Na visão dos mileritas, o mundo deveria ter acabado há exatos 170 anos. O que deu errado?
O ano de 2014 tem um significado especial para o calendário daqueles que aguardam o fim do mundo. Em 22 de outubro de 2014, faz 170 anos que um grupo de milenaristas cristãos, incendiados pela pregação de Guilherme Miller, se reuniu para lançar seus olhares esperançosos em direção às nuvens, aguardando a chegada gloriosa e cronometrada de Cristo.
No entanto, assim como ocorreu com os discípulos (Lc 24:21), os mileritas ficaram decepcionados e precisaram racionalizar a não realização do sonho. A partir daí, o tema da demora do advento nunca abandonou seus futuros herdeiros proféticos, os adventistas. Mesmo depois de 1844, se você fizesse uma entrevista com qualquer um dos pioneiros e perguntasse: “Você acredita que Jesus estará aqui em 1900?”, ouviria a resposta: “Ele voltará muito antes disso!” Contudo, Cristo ainda não veio. Como resolver o problema? Quando dizemos que “o fim está próximo”, mas o fim não chega, o que fazer?
Tensão paradoxal
Desde os primórdios da religião bíblica, manter em equilíbrio o fogo da iminência e o gelo da tardança não tem sido tarefa fácil. As duas coisas coexistem em tensão paradoxal. No livro The Delay, Marvin Moore sugere que a espera começou no próprio Céu. Deus havia planejado ampliar a criação e exaltar o Filho, mas a revolta de Lúcifer alterou os planos. Em nome do amor, o Criador não destruiu os anjos rebeldes de imediato. Deus esperou e ainda está esperando.
Na Terra, a espera continuou com a expectativa pela semente da mulher (Gn 3:15). Mais tarde, o patriarca Abraão teve que esperar o filho prometido até os cem anos. Em certo sentido, ele se tornou um paradigma da espera.
No tempo dos profetas do Antigo Testamento, a manifestação final de Deus para trazer julgamento para os maus e recompensa/proteção para os bons era indicada pela expressão “dia do Senhor” (Yom Yahweh), que não queria dizer um dia específico de 24 horas, mas um evento escatológico. E a urgência/iminência já estava presente: “o dia do Senhor está perto” (Is 13:6, 9); “o dia do Senhor está próximo” (Ez 30:3); “sim, o dia do Senhor está próximo” (Jl 1:15; 2:1; 3:14); “pois o dia do Senhor está próximo para todas as nações” (Ob 1:15); “o grande dia do Senhor está próximo; está próximo e logo vem” (Sf 1:14; 1:7).
Então, por volta do 2º século a.C., um novo movimento começou a lidar de modo mais intenso com o fator tempo em conexão com a esperança do dia do Senhor. Desde o início, os autores apocalípticos tinham consciência do problema da demora. Esse gênero surgiu do profetismo e, com acentuado toque escatológico e imaginação viva, olhava para o futuro, o clímax da história, um tempo em que Deus interviria na ordem mundial para dar sentido às coisas e inaugurar a eternidade. Porém, esse dia nunca surgia no horizonte.
Com a chegada do Messias, o problema foi “transferido” para os cristãos. Ao ir para o Céu, Jesus prometeu que voltaria – e logo. A iminência da segunda vinda de Cristo é destacada em todo o Novo Testamento. Para constatar que esse evento glorioso estava no radar dos primeiros cristãos, basta conferir algumas afirmações: “a noite está quase acabando; o dia logo vem” (Rm 13:12); “perto está o Senhor” (Fp 4:5); “se aproxima o Dia” e “em breve, muito em breve ‘aquele que vem virá, e não demorará’” (Hb 10:25, 37); “a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5:8); “o fim de todas as coisas está próximo” (1Pe 4:7); “esta é a última hora” (1Jo 2:18); “venho em breve” (Ap 3:11). E os “pais” da igreja, como Justino Mártir, Cipriano e Agostinho, continuaram com a mesma retórica sobre a proximidade do fim. Será que todos eles estavam errados em suas expectativas?
