Conheça a história do pastor adventista que perdeu a família no genocídio de Ruanda e decidiu retribuir o ódio dos inimigos com uma surpreendente manifestação de amor e graça
Neste mês, Ruanda está sendo palco de uma das maiores campanhas evangelísticas realizadas pela Igreja Adventista no continente africano. No país em que o adventismo vem crescendo de maneira expressiva, o evangelho tem sido o meio pelo qual a população está conseguindo superar os traumas do genocídio que deixou marcas profundas. Em 1994, em apenas 100 dias de terror, mais de 800 mil tutsis (cerca de 70% da população dessa etnia) foram mortos por extremistas étnicos hutus. Infelizmente, nesse período escuro da história de Ruanda, as diferenças tribais e o ódio falaram mais alto, levando até mesmo líderes religiosos a cometer atos de insanidade contra pessoas próximas. Mas, em meio à explosão de ódio, surgiram também manifestações de amor ao extremo. É o que mostra esta história, publicada originalmente pela Adventist Review. Você vai conhecer o homem que, em vez de alimentar o desejo de vingança, manifestou o verdadeiro espírito cristão, oferecendo perdão àqueles que tiraram a vida de sua esposa e de seus nove filhos.
Por Isaac Ndwaniye
Muitas pessoas haviam fugido para o complexo murado da Missão Sul de Ruanda (sede adventista local) após o início do genocídio no país em 7 de abril de 1994. Com o pensamento de que ali estariam seguros, pastores e seus familiares se uniram a outros membros da igreja, lotando o local, sobretudo o templo.
Eu trabalhava como diretor do departamento de publicações da Missão Sul de Ruanda. A sede administrativa, a igreja, a escola, as casas dos obreiros e o hospital Mugonero estavam localizados no mesmo complexo, em uma região de Ruanda conhecida como Kibuye.
No dia anterior ao que os ruandeses começaram a matar uns aos outros, eu estava participando de um encontro da área de publicações na sede da União Missão de Ruanda, na capital do país, Kigali. Naquela noite, o presidente da nação foi morto a tiros em seu avião e o genocídio começou. No dia seguinte, um funcionário do hospital Mugonero me ligou contando que meu filho, Paul, de catorze anos, tinha sido assassinado, minha esposa e meus outros filhos haviam fugido para o complexo da igreja em busca de proteção.
Então, no dia 16 de abril, um sábado, os assassinos entraram no complexo com o auxílio do presidente da Missão e de seu filho, médico que trabalhava no hospital Mugonero. Como isso aconteceu? Meu pai, que foi pastor, havia trabalhado com esse líder. Eu também trabalhava com ele, mas não fazia ideia do que se passava em seu coração naquela ocasião.
O que mais me entristeceu foi saber que os pastores abrigados na igreja com minha esposa e meus outros oito filhos tinham escrito uma carta ao presidente da Missão, dizendo: “Sabemos que eles estão vindo nos matar. Por favor, ajude-nos a conseguir um barco e atravessar para o Congo, a fim de que sejamos resgatados”.
Um soldado que os estava protegendo na igreja levou a carta até a casa do presidente, que ficava ali perto, no complexo. Ele respondeu que nem Deus poderia ajudá-los naquela hora.
Pessoas de todo o país apareceram no complexo para matar os adventistas. Chegavam com granadas, facões, facas, qualquer coisa que pudesse ser usada para matar um ser humano!
Um pastor estava pregando quando os assassinos entraram na igreja. Primeiro atiraram nele e o mataram. Então, começaram a executar os outros. Minha esposa e meus filhos correram para a casa do presidente em busca de ajuda, mas ele os mandou embora. Outros correram em direção ao hospital, na tentativa de escapar, mas foram pegos por pessoas que os esperavam armadas com facões. A matança dentro do complexo continuou. Dia e noite, os assassinos procuravam pessoas que poderiam ter fugido. Chegaram a trazer cães para ajudá-los na busca no meio do mato.
Quando o genocídio terminou, no dia 1o de julho, eu havia perdido minha família inteira: esposa e nove filhos, pai e mãe, três irmãs, um irmão e um cunhado.
Igreja para os desalojados
A deflagração do genocídio tornou impossível minha volta para casa. De Kigali, fui levado por um grupo de soldados a um campo interno para pessoas desalojadas em uma província no norte do país.
Eu era o único pastor dessa região e não tinha tempo para me demorar em pensamentos ruins. Descobri que, quando você está ocupado fazendo o bem, acaba esquecendo as coisas ruins que lhe aconteceram. Foi assim que Deus me fortaleceu.
Certa noite de sexta-feira, eu estava caminhando em uma cidade próxima e vi uma igreja católica abandonada. Pedi permissão para orar e realizar cultos naquele local. Quando recebi a autorização, convidei as pessoas a ir à igreja no sábado.
