Conheça o pastor que está estudando a “teologia da deficiência” e ajudando a promover ações e projetos de inclusão na igreja
Márcio Tonetti
Alguns ainda têm dificuldade de compreender a teologia bíblica da deficiência e as aparentes contradições do texto bíblico acerca desse tema. Por isso, o pastor Julio Cesar Ribeiro, paulista de 38 anos, decidiu que pesquisaria o assunto em sua dissertação de mestrado em Teologia Cristã na PUC-SP, prevista para ser defendida no começo do próximo ano. Mas sua relação com a temática também partiu de uma motivação pessoal, haja vista que ele nasceu com uma deformidade congênita nos membros superiores.
Assistente do Centro de Pesquisas Ellen G. White e do Centro Nacional da Memória Adventista, no Unasp, Campus Engenheiro Coelho (SP), recentemente ele foi convidado para atuar como líder associado para a área de mobilidade reduzida e deficiência física do Ministério Adventista das Possibilidades (MAP) da Associação Paulista Central e conselheiro voluntário para a mesma área da Divisão Sul-Americana.
Além de compartilhar sua visão acerca de como a Bíblia retrata essas pessoas por meio de palestras como a que ele proferiu no 1º Encontro de Pessoas com (d)Eficiência, transmitido on-line nos dias 27 e 28 de novembro, ele também tem contribuído para o debate sobre o que a igreja pode fazer para ser mais inclusiva. Confira a seguir a entrevista que fizemos com o pastor Julio tendo em vista o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de dezembro).
É politicamente correto utilizar a expressão “pessoa com deficiência” para definir esse grupo?
Pessoa Com Deficiência (PCD) é o termo correto para definir o nosso grupo. Muitos usam expressões como “pessoa com necessidades especiais”, “portador(a) de necessidades especiais” ou ainda “portador de deficiência”, mas essa não é a nomenclatura utilizada, por exemplo, na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, que apresenta a seguinte definição: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. Portanto, portador de deficiência não seria um termo correto porque “portar” significa algo que você pode deixar de ter em algum momento.
Como você se sente em relação a esse tipo de tratamento?
Me sinto tranquilo porque é o que eu sou. E, na realidade, toda pessoa tem alguma limitação ou deficiência em alguma área. Porém, dentro do contexto social em que vivemos, as pessoas que têm essas características definidas pela ONU são classificadas como PCD.
De que forma a Bíblia retrata a pessoa com deficiência?
Em primeiro lugar, podemos dizer que a Bíblia tem uma visão muito elevada da criação como um todo. E de acordo com 1 João 3:1, somos chamados filhos de Deus. Ele nos criou à Sua imagem e semelhança (Gn 1:26) e a Sua misericórdia alcança toda a criação (Sl 145:9). Outro ponto interessante é que a Bíblia apresenta claramente a ideia de que Deus não criou a imperfeição. Ao lermos Romanos 5:12, descobrimos que o pecado entrou no mundo por um só homem e, através do pecado, a morte se estendeu a toda a humanidade. Dessa forma, Deus não é o autor das mazelas deste mundo. Pelo contrário! A Bíblia diz que Ele demonstra compaixão por todos os Seus filhos (Sl 103:13). Além disso, Ele nos acompanha em nossas lutas, dificuldades e angústias (Is 63:9). Também precisamos considerar que a deficiência não é uma maldição, embora os discípulos de Jesus e muitas pessoas daquela época vissem a falta de saúde física como maldição de Deus ou resultado de algum pecado (Jo 9:1-3). Porém, a visão bíblica não concebe a deficiência dessa forma, muito menos como ausência da graça divina.
Aliás, da perspectiva bíblica, ela é vista como algo que chama a atenção de Deus. Em Marcos 10:46-51, por exemplo, temos o relato de um cego chamado Bartimeu, que tinha uma cegueira adquirida. Tanto no caso daquele cego de nascença que foi curado no templo (Jo 9) quanto no caso de Bartimeu, Cristo olha para eles e atende suas necessidades.
