Como as ideias do renomado sociólogo e filósofo que morreu nesta semana contrariaram a lógica do consumo e dos relacionamentos descartáveis
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman morreu na última segunda-feira (9) aos 91 anos de idade em Leeds, cidade inglesa onde morava. Considerado um dos pensadores mais influentes do século 20, ele foi o responsável por cunhar o conceito de “modernidade líquida”, metáfora da sociedade marcada pela ausência de convicções e incertezas.
Em sua vasta produção literária, que inclui mais de 50 livros, Bauman analisou problemas como a desigualdade social, a inconstância nos relacionamentos, bem como a degradação nas relações de trabalho. Porém, o consumismo ocupou um papel de destaque em seu discurso. O tema merece atenção especial porque foi à luz dele que, em grande parte, o autor explicou os demais.
Na sociedade contemporânea, o consumismo se tornou um imperativo moral. Para manter a roda da sociedade capitalista em movimento é fundamental consumir. Como Bauman argumentou, há alguns anos o sinal da riqueza era ter objetos duradouros. O uso de peça de ouro era a evidência de que a superioridade social poderia ser alcançada pela posse de bens duradouros. Hoje, a superioridade social é demonstrada pelo uso da novidade, por ter o mais recente lançamento de um produto eletrônico. Mostra-se a superioridade social pela posse dos bens a serem jogados fora o mais rápido possível. Essa é a modernidade líquida: não há nada certo e confiável. Consumir é o ato mais importante.
Os desdobramentos do consumismo obsessivo são mantidos pelo constante endividamento. Não é necessário trabalhar e poupar para consumir. A nova lógica é consumir agora e pagar depois. A facilidade de crédito é uma forma de garantir o consumo desenfreado. É claro que estar endividado é um grande problema, mas, como aponta Bauman, a culpa é transferida totalmente para o indivíduo. O discurso cínico dos que oferecem crédito fácil e, aparentemente, seguro, é que ninguém é obrigado a usar o crédito oferecido.
Outro aspecto a ser observado nos escritos de Bauman é como as próprias instituições religiosas se transformaram. Uma das características mais marcantes do pensamento protestante puritano era a simplicidade e a modéstia. O discurso religioso apontava com frequência para a necessidade de renúncia pessoal em benefício da coletividade. Havia uma clara intenção de evitar que os excessos levassem o crente a se afastar do caminho da salvação. O que observamos hoje é o oposto. Não somente surgiram novas igrejas com um discurso de incentivo ao consumo, defendendo a chamada teologia da prosperidade, mas muitas igrejas antigas abandonaram por completo o discurso de crítica à ostentação, ao egoísmo e à vaidade.
Uma das características que Bauman aponta é a “cegueira moral”. Isso é compreensível, se pensarmos que as instituições religiosas, um dos mais importantes meios de instrução moral, estão cada vez mais comprometidas com um discurso de consumismo explícito, ou na melhor das hipóteses, na omissão quanto a esse problema. O consumismo gera uma insensibilidade moral porque canaliza todas as energias da pessoa para a necessidade de ter. A fim de suprir os desejos, busca-se produzir mais pelo menor preço. E uma das formas de reduzir custos é transferir a produção para países nos quais os direitos trabalhistas são inexistentes. Assim, uma grande quantidade de pessoas é explorada ao máximo para possibilitar que uma parcela da sociedade acumule bens de consumo.
Como Bauman também apontou, outra consequência é a busca de uma constante automação para evitar, sempre que possível, os protestos dos trabalhadores por melhores condições de vida. Claro que isso acarreta uma grande quantidade de desempregados, que se tornam cada vez mais desamparados pelas políticas públicas.
Tendo em vista esse quadro, Bauman chamou a atenção para o surgimento de uma moral privatizada, sinônimo da indiferença aos graves problemas sociais. Assim, ele apresentou uma visão realista da sociedade marcada pelo consumismo e mostrou como essa prática permeia e debilita as relações sociais.
Mesmo não sendo religioso, o pensamento de Bauman deveria levar os cristãos a repensarem suas práticas e suas crenças. Afinal, as pessoas parecem estar mais interessadas em seguir um caminho autoindulgente do que o caminho da abnegação.
HALLER SCHÜNEMANN, doutor em Ciências Sociais e Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, é professor do Unasp, campus São Paulo
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.