Começamos a nos reunir como congregação todos os sábados. Embora estivéssemos desabrigados, aqueles que tinham algum dinheiro devolviam fielmente os dízimos e davam ofertas como se ainda estivessem em casa. Algumas vezes, pessoas da Uganda foram nos visitar e nos deram dinheiro, o qual também dizimávamos e usávamos para ofertar. Guardamos os dízimos em segurança até que a igreja de Ruanda conseguisse voltar a funcionar e usamos as ofertas para ajudar a tratar os feridos de guerra.
Muitas pessoas de outros credos se uniram aos adventistas em adoração a cada sábado. Quando deixei esse território quatro meses depois, trezentas pessoas estavam preparadas para o batismo.
Quando o genocídio terminou, viajei para Kigali e descobri que nenhum templo adventista do país estava em atividade. Saí então por toda a cidade, suplicando às pessoas que voltassem para a igreja. Ainda hesitando, elas começaram a retornar e fui chamado para servir como presidente da igreja em Ruanda por dois anos. Depois disso, fui eleito para o departamento de Publicações da União de Ruanda.
Cinco anos depois, recebi o convite mais desafiador da minha vida: Estaria disposto a servir como presidente daquela mesma região que incluía o complexo de Mugonero, no qual minha família tinha sido executada?
Orei a esse respeito e decidi ir. Seria a primeira vez que eu voltaria para lá e trabalharia com as pessoas que haviam matado minha família. Eu não sabia o que dizer quando retornei sozinho, por isso orei: “Senhor, ajuda-me e dá-me forças, bem como as palavras para eu dizer a essas pessoas”.
Lembro-me de ter passado uma noite inteira em oração, pedindo a Deus um direcionamento claro, pouco depois de meu retorno. De manhã, tive a certeza de que precisava convocar todos para uma reunião. Eu sabia que, se não falasse com a comunidade desde o início, as pessoas sempre se sentiriam ameaçadas por minha presença. Eu precisava abrir meu coração.
Então, chamei todos para um grande encontro no primeiro sábado após minha volta e disse: “A União de Ruanda me chamou para pregar as boas-novas e liderar esta Associação. Não quero que ninguém me conte quem matou minha família. Tampouco quero que você me diga que é meu amigo. Meu amigo é todo aquele que ama a Deus e a obra de Deus. Vamos trabalhar juntos nesse espírito”.
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“Quando as pessoas falam coisas ruins acerca dos homicidas no genocídio de Ruanda, eu as faço lembrar que Deus é muito paciente”
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Fiquei ali por três anos e então fui chamado de volta a Kigali para servir como presidente do que hoje constitui a Associação Centro-Leste de Ruanda. Louvo ao Senhor porque nossa Associação passou de 65 mil membros em 2004 para mais de 110 mil atualmente. Entre a população total do país, com doze milhões de habitantes, a igreja conta com cerca de 640 mil membros, e agora estamos realizando estudos bíblicos a fim de preparar cem mil pessoas para ser batizadas após uma série evangelística no fim de maio.
Amor e perdão
Meu texto preferido da Bíblia é João 3:16: “Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (NVI). Se Deus não amasse todos os habitantes do mundo, eu teria ido matar os assassinos. Mas Deus os ama e lhes dá tempo para que se arrependam.
O presidente da Missão e seu filho foram julgados e condenados por crimes contra a humanidade e genocídio. O pai morreu e o filho continua no cárcere.
Durante o genocídio, um jornalista me entrevistou. Ele ficou sabendo como eu havia perdido minha família inteira e perguntou: “O que você pensa sobre vingança?”
Peguei minha Bíblia e abri em Hebreus 10:30-31: “Ora, nós conhecemos aquele que disse: A mim pertence a vingança; Eu retribuirei. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo”.
O jornalista ficou surpreso. Ele achou que eu incentivaria a retaliação. Mas minha resposta veio da Bíblia.
Quando as pessoas falam coisas ruins sobre os assassinos, gosto de fazê-las lembrar que temos um Deus muito paciente. Ele é paciente com todos. Não quer que ninguém pereça. É a única coisa que pode ajudar alguém como eu, que passou por circunstâncias tão terríveis. Qualquer pessoa que se aproximar de Deus reconhecendo seus erros, será perdoado. Não existe pecado que Deus não perdoe. A morte não o assusta nem é um grande problema para Ele.
Outra coisa que me dá forças hoje é saber que minha família, os outros pastores e seus familiares dentro da igreja do complexo passaram seus últimos dias estudando a Bíblia. Eles oraram a Deus pedindo perdão pelos próprios pecados e pedindo perdão uns aos outros. Isso me fortalece para continuar a viver, porque sei que um dia eu os verei de novo. Tenho certeza de que estão dormindo e despertarão um dia. Por causa disso, eu vivo por Ele.
Isaac Ndwaniye é presidente da Igreja Adventista para a região Centro-Leste de Ruanda
[Tradução: Cecília Eller Nascimento]Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.