Albert Schweitzer sugeriu que o próprio Jesus pensava que Sua morte desencadearia a inauguração imediata do reino messiânico, e Paulo teria incorrido num erro parecido. Para o teólogo Ben Witherington, Jesus e Paulo não defenderam que o fim do mundo ocorreria em seu tempo, mas que era iminentemente possível. A linguagem da iminência era para alertar sua audiência sobre a necessidade de se preparar e vigiar.
Na verdade, Cristo falou da proximidade do reino, mas frisou a indefinição do elemento tempo, o caráter súbito do acontecimento e a necessidade do preparo contínuo (Mt 24:36, 42 ). Ele focalizou mais o quem, o que e o como do que o quando. Sua ênfase estava no preparo. Falar do quando não traz o quando (advento) nem produz uma experiência espiritual sólida.
Em parte, a explicação para as afirmações escatológicas de Cristo está no fato de Ele ter misturado elementos da conflagração de Jerusalém com sinais do fim do mundo. Para os judeus, a destruição da cidade santa e do templo simbolizava o fim de uma era (aion).
Os autores do Novo Testamento consideravam a parousia (ver o quadro) um evento iminente, “à mão”, mas não fizeram nenhuma tentativa de estabelecer uma data precisa. De acordo com o estudioso bíblico Bruce Malina, os povos mediterrâneos do 1º século tinham um modelo diferente do tempo. Basicamente, eles estavam preocupados com o “hoje”, e não com o futuro, que pertence a Deus. Por isso, evitavam especular sobre o amanhã.
Respostas complexas
A rigor, a demora não tinha e não tem que ver apenas com o fator tempo, o não cumprimento de uma profecia, a esperança frustrada ou o desejo humano de desfrutar logo os prazeres do Céu, mas com algo mais complexo. No âmago da demora está o que os teólogos e filósofos chamam de “teodiceia”, a tentativa de explicar a bondade e o poder de Deus em face da proliferação do mal no mundo.
“A questão da demora é a versão apocalíptica do problema do mal”, escreveu já na década de 1980 o teólogo inglês Richard Bauckham, um dos mais argutos intérpretes dos primórdios do cristianismo. Para os apocalípticos, o problema do mal será resolvido quando chegar o fim do mundo, pois Deus julgará todos os atores do teatro humano e fará justiça geral. Contudo, se esse dia não chega, o dilema não é resolvido.
Como pode um Deus bom e todo-poderoso permitir que a situação do mundo chegue a esse ponto, sem aparentemente tomar nenhuma atitude? Se a situação é demais para nosso senso de justiça, imagine para Deus! Então, por que Ele não faz nada? Um Deus justo precisa agir rápido. Isso cria o senso de iminência. Porém, Deus demora, o que leva ao grito repetido nas Escrituras: “Até quando, Senhor?” Por que o relógio divino está “atrasado”? Aqui entram as várias respostas dadas ao longo dos séculos:
- Impossibilidade. Cristo não vem. Tudo é ilusão. O mundo social é um reflexo do mundo natural, que permanece do mesmo jeito desde o início. Essa é a resposta do ceticismo. De acordo com o apóstolo Pedro (2Pe 3:3, 4), os escarnecedores dos últimos tempos teriam tal postura.
- Agenda. Para ocorrer a demora, é preciso haver uma data estabelecida; como o Novo Testamento não estabelece nenhum tempo, falar em “demora” e “tardança” seria impróprio.
- Tempo divino. Para Deus, o tempo é diferente. A perspectiva divina é mais ampla. O período de mil anos em nosso calendário é como se fosse um dia no calendário divino. Devemos ver o tempo pelo calendário divino. O apóstolo Pedro (2Pe 3:8) apela para esse argumento.
- Paciência. Deus não quer que “ninguém pereça” (2Pe 3:9) e, por isso, espera além do que parece razoável.
- Condicionalidade. A profecia da volta de Jesus é incondicional, mas o tempo depende das circunstâncias. Como não existem mais profecias com data pré-estabelecida (Ap 10:6), a hora do evento depende de outros fatores.
- Maldade. Na visão de alguns, o grau de maldade do mundo ainda não atingiu o estágio suficiente para ser objeto da ira divina.
- Evangelização. Quando o evangelho for pregado em todo o mundo, então virá o fim (Mt 24:14). Isso ainda não ocorreu.