Há muitos outros casos de pessoas com deficiência mencionados na Bíblia…
Sim. Talvez o caso mais emblemático seja o de Mefibosete, relatado em 2 Samuel 9. Filho de Jônatas e, portanto, neto do rei Saul, ele ficou incapacitado fisicamente quando sua cuidadora caiu com ele nos braços enquanto fugia do perigo. Não sabemos se ele teve uma lesão nas pernas ou no cérebro, ou ambas. Mas o fato é que sua coordenação motora ficou comprometida por causa disso. Quando Davi assumiu o trono, ele quis saber de seus súditos se havia algum descendente da casa de Saul. Então, foi-lhe apresentado o caso de Mefibosete. Ao encontrá-lo, Davi não destacou a sua deficiência ou o homenageou por causa disso. Mas ele o tratou como trataria qualquer guerreiro poderoso e vitorioso. Essa história é um símbolo muito poderoso do reino de Deus, em que pessoas “normais” e com deficiência sentam-se lado a lado à mesa.
Reforçando que a Bíblia está cheia de pessoas cujas deficiências não eram barreiras, poderíamos mencionar também o apóstolo Paulo. Esse homem é retratado na literatura não canônica como possuindo uma imperfeição nas pernas. Ele também tinha uma enfermidade física (Gl 4:13); muitos estudiosos acreditam que o tal “espinho na carne” que ele relata (2 Co 12:7) era um problema de visão ou cegueira parcial adquirido depois do encontro com Jesus na estrada para Damasco. De fato, há alguns indícios que apontam para essa hipótese. Por exemplo, Atos 23:3-5 diz que ele não reconheceu ou enxergou o sumosacerdote, o qual chamou de “parede branqueada”. Romanos 16:22 diz que ele precisou de um escriba para escrever a maioria de suas cartas porque provavelmente não tivesse condições de fazer isso. Em outras passagens, declarou que quem estava escrevendo era ele, em “letras garrafais”, isto é, letras grandes (Gl 6:11). Mas, apesar de sua provável cegueira parcial, o apóstolo Paulo era alguém com uma capacidade impressionante de levar pessoas ao conhecimento da verdade. As pessoas não viam formosura nele, conforme dá a entender Atos 14:12. Mas, quando abria a boca, falava com poder. Não podemos imaginar o Novo Testamento sem Paulo.
De que maneira você enxerga passagens como a de Levítico 21:17-23?
Essa questão, aliás, é o tema da minha dissertação de mestrado em Teologia Cristã na PUC-SP. O texto apresenta uma clara ordem de Deus, dada a Moisés, de que nenhum homem da descendência de Arão que tivesse algum “defeito ou mancha” (tradução literal da palavra hebraica ali utilizada) deveria se tornar participante de forma ativa no trabalho do tabernáculo. É importante lembrar que os homens da linhagem de Arão automaticamente faziam parte da classe sacerdotal. Porém, Deus declara que qualquer um desse grupo que nascesse com uma deficiência não poderia se aproximar para oferecer ofertas/sacrifícios ao Senhor. Nessa passagem, há o relato de 12 enfermidades representativas, incluindo cegueira total ou parcial, claudicação (dificuldade ou incapacidade de andar), deformação/mutilação na face, fraturas nas mãos ou pés, ser corcunda, problema de visão e erupção na pele ou outras doenças dermatológicas. Essas pessoas podiam até comer dos pães da proposição, no tabernáculo, mas não podiam oferecer ou ser oficiantes do ritual. Se contrariassem essa ordem explícita de Deus, elas estariam contaminando o santuário. Isso está na Bíblia, não pode ser evitado, mas precisa ser entendido corretamente.
É importante lembrarmos que cada texto da Bíblia está inserido no seu devido contexto. O que esses textos querem dizer? As descrições do santuário terrestre estão claramente ligadas ao ministério sacerdotal de Jesus. No capítulo 21, vemos a necessidade da perfeição física para o sacerdote. Já o capítulo 22 apresenta a mesma necessidade da perfeição física para a oferta. Então, tanto o ofertante quanto a oferta deveriam ser perfeitos porque a verdadeira oferta é “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Por isso, o animal morto representava Cristo e não poderia ter defeito. Da mesma forma, o sacerdote, o oficiante, também representa Cristo, que é o nosso sumosacerdote, segundo o livro de Hebreus. Portanto, os textos de Levítico 21 e 22 precisam ser lidos no contexto do ministério sacerdotal de Cristo. De modo nenhum Deus está sendo preconceituoso. Pelo contrário! Levítico 19:14, por exemplo, diz: “Não amaldiçoarás o surdo, nem porás tropeço diante do cego”.
