Sem espaço para Deus

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O que você pode fazer para diminuir o crescente ceticismo
Pablo Marcelo Claverie
Crédito: Fotolia

Não ouviram falar do homem louco que, em plena luz do dia, liga uma lanterna e corre pela praça pública, gritando sem parar: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’ Como ali havia muitos que não acreditavam em Deus, seus brados causaram gargalhadas: ‘O quê? Perderam Deus?’, perguntou alguém. ‘Está perdido como uma criança pequena?’, indagou outro. ‘Será que está escondido? Com medo de nós? Ele viajou? Emigrou?’ Assim gritavam e riam numa grande confusão.

O louco foi até eles e os fulminou com os olhos: ‘Para onde Deus foi? Digo a vocês’, esbravejou. ‘Nós O matamos! Vocês e eu! Todos nós somos assassinos! Como podemos fazer isso? Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para secar o horizonte? O que fizemos ao separarmos esta Terra do vínculo com o seu sol? Para onde vão agora seus movimentos? Longe de todos os sóis? Não caímos constantemente? Para frente, para trás e para todos os lados? Há, ainda assim, um acima e um abaixo? Não vamos como itinerantes através de um nada infinito? Não nos persegue o vazio com seu alento?

Não faz mais frio? Não veem escurecer cada vez mais e mais? Não é necessário ligar lanternas em pleno meio-dia? Não ouvimos o som dos coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos o mau cheiro da decomposição divina? Os deuses também se decompõem! Deus está morto e fomos nós quem O matamos! Como nos consolaremos uns aos outros, assassinos entre os assassinos? O que o mundo tinha de mais sagrado e poderoso está se esvaindo em sangue sob nossa faca. Quem excluirá de nós esse sangue? Que água poderá nos purificar? Que expiações, que articulações nos veremos forçados a inventar?’” (La Gaya Ciencia, p. 137, 138).

Essas dolorosas e excessivamente lúcidas palavras foram escritas no livro La Gaya Ciencia por quem tem sido considerado o mais cruel e vigoroso ateu da história, arqui-inimigo do cristianismo: o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele é tido por muitos como o “profeta da pós-modernidade” e um dos pensadores mais influentes da história.

Nietzsche não acreditava na morte literal de Deus porque era ateu. Porém, como tantos outros céticos, ele acreditava que Deus fosse uma idealização humana; um produto meramente cultural, criado por mentes primitivas, débeis e supersticiosas como um mecanismo de defesa; um “bastão” existencial para suportar as lutas da vida e ter a ilusão de uma transcendência eterna que compense as dores desta existência terrena.

Por isso, para Nietzsche, a “morte de Deus” não era objetiva, literal, mas subjetiva, na consciência, na cosmovisão e no sentir do homem ocidental. Isso ocorreu especialmente a partir do movimento iluminista, no século 18, com a revolução cartesiana preparando o caminho para as ideias do racionalismo (cogito, ergo sum: penso, logo existo), que na Revolução Francesa (1789) ganhou tal força a ponto de se decretar a não existência de Deus. O abandono de Deus como centro da vida, do pensamento e da ação fez com que o teocentrismo (Ele como parâmetro de todas as coisas), que imperou do início da humanidade até a Idade Média, fosse substituído pelo antropocentrismo ou humanismo da Modernidade (o homem é o parâmetro de todas as coisas) e, mais recentemente, pela Pós-Modernidade, também chamada Era Pós-Cristã e Pós-Moral.

Causas do ateísmo

Desde então, vivemos marcados por um clima de ceticismo generalizado no Ocidente, em que Deus é a grande lacuna na vida de milhões de pessoas. O ponto é que a incredulidade se manifesta em diversos graus. Os deístas, por exemplo, creem que Deus existe, mas desistiu de Sua criação e não Se interessa nem intervém na vida humana. Portanto, pouco sentido faz ­interessar-se por Ele. Por sua vez, os agnósticos não se atrevem a negar veementemente a existência de Deus, tampouco acreditam que haja suficiente evidência para afirmá-la. Logo, deduzem que não se pode saber se Ele existe ou não. Por fim, os ateus, que já decidiram sobre isso, afirmam: Deus não existe. Ponto. A questão é: qualquer que seja o nível de descrença, estamos imersos em um clima de secularismo, materialismo e antirreligiosidade que se observa no cotidiano, nos meios de comunicação de massa, e especialmente, nas universidades.

