Seria a pandemia do novo coronavírus uma manifestação dos flagelos descritos no último livro da Bíblia?
MARCOS DE BENEDICTO
A pandemia do coronavírus causou uma ruptura na rotina do planeta e provocou cenários, comportamentos e temores de proporções apocalípticas. Fotógrafos registraram cenas dignas de filmes de “distopia”, palavra da moda que indica um lugar imaginário de condições extremas, um estado oposto à felicidade fictícia da utopia. De repente, igrejas fecharam as portas e a clausura foi imposta a “monges” que não são monges. Arenas esportivas, símbolos de vitalidade e alegria, transformaram-se em hospitais, ambientes de imobilidade e fragilidade. Jovens que queriam fugir do mundo real para se refugiar no universo virtual desejaram voltar para a realidade. O surreal se tornou normal e o normal se tornou surreal.
Nesse contexto de descompasso, se a ciência tentou resolver o problema no nível micro, investigando a origem e a estrutura do vírus, a religião buscou oferecer respostas na esfera macro, interpretando o significado da pandemia e direcionando o comportamento das pessoas. Na intersecção entre esses dois mundos, com o presente distorcido pela opacidade do futuro, vimos muitas coisas intrigantes, que revelaram atitudes, fragilidades e inquietações de gestores públicos, intelectuais e personalidades religiosas.
Para começar, vários meios de comunicação resgataram livros e filmes que teriam previsto a pandemia. No dia 23 de março, por exemplo, John Blake publicou uma matéria no portal da rede de TV CNN intitulada “O coronavírus está trazendo uma praga de perigosas predições sobre o dia do juízo”. Em 7 de abril, no artigo “Um Apocalipse suave”, o jornal El País fez um apanhado de “escritores e artistas que adivinharam a pandemia”. O filme Contágio (2011) também voltou com vigor e mereceu análises. No caso desse thriller, como em outros, não há mistério, pois o roteiro contou com a consultoria de cientistas, e o objetivo foi criar um surto plausível. Foi a ciência que ajudou a criar as semelhanças entre o vírus fictício MEV-1 do filme e o vírus Sars-Cov-2 real da Covid-19, que surgiria quase dez anos depois. Mesmo assim, muitas pessoas especularam sobre as coincidências.
Por outro lado, no dia 15 de março, o papa fez uma pequena peregrinação pelas ruas desertas de Roma até a Igreja de São Marcelo no Corso para rezar diante de um crucifixo do século 15 que supostamente teria protegido Roma de uma grande praga em 1522. Será que o milagre poderia se repetir? Dias depois, em 27 de março, ele dramaticamente rezou sozinho na Praça de São Pedro e ofereceu perdão a 1,3 bilhão de católicos, enquanto a Itália contava um número recorde de mortos (quase mil) no mesmo dia.
Entre os cristãos evangélicos ao redor do globo a pandemia suscitou uma onda de conjecturas escatológicas. Uma questão levantada nos meios de comunicação é a relação do vírus com as pragas do Apocalipse (por sinal, o livro bíblico mais evocado e mal interpretado na cultura popular). Afinal, seria o novo vírus um dos sete últimos flagelos agendados para assolar a Terra?
Considerando que essa é uma pergunta legítima, vale a pena analisar o assunto. Didaticamente, veremos o que são as pragas do Apocalipse, quem as causará, quando elas cairão e quem será atingido. Se os filmes e livros comuns não podem prever o futuro, o último livro da Bíblia pode – e envia seus avisos. Em momentos de dissonância cognitiva, em que as explicações normais não fazem sentido, é preciso apresentar uma nova explicação.
O FENÔMENO
O derramamento das sete últimas pragas será um momento crítico, solene e tenso, um evento sobrenatural literalmente de proporções apocalípticas. João descreve: “Vi no céu outro sinal grande e admirável: sete anjos tendo os sete últimos flagelos” (Ap 15:1). Obviamente, o coronavírus não é uma dessas pragas, mas apenas uma gota ou miniatura do que vem pela frente. Quando esse “sinal” ocorrer, o que sugere algo com visibilidade cósmica, as dimensões dos flagelos serão inéditas. “O fato de haver sete anjos com sete pragas indica a certeza e completude da ira divina contra toda injustiça”, comenta Robert H. Mounce (The Book of Revelation [Eerdmans, 1977], p. 285). Até esse momento, outros juízos menores continuarão assolando o planeta.
