Quando os cristãos adotam o ateísmo sem deixar de crer em Deus
Imagine um pastor adventista que, de repente, decide experimentar como é ser ateu e passar um ano sem Deus. Nenhuma oração, nada de leitura da Bíblia, fim da frequência à igreja. Loucura, desilusão, jogada de marketing? Qualquer que seja a resposta, essa história realmente aconteceu. E, além de perder o emprego na igreja e nos seminários evangélicos onde dava aulas, o pastor perdeu também a fé. Uma triste história!
Ryan Bell não é o único a ter crise de fé. Segundo o Pew Research Center, há cerca de 1,1 bilhão de pessoas sem filiação religiosa no mundo, ou seja, quase um em seis habitantes (16,4% da população), a maioria (76%) concentrada na região da Ásia-Pacífico. Nem todos são ateus, mas uma parte desse grupo não crê. Como ainda existe certo estigma em torno do ateísmo, alguns pesquisadores acham que o número pode ser maior. Os ateus militantes também estão mais ousados. Alguns defendem a causa como se fossem evangelistas do ceticismo.
No entanto, matar o sentimento religioso não é tão simples. Apesar do emaranhado de expressões religiosas distorcidas que se vê, devemos lembrar que o Criador colocou um sonho de eternidade no coração humano (Ec 3:11), e o desejo legítimo por Deus faz parte da nossa estrutura. Embora o pecado tenha corrompido a programação original da raça humana e originado tendências anti-Deus, que o Diabo aproveita para defender sua causa, não ter religião é contra a natureza.
Algumas sociedades também perdem a fé, mas depois tentam recuperá-la. Por exemplo, em 1949, a China adotou o comunismo e tentou varrer do mapa a “superstição” religiosa. No fim dos anos 1970, parecia que o projeto havia sido bem-sucedido. Mas agora a religião está florescendo novamente lá. Isso é o que mostra um novo livro intitulado The Souls of China: The Return of Religon After Mao (As Almas da China: A Volta da Religião Depois de Mao), do premiado jornalista Ian Johnson. Se fosse para resumir essa tendência em uma palavra, diz ele, seria “céu” (tian), um conceito que evoca a noção de justiça, respeito e solidariedade, algo importante numa sociedade que, oscilando entre o socialismo e o hipercapitalismo, perdeu o compasso moral e procura recuperá-lo.
Tentar viver sem Deus é a loucura das loucuras. O resultado é um mundo fragmentado, uma sociedade mergulhada em escândalos, um número crescente de pessoas desiludidas e perdidas. Mas, como mostra a matéria de capa desta edição, boa parte da culpa dessa tendência é dos próprios religiosos, que não vivem sua fé de maneira coerente. É por isso que muitos pesquisadores enxergam no crescimento dos sem religião uma rejeição das instituições e comunidades religiosas, e não necessariamente de Deus.
Infelizmente, muitos religiosos vivem como descrentes. São cristãos ateus. Não estou falando de gente que não crê em Deus e se diz cristã, o que também existe, mas sim de pessoas que negam a fé pelo seu comportamento. Assim como a Lua escondeu o Sol no eclipse do dia 21 de agosto, podemos eclipsar o Sol da Justiça e impedir que as pessoas vejam nitidamente Seu brilho. Se o raro fenômeno astronômico proporcionou um belo espetáculo em alguns lugares, o bloqueio dos raios da glória divina nunca é bonito. Em vez de eclipsar a Deus, Ele deveria nos eclipsar.
Proclamamos que não cremos plenamente em Deus e eclipsamos Sua manifestação quando não oramos, não estudamos a Palavra, não internalizamos a verdade, não vivemos o amor; quando não confiamos no poder e na bondade de Deus e somos dominados por um estado de superansiedade; quando não aceitamos o perdão e não perdoamos; quando assumimos uma postura de orgulho e superioridade; quando julgamos e desprezamos os outros; quando temos uma atitude crítica e afastamos os outros do Salvador; quando o fanatismo veste a capa de consagração e a religião se torna tóxica; quando negamos os princípios e os valores da fé; quando não refletimos o caráter de Cristo e negligenciamos o preparo para Sua segunda vinda…
Quando isso ocorre, além de nos tornarmos ateus na prática, formamos novos descrentes e impedimos que eles se tornem cristãos.
MARCOS DE BENEDICTO é editor da Revista Adventista
(Editorial publicado originalmente na edição de setembro de 2017 da Revista Adventista)
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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.