O ano que não terminou

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Para os adventistas, a conferência bíblica de 1919 continua servindo de alerta sobre os riscos da polarização
MARCOS DE BENEDICTO
Imagem: Adobe Stock

Em 28 de junho de 1919, na Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes, durante uma conferência, as potências europeias assinaram um tratado de paz em Paris que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. Alguns dias depois, em uma conferência bíblica na área metropolitana de Washington (DC), a Igreja Adventista iniciou um debate que explodiu uma “guerra mundial”. Estou usando um exagerado jogo de palavras, mas aquele encontro de fato criou uma polarização. Cem anos depois, o evento ainda tem eco e relevância.

A conferência, que durou de 1º de julho a 1º de agosto (em duas fases) e incluiu 65 administradores, editores e professores de Teologia (sendo três mulheres), era um reflexo da guerra ideológica testemunhada no mundo evangélico entre liberais (modernistas) e conservadores (fundamentalistas). Antes do incendiário evento, alguns já vinham pedindo uma reunião para alinhar o pensamento da igreja sobre certos temas. Por exemplo, em 29 de janeiro de 1917, numa carta a Arthur G. Daniels, W. C. White expressou sua preocupação com o excesso de temas bélicos nos periódicos da igreja. Para ele, os pensadores adventistas se enquadravam em duas categorias: (1) ortodoxos, mas entediantes e não progressistas, e (2) progressistas e interessantes, mas não ortodoxos. Será que a igreja poderia produzir uma visão mais ampla do que os comentários sobre os acontecimentos da época?

Um grupo inicial selecionou quase 70 tópicos que poderiam ser discutidos. Entretanto, além dos temas escatológicos, um dos assuntos que pautaram a discussão foi a natureza da inspiração dos escritos de Ellen White. Presidente mundial da igreja por mais tempo (22 anos), Daniels frisou que não gostaria de dizer sequer uma palavra que pudesse diminuir a confiança no dom profético, mas deixou claro que rejeitava a ideia de que Ellen White fosse a única intérprete das Escrituras. No lado oposto do espectro, outros cortejavam o conceito de inspiração verbal, defendendo que Deus teria ditado as mensagens para Ellen White, crença que a própria profetisa rejeitava
(O Grande Conflito, p. 7-9).

Para se ter uma ideia do espírito que se seguiu, basta citar um episódio. J. S. Washburn, que em 1912 havia escrito uma carta a Daniels dizendo que o considerava um de seus melhores amigos, voltou a escrever em 1922: “Por anos, minha confiança em você vem morrendo lentamente e agora está morta.” Somente poderia ser restaurada “por um milagre direto de Deus”. Motivo? Segundo ele, Daniels estava minando a confiança no Espírito de Profecia.

Convertido por John N. Andrews aos 11 anos, batizado por Tiago White aos 12, sobrinho de George Butler, uma entrevista com Ellen White no currículo, boa parte da Bíblia gravada na memória, Washburn ­considerava-se o suprassumo do adventismo histórico. Para ele, com seu viés inerrantista da inspiração, a conferência foi uma coisa terrível. Contudo, estava errado.

No fundo, a polarização no adventismo não começou em 1919 nem terminou nesse ano, mas essa data ficou na história como o momento em que a igreja olhou para si mesma, como num jogo de espelhos, e percebeu que ela tem mais de uma face. Hoje uma coisa está clara: via de regra, nem os despreocupados “pecadores” liberais nem os furiosos “santos” fundamentalistas têm razão. O equilíbrio não está nos extremos.

MARCOS DE BENEDICTO é editor da Revista Adventista

(Editorial da edição de julho de 2019)

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Última atualização em 12 de julho de 2019 por Márcio Tonetti.