Sendo que até a Modernidade todas as civilizações e culturas eram religiosas, como se produziu esse fenômeno do ceticismo? O fenômeno é muito complexo. As causas são múltiplas e respondem a um processo que levou séculos para se consolidar. Em resumo, ainda que não devamos cair em reducionismos simplistas, esse fenômeno pode ser interpretado como uma atuação do inimigo de Deus para remover o Criador do coração dos seres humanos (2Co 4:3, 4). Evidentemente que o diabo não costuma atuar no vácuo, mas por meio de processos psicológicos, morais, religiosos, sociológicos, científicos, políticos e históricos, a fim de levar seu plano adiante.

Neste sentido, há uma declaração muito orientadora do documento Gaudium et Spes (disponível no site vatican.va), elaborada no Concílio Vaticano II, num contexto de diálogo do catolicismo com a sociedade: “Aqueles que voluntariamente pretendem afastar Deus de seu coração e negligenciar as questões religiosas ignoram o ditame de sua consciência e, portanto, não são desprovidos de culpa. Porém, os crentes também têm sua parte de culpa nisso. Porque o ateísmo, considerado em sua totalidade, não é um fenômeno inicial, mas derivado de várias causas, entre as quais se deve contar a reação crítica contra as religiões e, em algumas regiões do mundo, principalmente contra a religião cristã. Pelo que nessa gênese do ateísmo podem ter parte considerável os próprios crentes, ao passo que, com o descuido da educação religiosa ou com a exposição inadequada da doutrina, ou inclusive com os defeitos de sua vida religiosa, moral e social, eles têm ocultado, mais que revelado, o genuíno rosto de Deus e da religião” (capítulo 1, p. 19, parágrafo 3).

Nessa autocrítica que a Igreja Católica fez ao analisar o fenômeno do ­ateísmo, a instituição colocou a responsabilidade por esse descolamento, em grande parte, sobre as próprias ­religiões. É uma estranha e lamentável ironia: aqueles que supostamente são os representantes de Deus na Terra, em maior ou menor grau, acabaram causando o desprezo da sociedade pela vida religiosa. É como se os cristãos tivessem ocultado o verdadeiro rosto de Deus diante dos homens, em vez de
revelá-lo ao mundo.

E de que maneira os religiosos contribuem para a “morte de Deus” na cultura ocidental? Abaixo sugiro cinco posturas:

1. Secularismo. Negamos a Deus quando professamos crer Nele, mas vivemos do mesmo modo que as pessoas não religiosas: nos portando de maneira imprópria com o sexo oposto, abusando emocionalmente das pessoas próximas, explorando o trabalhador e utilizando linguagem grosseira. Negamos a Deus também quando vivemos em função das conquistas materiais e dos prazeres pecaminosos, como escravos das últimas tendências da moda e da tecnologia e pagando o alto custo da ostentação. Por meio de nossas atitudes comunicamos que nossa fé não tem poder de transformar e reorientar nossa vida. Talvez tenha sido por isso que Voltaire, aquele incrédulo pensador do movimento iluminista, disse: “Acreditaremos quando os que pregam o Redentor viverem como redimidos.”

2. Legalismo. No outro extremo temos a atitude do legalista, que, em vez de viver de modo voluntário e alegre a conduta moral da religião, entende o cumprimento das regras como uma moeda de troca para ser aceito por Deus e salvo da condenação. A imagem que esse tipo de crente transmite acerca de Deus é que Ele é um “grande ditador cósmico”, que necessita alimentar Seu ego controlando Suas criaturas, sob a pena de retirar delas Seu favor e destruí-las de modo sádico no juízo final. Portanto, os que servem a Deus são aduladores e rebeldes reprimidos, que Lhe obedecem por medo ou interesse.