Trazendo a conversa para os dias de hoje, o trabalho com surdos tem se fortalecido no contexto adventista. O Evangelibras é um exemplo. Mas que outras possibilidades você enxerga para o trabalho da igreja em relação a esse público, considerando que, segundo dados do IBGE, mais de 12,5 milhões de brasileiros (6,7% da população) possuem deficiência mental, intelectual ou física severa?
Por uma questão social, muitas pessoas com deficiência não se desenvolvem intelectualmente porque assumem uma postura de vitimização ou se amparam no auxílio do governo, pensando que não podem trabalhar. Então, a igreja tem muitas possibilidades de atuação junto a esse público. Por exemplo, no contexto da Associação Paulista Central (APaC), estamos começando um trabalho de mapeamento para sabermos onde estão essas pessoas. A ideia é que cada distrito pastoral tenha um representante do Ministério Adventista das Possibilidades e faça um cadastro dos PCD membros da igreja. Queremos saber onde moram, o tipo de deficiência e o grau de escolaridade deles. Posteriormente, pretendemos apresentar-lhes oportunidades de capacitação educacional e profissional, além de motivação espiritual e para a missão.
Individualmente também podemos nos envolver. Há algum tempo, eu tenho me inserido em grupos de PCD nas mídias sociais e me colocado à disposição para estudar a Bíblia com eles. Como resultado, atualmente, estamos iniciando uma classe de estudos bíblicos uma vez por semana pelo aplicativo ZOOM para um grupo de pessoas com deficiência que vivem em diferentes regiões do país. Esse é apenas um exemplo das múltiplas possibilidades que existem.
Além de tornar nossa mensagem acessível a essas pessoas, você entende que há a necessidade também de um trabalho com aqueles que já são membros da igreja? Como isso pode ser feito?
Algo importante, por exemplo, é promover a integração dos adventistas com deficiência com as instituições da igreja. Hoje as empresas necessitam ter PCD no quadro de funcionários, mas também ser justas no salário, pois, infelizmente, muitas rebaixam a remuneração por entenderem que essas pessoas são menos capazes e menos produtivas. Não é verdade! Na igreja também há PCDs com qualificação em várias áreas. E com a tendência do home office, abrem-se novas possibilidades de eles servirem. Uma pessoa com deficiência de Manaus, por exemplo, pode trabalhar para uma instituição do Rio de Janeiro ou de São Paulo e vice-versa.
Isso também passa pela melhoria das próprias condições de acesso aos nossos templos?
Muitos templos pecam no que diz respeito à acessibilidade. E não se trata de uma crítica que faço, mas de uma constatação. Pelo fato de, às vezes, não haver um PCD naquela congregação, projetos não são pensados levando em conta as diferentes necessidades delas. Isso inclui desde banheiros adaptados até rampas de acesso e a tradução das nossas programações para a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Graças a Deus, algumas igrejas têm melhorado bastante nesse quesito. Um trabalho de assessoria ou consultoria especializada poderia ajudar no processo de adaptação de nossas igrejas a essa realidade.
Que mensagem final você gostaria de deixar?
Percebo que existe a necessidade de trabalharmos em duas principais frentes. Primeiro, com os membros que fazem parte do grupo de PCD, para que eles entendam a importância deles para Deus, a sociedade, a igreja e a missão; e com o restante da igreja, a fim de que ela compreenda a importância do apoio a essas pessoas. Eventos como o 1º Encontro de Pessoas com (d)Eficiência, realizado com o apoio de uma das sedes administrativas da igreja no Estado de São Paulo e da Divisão Sul-Americana, têm justamente esse propósito. Como segundo passo, precisamos atingir aquelas pessoas com deficiência que não são adventistas. Estudos bíblicos, reuniões adaptadas, cursos de capacitação, tudo isso precisa e deve ser feito.
Última atualização em 15 de agosto de 2022 por Márcio Tonetti.