Para descrever os flagelos finais, João usa o paralelo das pragas do Egito (Êx 7–12), mas não segue estritamente a narrativa do Êxodo, a começar pelo número de pragas (dez no Egito e sete no fim dos tempos). “Ambos os relatos testificam da autoridade e do poder superior de Deus”, ressalta o Comentário Bíblico Adventista (CPB, 2015, v. 7, p. 930). “Ambos resultam na derrota de pessoas que escolheram desafiar a Deus; portanto, resulta também no livramento do povo escolhido de uma situação que, de outra forma, seria irremediável. Ambos demonstram a justiça de Deus e glorificam Seu nome.”
Assim como as pragas sobre o Egito foram literais, os flagelos finais também serão literais, embora alguns aspectos da descrição sejam simbólicos (por exemplo, o secamento das águas do rio Eufrates). Por sinal, alguns autores defendem que o que se relaciona com as pragas do Egito ocorre no Apocalipse de forma literal, enquanto o que diz respeito a Babilônia tem uma aplicação simbólica.
Assim como as pragas sobre o Egito foram literais, os flagelos finais também serão literais, embora alguns aspectos da descrição sejam simbólicos
O fato é que os elementos da natureza (e da vida) reconhecidos na antiguidade (terra, água, fogo, ar) serão atingidos e se voltarão contra os conspiradores humanos, que não cumpriram seu papel de guardiões do planeta nem seu dever de adorar a Deus. O que é erroneamente adorado como deus se transforma em praga. A última “taça” será derramada sobre o “ar”, que representa o elemento mais difundido e básico da vida (veja o quadro).
O AGENTE
Na linguagem do Apocalipse (7:1-3), os anjos estão segurando “os quatro ventos da Terra”, impedindo que danifiquem a terra, o mar e as florestas, até o selamento dos servos de Deus. Sem restrição, as agências do mal transformariam o mundo num verdadeiro caos. Portanto, Deus controla os eventos e intervém no mundo. Na verdade, Ele é o Senhor do tempo, da história e da eternidade.
Além disso, considerando que os anjos saem do santuário (Ap 15:5, 6), o julgamento final ocorre sob a autorização de Deus, que, em última instância, é o responsável pelo Universo. “O Senhor Deus de Israel executará juízos sobre os deuses deste mundo como aconteceu com os deuses do Egito. Com fogo e inundações, pragas e terremotos, Ele deteriorá o mundo”, adverte Ellen White (Eventos Finais, p. 240). “O Senhor, em juízo, andará no fim dos tempos pela Terra” (p. 234).
Porém, embora as pragas sejam uma manifestação da ira divina, Deus não é o agente direto da dor e das mortes causadas por esses flagelos. De acordo com Ellen White, os juízos finais não virão “diretamente da parte do Senhor”, mas recaem sobre os que “se colocam além de Sua proteção” (Eventos Finais, p. 242). A Terra será o campo de batalha entre o bem e o mal. E quem não estiver no refúgio de Deus será atingido.
O TEMPO
Quando ocorrerão as pragas: antes ou depois do chamado “fechamento da porta da graça”? Apocalipse 15:8 apresenta a resposta, ainda que indireta: “O santuário se encheu de fumaça procedente da glória de Deus e do Seu poder, e ninguém podia penetrar no santuário, enquanto não se cumprissem os sete flagelos dos sete anjos.”
O fato de o santuário estar cheio de fumaça sugere a plenitude da presença divina, e a informação de que ninguém podia entrar ali, nem mesmo os anjos, indica o fim da intercessão de Cristo e a impossibilidade de salvação. A última parte do verso mostra que essa situação continuará até o fim das pragas e, portanto, o futuro de cada pessoa já estará definido. As pragas apenas revelam quem é quem, mas não mudam o destino da pessoa.