Sem saber ou querer, esse grupo apoia Satanás na acusação de que Deus é um tirano celestial e que ter um relacionamento com Ele significa perder a liberdade. Além disso, essa visão leva os legalistas a nutrir um coração duro em relação àqueles que não cumprem a vontade de Deus “tão bem” quanto eles. Tornam-se espiões da conduta alheia e juízes sem misericórdia do próximo. O efeito para o testemunho cristão é que os não religiosos passam a ver o cristianismo como uma “camisa de força”, pela qual não querem ser aprisionados.

3. Alienação. É a atitude daquele que, em nome de sua fé em Deus, se aliena da realidade, perde contato com ela e foge dos deveres cotidianos sob o pretexto de que sua devoção religiosa legitima sua irresponsabilidade. Pessoas assim geralmente possuem uma espiritualidade mais mística e acreditam que receberam um chamado especial de Deus para um trabalho específico no mundo. Em nome dessa vocação, eles negligenciam a própria saúde e o cuidado financeiro e emocional da família. Alguns beiram ao disparate, argumentando que ouviram alguma orientação do Espírito Santo, quando não ouviram nada. Eles são especialistas em mecanismos de autossugestão e autoconvencimento.

Além disso, religiosos desse tipo costumam interpretar a realidade com exagero, sem considerar a racionalidade dos fenômenos e suas possíveis causas naturais. Veem a intervenção direta de Deus, mas especialmente do diabo, em quase tudo. Diante dessa postura, os incrédulos tendem a considerar os crentes como loucos.

4. Comodismo. Muitos dos religiosos podem não se enxergar como pessoas más, hedonistas nem materialistas, mas podem padecer de uma espiritualidade sutilmente egoísta. Seu principal interesse é a salvação pessoal ou, quando muito, de seus amigos e familares. Não se preocupam com o próximo nem têm autêntica compaixão pelo necessitado. São semelhantes ao sacerdote e ao levita da parábola do bom samaritano (Lc 10:25-37), que não desejam se comprometer com a dor alheia.

Esse grupo também costuma se assegurar no fato de que tem a verdade doutrinária e não incorre em nenhuma conduta duvidosa (moral passiva). São aqueles que se contentam, por exemplo, em ser bons adventistas: o que significa não usar joias, evitar o consumo de certos alimentos, músicas e filmes, além de frequentar as reuniões regulares da igreja. Tais religiosos falham no que poderíamos chamar de moral ativa: não possuem consciência social (o que não significa necessariamente engajamento político-
partidário), e a solidariedade prática não é uma prioridade em sua agenda missionária. Quando o cristianismo é vivido assim, os religiosos reforçam para os incrédulos a ideia de que estamos sozinhos no mundo lutando pela nossa sobreviência. Dessa forma, em vez de ser um sinal da presença de Deus no mundo, a igreja acaba sinalizando Sua “ausência”.

5. Anti-intelectualismo. A Modernidade, com sua exaltação da razão como “deusa” suprema diante da superstição da fé, foi, em grande medida, uma reação não apenas aos abusos religiosos da igreja medieval (é difícil esquecer os horrores da Inquisição), mas também aos intelectuais.

Eles sustentaram e impuseram ideias científicas supostamente fundamentadas na Bíblia, mas que não tinham outro fundamento a não ser preconceitos, ideias preconcebidas e a força de paradigmas científicos dominantes durante milênios (como a teoria geocêntrica, que imperou durante séculos, até ser desbancada pela teoria heliocêntrica).

Não se entendeu corretamente a relação entre o mundo natural e o sobrenatural, crendo que todo fenômeno explicável correspondia à ordem natural, ao passo que tudo o que não tinha explicação científica correspondia à ordem sobrenatural, milagrosa, de intervenção direta de Deus… ou dos demônios. Evidentemente, quanto menos explicações científicas havia, mais “gigantesca” era a intervenção de Deus na natureza.

