles não sabem o que vão fazer porque não existe outra área que possa ser utilizada para essa finalidade. Por isso, o Japão trabalha muito com a redução de resíduos, uma postura extremamente importante. Aqui no Brasil, embora a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) fale em redução, damos maior ênfase à reciclagem. Não estamos preocupados em gerar menos resíduos. Mas isso será um problema nosso também.
A igreja está bastante concentrada no evangelismo das grandes cidades. Projetos sólidos na área ambiental podem contribuir para abrir portas nesses lugares?
Sem dúvida. Grande parte da sociedade reconhece a importância da proteção ambiental e de aspectos relacionados à qualidade de vida. Também é interessante notar que o tema do meio ambiente está bastante associado à saúde, uma das ênfases da igreja. Além disso, também há iniciativas interessantes que podem ser desenvolvidas unindo a questão ambiental aos projetos sociais e de geração de renda, como a coleta seletiva de resíduos e a produção de compostagem a partir do aproveitamento de matéria orgânica.
Como ter uma visão equilibrada da relação entre o cristão e o meio ambiente, sem correr o risco de tornar o ambientalismo uma religião e a Terra (ou Gaia) uma divindade?
Esse é um aspecto importante. Do ponto de vista bíblico, existe um Deus criador e mantenedor de todas as coisas e, portanto, ele é o único que deve ser adorado. A natureza, os animais e todas as criaturas têm valor apenas na condição de um presente dado por Deus. Alguns desvios ou exageros que encontramos hoje não estão de acordo com os ensinamentos bíblicos.
TRAJETÓRIA EXEMPLAR
Considerada uma das maiores autoridades do país na área do direito ambiental, Patrícia Iglecias, de 47 anos, tem vasta experiência acadêmica como professora associada do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito, orientadora do Programa de Ciência Ambiental e líder do Grupo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente na USP. Além disso, ela também faz parte do Centro Multidisciplinar de Estudos em Resíduos Sólidos e atua como vice-coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres da mesma universidade.
Reconhecida no Brasil e no exterior (pois é membro da European Environmental Law Association) pela relevância de suas pesquisas, Patrícia também é respeitada no meio secular pela sua fé. Em 2013, por exemplo, quando foi convidada para uma conferência na Universidade de Oxford, na Inglaterra, a instituição se dispôs a mudar a data de sua apresentação, que cairia num sábado, em consideração à religião da pesquisadora. Patrícia frequenta a Igreja de Moema, na zona sul de São Paulo, com o esposo, Márcio, e os dois filhos, Nicolas e Laura. Sua principal paixão na igreja é atuar como professora dos adolescentes. [Por Márcio Tonetti / Foto: Cris Faga]
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.