Teoricamente, as pragas iniciais do Apocalipse poderiam ser redentivas, caso alguém queira enfatizar um paralelo mais próximo com as pragas do Egito, em que o faraó endureceu o coração, mas tinha chance de mudar de ideia. Afinal, a narrativa dessa guerra entre Deus e os deuses do Egito (Êx 12:12) indica que, se o monarca mudasse sua obstinação, Deus mudaria o roteiro da punição (4:8, 9; 8:8-12, 28-31; 9:27-29; 10:16-19). Além disso, a linguagem da quarta e da quinta praga do Apocalipse (16:8-11) sugere que era de se esperar que as pessoas se arrependessem, mas elas continuam blasfemando o nome de Deus.
Em cada ciclo do Apocalipse, as pessoas determinam seu destino pelas escolhas que fazem, até que seja tarde demais
No entanto, a informação de que as pragas caem sobre as pessoas que têm a marca da besta (Ap 16:2), após o selamento dos justos (7:1-3) e a advertência ao mundo (14:9-11), mostra que o destino delas estará selado. “Além disso, o fato de as sete últimas pragas constituírem a medida cheia da ira divina, sem mistura de misericórdia (Ap 14:10; 15:1; 16:1), indica que a oportunidade da graça já se encerrou para aqueles sobre quem as pragas caem”, registra o Comentário Bíblico Adventista (v. 7, p. 929).
Ellen White também tem uma série de afirmações ressaltando que as pragas serão derramadas após o fim da intercessão de Cristo e da oportunidade de salvação (por exemplo, Primeiros Escritos, p. 36; História da Redenção, p. 403; O Grande Conflito, p. 627), o que solidifica essa perspectiva. Nessa fase, Jesus não mais estará intercedendo, porém isso não significa que Ele não esteja com Seu povo. O Espírito Santo não estará atuando no mundo, mas estará ainda mais perto do povo de Deus.
A EXTENSÃO
As quatro primeiras pragas são limitadas em termos de espaço, mas não na intensidade. “Estas pragas não são universais, ao contrário os habitantes da Terra seriam inteiramente exterminados. Contudo serão os mais terríveis flagelos que já foram conhecidos por mortais”, comenta Ellen White (O Grande Conflito, p. 628-629).
A quinta praga (Ap 16:10, 11) atinge o trono da besta, o centro do poder do mal, e assim avaria toda a sua esfera de influência. “Ao alvejar seu trono, Deus danifica a capacidade da besta de governar sobre seu reino”, observa Rudolph Scharneck em sua tese de doutorado (“New Perspectives on the Bowl Plagues in Revelation 16”), defendida na Universidade de Pretória, na África do Sul, em 2019 (p. 232).
A sexta praga, que desencadeia a batalha final entre o bem e o mal, leva ao julgamento final de Deus sobre o mundo. A sétima praga (sobre o ar) é marcada por uma potente voz anunciando: “Feito está!” (Ap 16:17). Isso sinaliza o fim e o aparecimento iminente de Cristo.
“Nenhuma extensão de tempo foi especificada para o derramamento das pragas, mas resta a impressão de que esses eventos ocorrem em um breve período de tempo”, pondera Edwin E. Reynolds no verbete sobre as pragas na Enciclopédia Ellen White (CPB, 2018, p. 1175). Mesmo sendo um curto período, o planeta ficará arrasado. Considerando que Satanás é o causador de todo o mal, seu sistema não ficará livre dos flagelos, embora a destruição dele mesmo ocorrerá somente depois do milênio (Ap 20).
O PROPÓSITO
Seria o objetivo das pragas redentivo ou apenas punitivo? Antes das pragas, todos terão a oportunidade de se posicionar ao lado de Deus ou do inimigo. Haverá uma polarização, tendo a lei, o sábado e a adoração como epicentro do interesse público. Portanto, o propósito das pragas não é converter a humanidade, mas servir de julgamento por sua rebelião.
“Depois destas coisas, olhei, e abriu-se no céu o santuário do tabernáculo do Testemunho”, afirma o profeta (Ap 15:5). A expressão “olhei, e abriu-se” indica uma nova cena, enquanto a descrição incomum “santuário do tabernáculo do Testemunho” aponta para a lei e o lugar do julgamento. O fato de o santuário se abrir no Céu revela um evento com repercussão cósmica.