No entanto, conforme explicou o paleontólogo Richard M. Ritland, quanto mais a ciência foi encontrando explicação para os fenômenos naturais, Deus foi ficando cada vez menor diante da mente científica, até praticamente desaparecer (A Search for ­Meaning in Nature [A Busca por Significado na Natureza], p. 11-27). Embora a fé seja um fenômeno suprarracional (que excede a razão e o conhecimento humano, não depende deles para sua demonstração), não é de modo algum irracional (que vai contra a razão). O cristão deve usar a fé e a inteligência para viver seu relacionamento com Deus. Lamentavelmente, em nome da fé, muitas vezes os crentes tiram conclusões de ordem filosófica, psicológica, política e científica que são disparates que desacreditam sua religião, a revelação bíblica e, em última instância, Deus.

A morte de Deus e a pós-modernidade

A Pós-Modernidade, herdeira direta do movimento que proclamou a morte de Deus, acabou com a ideia de que a realidade pode ser interpretada objetivamente (verdade absoluta). Para os filósofos pós-modernos, a verdade não é mais que uma interpretação mediada pela linguagem. Logo, a subjetividade da linguagem assume o papel principal, a ponto de colocar o que o leitor de um texto entende sobre ele como mais importante do que o que o autor intencionou comunicar.

Esse “relativismo hermenêutico” levou à morte do autor. No caso da Bíblia, isso resultou na morte do Autor. Em outras palavras, a Bíblia é despojada de duas características essenciais: seu Autor não existe e sua mensagem não é autoritativa. Como cristãos hoje, temos o desafio de mostrar que a Bíblia foi inspirada por um Deus vivo e que contém objetivamente as respostas corretas às nossas perguntas essenciais.

Foi para estabelecer essas pontes que procurei explicar brevemente neste artigo algumas possíveis causas para o ceticismo. Dessa maneira podemos compreender melhor nossos familiares, amigos, vizinhos e colegas de trabalho que, por ora, não acreditam em Deus e desconfiam de tudo que tenha “cheiro” de religião.

É certo que, para muitas pessoas, o ceticismo é um mecanismo para justificar uma vida centrada no eu e independente de Deus (Rm 1:28). No entanto, em outros casos o ceticismo tem origem psicológica, histórica e sociológica, provavelmente uma reação de indignação ou incompreensão da postura institucional e individual de religiões e religiosos. Para essas situações, algumas atitudes dos cristãos podem contribuir com o trabalho de conversão do Espírito Santo. Termino o artigo sugerindo algumas:

1. Ore. A verdadeira conversão não é fruto da eloquência da argumentação humana, mas do trabalho milagroso do Espírito.

2. Respeite. Entenda o que essas pessoas pensam e sentem a respeito de Deus e das religiões. Não se escandalize com a antirreligiosidade delas e reconheça com humildade que há certo grau de razão na postura delas. Aproveite a oportunidade para fazer uma autocrítica.

3. Seja coerente. Comprometa-se a viver realmente como cristão. Ninguém deve esperar perfeição moral de você, porque é um pecador como os demais em processo de cura. Porém, se você se entregar para ser transformado por Cristo, haverá uma harmonia essencial entre sua fé e conduta. Viver como cristão é sua primeira atitude missionária.

4. Seja sensato. Concilie sua racionalidade com sua fé na revelação bíblica. Estude com seu amigo, por exemplo, sobre as evidências de um design inteligente na natureza, o caráter sobrenatural da Bíblia, a veracidade histórica de Cristo e a grandeza espiritual e filosófica da mensagem cristã. Não discuta nunca, principalmente acerca de assuntos que você não domina.

5. Seja um sinal do reino. Viva com genuína preocupação pelo próximo e seja um “pequeno Cristo” para o que sofre, a fim de que você manifeste o verdadeiro rosto de Deus ao mundo. Dessa maneira, será mais fácil testemunhar sobre o que Jesus representa para você a apresentá-Lo como o único caminho a ser seguido.

PABLO MARCELO CLAVERIE, graduado em Teologia e Aconselhamento, é editor e revisor na Asociación Casa Editora Sudamericana

(Artigo publicado na edição de setembro de 2017 da Revista Adventista)

Última atualização em 7 de dezembro de 2017 por Márcio Tonetti.