Há quase 150 anos, o britânico William Ings abriu caminho para que a literatura adventista cruzasse o Atlântico e chegasse inclusive ao Brasil

Na galeria dos que se empenharam na evangelização da Inglaterra, William Ings (1835-1897) aparece ao lado de grandes nomes como J. N. Loughborough (1832-1924). Seu nome é celebrado no território inglês. No entanto, seu legado não se limitou à Europa. Graças aos esforços desse missionário, a mensagem adventista também alcançou a América do Sul e o Brasil, apesar de ele nunca ter vindo ao continente. A seguir, conheça um pouco de sua trajetória e como se deu sua conexão com o nosso país.
Em 1846, quando tinha apenas 11 anos de idade, sua família migrou para os Estados Unidos. Lá ele conheceu a mensagem adventista e, em 1875, passou a trabalhar como tesoureiro da Review and Herald, em Battle Creek, no estado americano de Michigan. Dois anos depois, ele viajou como missionário para a Europa a fim de auxiliar o pastor John N Andrews no estabelecimento de uma editora na Basiléia, Suíça. William casou-se com Jenny L. Ings e não tiveram filhos. Ambos conviveram com os White. A esposa, Jenny, chegou a trocar correspondência com Ellen, com quem teve contato nos Estados Unidos e, depois, na Europa (1885-1887), nos quase três anos em que a pioneira do movimento adventista circulou pelo velho continente.
William ainda é um personagem desconhecido nos anais da colportagem adventista mundial. Sua conexão com a chegada da mensagem adventista à América do Sul também é pouco conhecida. Ings estreou fazendo missão no coração do império que já conquistara os sete mares, a Velha Inglaterra, em cujos domínios o sol nunca se punha, como dizia a frase alardeada pelos jornais da época. Em 1878, ele influenciou a conversão de dois ingleses.
Pregar na Inglaterra poderia ser considerado uma pretensão adventista. Além disso, evangelizá-la parecia ser uma ironia, tendo em vista que esse havia sido o país que mais se empenhara na fundação da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE), em 1804. Essa foi uma instituição-chave no suporte à evangelização em centenas de idiomas e dialetos, garantindo condições para a pregação do evangelho através das missões protestantes nos mais longínquos recantos sob domínio colonial e comercial.
Em 1819, um editor de Londres imprimiu o Antigo e o Novo Testamento em português num único volume, na versão de João Ferreira Annes d’Almeida (1628-1691). Nessa época, já existia a versão em português mais difundida na Europa e no Brasil do padre Antônio Pereira Figueiredo, mas seu acesso estava restrito às bibliotecas de eruditos do clero. O fato de ter sido publicada em diversos volumes também inviabilizava a leitura pela maioria da população. Nesse tempo, o Brasil já começava a receber colportores protestantes e carregamentos de Bíblias, provenientes da Europa e América do Norte.
William Ings não imaginava que seu empenho em evangelizar os britânicos o levaria a atuar em Southampton, uma das cidades portuárias da Europa com maior circulação de veleiros e barcos a vapor da era vitoriana (1837-1901). Desde o século 18, a Inglaterra já mantinha fortes relações com Portugal, grande aliada do comércio anglo-português de tecidos e vinho, mantendo rotas com as colônias na África, Ásia e América do Sul. Vale lembrar que foi o apoio inglês aos portugueses, motivado por interesses comerciais, que favoreceu a transferência da família real para o Brasil, em 1808. Anos mais tarde, o porto de Southampton abrigaria uma indústria naval responsável pela construção do Titanic.
Em correspondência com a Sociedade de Missionários Voluntários de Battle Creek, em 1879, William Ings informou sobre seu projeto missionário mais ousado: “Estamos enviando publicações para todas as partes do globo. Nenhum navio recusou nossas publicações. Coloquei cinco pacotes em cada barco que rumavam para o estrangeiro: um para os passageiros, um para a tripulação e três para serem deixados em diferentes portos. Alguns pacotes chegaram à China e às Índias Orientais e a outros portos mais longínquos do mundo. Peguei dez cópias de nossa revista alemã para distribuí-las em navios alemães que fazem escala toda a semana por aqui”, como apareceu nas colunas da Advent Review and Sabbath Herald.