A temática dos capítulos 15 e 16 de Apocalipse está conectada ao capítulo 11, onde se encontra a narrativa das duas testemunhas perseguidas (o Antigo e o Novo Testamentos, juntamente com seus defensores). Note as semelhanças: “Abriu-se, então, o santuário de Deus, que se acha no Céu, e foi vista a arca da Aliança no Seu santuário” (11:19a); “Depois destas coisas, olhei, e abriu-se no Céu o santuário do tabernáculo do Testemunho” (15:5). Portanto, o julgamento tem que ver com desobediência à lei e perseguição ao povo de Deus.
O capítulo 11 informa que chegou o tempo de julgar/destruir “os que destroem a Terra” (11:18). Em geral, esse verso tem sido usado para despertar a consciência ecológica e incentivar o cuidado com o planeta, o que indiretamente pode ser feito. Porém, no fundo, João não está denunciando a destruição do ecossistema em escala global, mas destacando a destruição ou corrupção moral da Terra pelos poderes do mal.
Há um jogo de palavras ou conceitos entre “destruir” em 11:18 e “corromper” em 19:2, verbos com a mesma raiz no original grego. Quem corrompe a Terra com imoralidade é a “Babilônia” espiritual. Por isso, Richard Bauckham diz que “os destruidores da Terra são os poderes do mal: o dragão, a besta e a prostituta de Babilônia” (The Theology of the Book of Revelation [Cambridge University Press, 1993], p. 52). João está ecoando Jeremias 51:25, texto em que o profeta denuncia Babilônia como uma montanha poderosa que destrói toda a Terra.
As últimas pragas serão o fim da civilização como a conhecemos, mas abrirão caminho para uma nova realidade. Se vamos fazer parte do novo planeta dos sonhos, sem vírus nem lágrimas, depende de nós mesmos
No relato das pragas, o texto mais explícito sobre o julgamento com base no chamado princípio da retribuição é Apocalipse 16:6: “porquanto derramaram sangue de santos e de profetas, também sangue lhes tens dado a beber”. De acordo com alguns teólogos, temos aqui uma aplicação da famosa lei de talião (lex talionis) ou direito de talião (ius talionis), que prescreve uma pena igual ao crime, mantendo o equilíbrio da justiça (ver Êx 21:23-25; Lv 24:18-20; Dt 19:21). Nesse julgamento escatológico, conforme destaca Richard Bauckham, “a descrição da punição corresponde verbalmente à descrição do pecado” (p. 52).
Entretanto, há outros propósitos do derramamento das pragas, cuja sequência recapitula o ciclo das trombetas, embora com mais severidade. Em seu recente comentário sobre o Apocalipse, o teólogo adventista Sigve Tonstad prefere ressaltar o aspecto cósmico e ver as pragas como “revelação”, mostrando o tipo de pessoa que é Deus (Revelation [Baker Academic, 2019], p. 219).
Para finalizar, é importante enfatizar que Deus é um Pai amoroso que procura atrair a humanidade de volta para Si. Ele não tem prazer na morte de ninguém. Por isso, o julgamento de Deus no Apocalipse é progressivo, indo desde a advertência inicial até a aniquilação total. Primeiro, vemos o convite às igrejas (Ap 2, 3), depois o abrir dos selos (5, 6; 8:1), em seguida os avisos das trombetas (8:2–9:21; 11:15-19), depois a ameaça das pragas (15, 16) e, por fim, a destruição total e a eliminação do mal do mundo (20, 21).
O ciclo das sete pragas é paralelo com o ciclo das sete trombetas, que, por sua vez, é parecido com o ciclo dos sete selos. Tudo isso é entremeado com descrições e chamados para um posicionamento ao lado de Deus. Apocalipse 18:4 revela que Ele gostaria de salvar até o povo de “Babilônia”, se possível. Em cada passo, as pessoas determinam seu destino pelas escolhas que fazem, até que seja tarde demais.
As últimas pragas serão o fim da civilização como a conhecemos, mas abrirão caminho para uma nova realidade. Se vamos fazer parte do novo planeta dos sonhos, sem vírus nem lágrimas (Ap 21:1-4), depende de nós mesmos.
MARCOS DE BENEDICTO, pastor, jornalista e doutor em Ministério, é o editor da Revista Adventista
(Matéria de capa da edição de maio de 2020 da Revista Adventista)
Última atualização em 11 de maio de 2020 por Márcio Tonetti.