- Perfeição. Deus está esperando que Seu povo atinja um nível mais elevado de santidade. “Quando o caráter de Cristo se reproduzir perfeitamente em Seu povo, então virá para reclamá-los como Seus”, é a frase de Ellen G. White (Parábolas de Jesus, p. 69) preferida dos defensores deste ponto de vista.
- Soberania. Deus fixou a data desde a eternidade (At 17:31; 2Pe 2:3). Porém, em Sua sabedoria, preferiu não revelá-la, a fim de que não desanimemos, uma vez que a espera é longa. Ele postergou a data já no momento de estabelecê-la. A espera é pré-determinada, não pós-estabelecida.
- Grande conflito. Deus quer que o Universo conheça Seu caráter e, por isso, está esperando o momento certo para colocar o ponto final na história do pecado. Destruir o mundo antes da hora poderia danificar Sua imagem. A espera/demora nasceu com o grande conflito e terminará com ele.
No fim das contas, várias dessas respostas têm mérito, e a tardança se deve a uma série de motivos. A demora estava prevista (Mt 25:5) e, portanto, não se pode falar em atraso da parte de Deus. O importante é ter a atitude certa. Pensar que a culpa é nossa só piora as coisas, pois coloca o foco em nós em vez de Deus. A boa notícia é que, assim como Isaque, Cristo aparecerá por um milagre divino. Esperar o Filho é um teste de fé.
A resposta da esperança ainda é a mesma do profeta Habacuque (2:3): “Se demorar, espere!” Não se preocupe! No tempo certo, o Senhor vai refazer o mundo e a sociedade, numa mudança radical com reflexos em escala cósmica. Deus está de olho no grande relógio da história. Sem cair no erro de marcar data, você pode ter a certeza de que a demora está quase terminando!
SAIBA MAISEntenda o que é Parousia
Tecnicamente, o nome dado para o advento de Jesus em glória no céu é parousia, que quer dizer “presença”, “chegada”, “vinda”. O termo, que ocorre 24 vezes no Novo Testamento, era usado no mundo grego/helenístico para indicar o cerimonial da chegada do rei ou governante com pompa e honra. Na teologia dos autores bíblicos, outras palavras e expressões utilizadas com basicamente o mesmo sentido são “aparecimento”, “manifestação”, “o dia do Senhor”, “o dia de Deus”, “o dia da ira”, “o último dia”, “o dia”, “aquele dia”, “o dia do julgamento”, “o fim desta era” e “o fim”.
O contexto de 1844
O ano de 1844, com sua efervescência profética, não surgiu no vácuo. Em meados do século 19, o Ocidente passava por grandes transformações na sua maneira de pensar, dando origem a ideologias radicais que impactaram a humanidade ao colocar, entre outras coisas, o povo (marxismo), o inconsciente (freudismo), a natureza (darwinismo) e os espíritos (espiritualismo) no lugar de Deus. Como o historiador Tony Judt observou, “os blocos da construção do mundo político do século 20” “eram todos artefatos do século 19”. No ambiente religioso, as ondas dos grandes despertamentos anglo-americanos favoreciam o clima apocalíptico e os sonhos milenaristas.
Na mesma época, a guerra da adoração ganhava um novo capítulo. Em meados de outubro de 1844, o escocês Robert Chambers publicou anonimamente um livro intitulado Vestiges of the Natural History of Creation, em que apresentava uma moldura naturalística para as origens. Sucesso imediato, o livro foi lido até mesmo por Abraham Lincoln e a rainha Victoria. Charles Darwin, que em julho daquele ano havia incluído em seu testamento a provisão para a publicação de sua famosa obra sobre as origens, ficou deprimido ao ler Vestiges, pois corria o risco de perder o reconhecimento pela sua originalidade.
As ideias desses livros se infiltraram na ciência e moldaram o pensamento religioso posterior, acrescentando dramaticidade ao cenário da pregação dos três anjos de Apocalipse 14, a qual inclui o chamado à adoração ao Criador como um elemento fundamental no fim dos tempos.
Marcos de Benedicto é editor da Revista Adventista
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Taffarel Toso.