Em outra carta de 21 de fevereiro de 1880, enviada à mesma sociedade missionária norte-americana, ele relatou que estava em Southampton, um porto a leste de Londres, e informou que havia visitado 339 embarcações em poucos meses. Dispunha de livros em inglês, alemão, sueco e dinamarquês para compartilhar com capitães, marinheiros, passageiros e imigrantes em trânsito, que faziam escala em viagem ou partiam e chegavam de centenas de portos ao redor do mundo. Ings descreveu que seu trabalho tinha boa receptividade. A venda ou distribuição de publicações acontecia enquanto embarcações eram consertadas ou abastecidas com víveres e carvão para as longas viagens que duravam semanas e até mesmo meses.
Não satisfeito apenas em vender literatura, Ings começou a solicitar doações nos artigos que enviava à Review and Herald. Assim, foi criado um fundo para patrocinar as missões em navios e portos. Pacotes com a mensagem adventista foram confiados aos capitães e tripulação. Essas pessoas gastavam parte de suas horas de descanso lendo durante as longas, cansativas e perigosas viagens transatlânticas. Alguns tripulantes e capitães manifestaram a Ings o desejo de colaborarem como agentes missionários na pregação evangélica. Ele relatou ter distribuído entre 10 e 15 exemplares da recém-lançada revista alemã Die Stimme der Wahrheit, em 1879.
Ings foi ordenado ao ministério adventista em 1884. Seu amigo e companheiro de missão na Europa, John N. Andrews, o abastecia com revistas produzidas por ele na Suíça. Esses livros, panfletos e revistas alcançaram portos da América do Sul, incluindo algumas capitais brasileiras no litoral que recebiam imigrantes e produtos europeus. Foi a Stimme der Wahrheit que alcançou pai e filho, Davi e Adolf Hort, imigrantes alemães, num armazém em Brusque, e Willhelm Belz, cliente desse estabelecimento que teve contato com a mensagem do sábado e começou a guardar o sétimo dia juntamente com seus familiares no alto da Serra Catarinense, em Gaspar Alto (SC). Quem conhece os primórdios da história do adventismo no Brasil sabe o resto da história.
William Ings, um vitoriano arrojado e corajoso, tinha pressa em anunciar Jesus num mundo que, na época, tinha aproximadamente 1,4 bilhão de habitantes. Ele acreditava em Mateus 24:14: “E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim”. Trabalhou para que isso fosse uma realidade em seus dias, mas foi consumido pelo trabalho na Europa e nos Estados Unidos. Viveu o suficiente para conhecer os resultados iniciais de seus esforços em 1888, quando a Review and Herald publicou cartas de pessoas que foram alcançadas pelos pacotes de literatura que chegaram ao Brasil.

O missionário inglês, precocemente envelhecido, retornou aos Estados Unidos e trabalhou na costa leste norte-americana. Morreu em 1897 em Santa Helena, na Califórnia. Ellen White, que o conhecia bem, retornou da Europa em 1900 e deve ter visitado o túmulo do amigo, nas cercanias de sua moradia. Posteriormente, ela escreveu: “Jesus está chamando a muitos missionários – homens e mulheres que se consagrem a Deus, dispostos a gastar-se e deixar-se gastar em Seu serviço. Oh! Não nos podemos lembrar de que há aqui um mundo pelo qual trabalhar? Não haveremos de avançar, passo a passo, deixando Deus usar-nos como Sua mão auxiliadora? Não haveremos de colocar-nos a nós mesmos no altar do serviço? Então o amor de Cristo haverá de tocar-nos e transformar-nos, e fazer-nos dispostos a, por Sua causa, agir ousadamente” (Colportor Evangelista, p. 18).
William Ings aguarda a ressurreição dos justos e ficará surpreso ao conhecer os resultados de suas orações e esforços pela Europa e pelo mundo. Também ficará surpreso ao saber que, no Brasil, “a semente caiu em boa terra e deu boa colheita” (Mateus 13:8).
ELDER HOSOKAWA, mestre em História Social pela USP, é coordenador e professor do curso de Licenciatura em História do Unasp, campus Engenheiro Coelho