A multiplicação dos temas religiosos na mídia audiovisual seria um retorno ao encantamento da imagem?
A sociedade nunca esteve tão exposta a estímulos visuais como hoje. São filmes, vídeos, fotografias, pinturas, histórias em quadrinhos, postagens, videogames… Do cinema à TV (cuja primeira transmissão em cores completou 50 anos no Brasil em fevereiro), dos equipamentos de digitalização às impressoras em 3D, dos computadores aos notebooks, dos tablets aos celulares com seus múltiplos aplicativos, dispositivos cada vez mais sofisticados levam recursos audiovisuais a bilhões de espectadores. A própria igreja tem investido no evangelismo audiovisual, incluindo filmes, como revela a matéria de capa. Mas qual é o impacto dessa exposição visual?
Que os filmes encantam, não há dúvida. Escritores, roteiristas e cinegrafistas sabem fazer arte para criar ou recriar mitos e influenciar o espectador. Eles podem aumentar o espaço, fabricando uma dimensão épica, ou torná-lo intimista, aproximando os personagens do nosso coração. Iluminação, cenário, música, diálogo, narrativa, tudo cria um efeito “hipnótico”. Um filme pode fazer você rir ou chorar, sentir empatia ou antipatia, indignar-se ou comprazer-se, ganhar coragem ou ficar aterrorizado. Ele cria uma ressonância na cabeça. Assistir a filmes torna-se um ritual.
Filme transmite valor. A maioria é propaganda de ideias, coisas ou comportamentos. Usando os sentidos, vendendo sonhos, sincronizando o cérebro da audiência, o filme ativa a memória e afeta a maneira de pensar. Porém, em certo sentido, tem uma mensagem aberta à interpretação de cada um. Dos 24 quadros por segundo, o cérebro consegue assimilar três ou quatro. Por isso, a pessoa usa a imaginação para preencher os espaços e dar seu toque pessoal à narrativa. O filme reinventa a religião, sempre marcada por símbolos, rituais e gestos. Na era da imagem, a religião se mistura com outras experiências, sem distinção, sem hierarquia, sem referenciais.
Tudo isso é importante e merece atenção. Mas desejo destacar um aspecto fundamental: nossa sociedade está se tornando muito visual e pouco verbal, o que pode sinalizar a perda da capacidade reflexiva e uma visão idolátrica da imagem. No passado, até em virtude da cultura oral, a sociedade era mais voltada para a palavra. Como diria Jacques Ellul, hoje a palavra é “humilhada” pela imagem, o que conspira contra a liberdade (A Palavra Humilhada [Paulinas, 1984]). O deus deste século cegou as pessoas, que, ofuscadas pelas imagens terrenas, não veem a glória da Imagem divina (2Co 4:4). Para muitos, é mais fácil mencionar a franquia da série favorita do que o título do livro favorito.
No livro The Vanishing Word (Crossway, 2003), Arthur W. Hunt III discorreu sobre a veneração da imagem no mundo pós-moderno, o que seria um retorno a uma prática antiga. Na cultura grega, as descrições visuais eram muito valorizadas; porém, na cultura hebraica a verdade tinha destaque. Para Hunt, a cosmovisão pagã prefere se revelar pela imagem sem passar pela reflexão crítica. Já a revelação bíblica, a começar pelo dedo de Deus escrevendo nas tábuas de pedra, veio essencialmente pela palavra. Fomos feitos à imagem de Deus, e Cristo é a Imagem perfeita do Pai. Mas, acima de tudo, o Filho é o Verbo eterno e nossa fé vem pelo ouvir a Palavra. No princípio, era a Palavra.
Enfim, a igreja deve continuar inovando no uso de recursos audiovisuais, desde que eles não ensinem a amar o que não se deve amar. A intenção não é desqualificar o trabalho louvável que vem sendo feito. Entretanto, além de cuidar do conteúdo, precisamos avaliar se não estamos idolatrando a imagem e esvaziando o cérebro da Palavra. A igreja não pode substituir a cultura da Palavra pela cultura da imagem.
MARCOS DE BENEDICTO é editor da Revista Adventista
(Editorial da edição de abril de 2022)
Última atualização em 8 de abril de 2022 por Márcio Tonetti.