Bênçãos disfarçadas de tormentas

5 minutos de leitura
Como podemos aprender a ver além dos problemas

Imagem para artigo do AdeniltonNo último domingo, 27 de março, o mundo celebrou a Páscoa, considerada a mais antiga e importante festa judaico-cristã. Como é de costume, o comércio explorou a data para aquecer as vendas de chocolate e outros artigos que se tornaram representativos desse período. Assim como acontece no feriado do Natal, em que o personagem central fica relegado a um segundo plano, ofuscado pela presença do “bom velhinho” – que anda pelas ruas distribuindo presentes, sorrisos e acenos de mão – no feriado da Páscoa, seu verdadeiro significado se perde na memória, em função da ênfase colocada sobre o coelhinho e os ovos coloridos, que enfeitam as lojas e atraem os olhares de crianças, jovens e adultos. Vista por este viés, é difícil atentar para o fato de que a Páscoa está enraizada em profundo sofrimento.

Na Bíblia, a festa da Páscoa é celebrada em memória da maneira grandiosa com que Deus livrou Seu povo do cativeiro egípcio. Antes de Deus derramar a última praga sobre aquela poderosa nação – a morte de todos os primogênitos (Êx 11:5; 12:29) –, cada família hebreia foi orientada a sacrificar um cordeiro (Êx 12:21), cujo sangue devia ser colocado na viga superior e nas laterais da porta (Êx 12:5, 22 NVI). Em contrapartida, a carne do animal devia ser assada ao fogo e servida como uma refeição noturna, acompanhada de ervas amargas e pão sem fermento (Êx 12:8). As ervas amargas eram um símbolo da escravidão e sofrimento do povo de Deus no Egito. Por sua vez, o pão sem fermento, o animal e seu sangue tipificavam o Cordeiro de Deus, o Salvador do mundo.

Naquela mesma noite, a praga atingiu todos os primogênitos, com exceção daqueles que estavam abrigados nas casas cujo “sinal de sangue” foi colocado nas portas. A mancha de sangue era um indício da confiança na Palavra de Deus, em Seu cuidado e proteção. De fato, este é o significado da palavra hebraica p?sa?, que foi traduzida como páscoa, mas pode significar proteção, preservação. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo se refere a Cristo como o cordeiro pascal. Ele diz: “Lançai fora o velho fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado” (1Co 5:7).

Em relação à experiência de Cristo como nosso Cordeiro pascal, chamam minha atenção algumas afirmações encontradas na carta aos Hebreus: “Vemos, todavia, aquele que, por um pouco, tendo sido feito menor que os anjos, Jesus, por causa do sofrimento da morte, foi coroado de glória e de honra, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todo homem” (Hb 2:9, itálicos acrescentados). Um pouco adiante, lemos: “Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles” (Hb 2:10; itálicos acrescentados). E logo chego à conclusão de que Jesus sentiu na pele a dor e o sofrimento que são nossos. Sem cometer um pecado sequer, Ele carregou sobre os ombros o peso de todos os pecados da humanidade, a fim de nos libertar de uma escravidão maior que a escravidão do Egito. E por quê? A carta aos Hebreus responde: “Em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia” (Hb 12:2).

Quando me ponho a refletir sobre o sofrimento de Jesus, fico pensando nessa alegria que lhe estava proposta: ver a multidão de remidos na glória celestial. Conforme a profecia de Isaías 53:11, “Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito”.

O sofrimento de Jesus é uma pista de como devemos encarar as tormentas que nós mesmos enfrentamos no nosso dia a dia. De fato, as dores que sentimos neste mundo exercem sobre nós o estranho poder de nos atrair para Deus. Ellen White explica: “As mesmas provações que da maneira mais severa provam nossa fé, e fazem parecer que Deus nos abandonou, devem levar-nos para mais perto de Cristo, para que possamos depor todos os nossos fardos a Seus pés, e experimentar a paz que Ele, em troca, nos dará” (Patriarcas e Profetas, p. 129). Nesse sentido, as provas que enfrentamos são bênçãos disfarçadas sob as mais variadas formas de sofrimento. Como diz a letra de uma bela canção cristã: “Se eu nunca tivesse um problema, como eu saberia que Deus pode resolvê-lo? Como eu saberia o que a fé em Deus pode fazer?”

Qual seria o exemplo de José se não fossem os terríveis percalços pelos quais ele passou? Seus sofrimentos moldaram seu caráter para sempre. De um menino mimado, ele se tornou o governador do Egito, generoso e senhor de si. Porém, enquanto caminhava como prisioneiro levado por uma caravana de ismaelitas, por um instante ele “entregou-se a uma dor e pesar incontidos. Mas, na providência de Deus, mesmo essa experiência seria uma bênção para ele. Aprendeu em poucas horas o que de outra maneira anos não lhe poderiam ter ensinado” (Idem, p. 213). E o que dizer da experiência de Abraão, Moisés, e tantos outros personagens cujas histórias estão registradas em diversas partes da Bíblia para nosso benefício?

Nosso dilema é que, como mencionou o filósofo Kierkegaard, os cristãos são como alguns alunos de matemática: querem ver a solução do problema disponível no fim do livro em vez de exercitar e aprender com ele. Precisamos crer que Deus sabe dirigir nossa vida, e Ele tomará as mesmas decisões que nós tomaríamos se, como Ele, conhecêssemos o futuro desde o início. Como disse Oswald Chambers: “A fé nunca sabe aonde está sendo levada, mas conhece e ama Aquele que a está levando”.

É claro que, às vezes, esse processo exige um longo período de espera. E a pergunta que não quer calar é: “Quanto tempo precisamente temos que esperar entre a promessa de Deus e seu cumprimento?” Tenho um palpite com base na experiência de alguns heróis da fé do passado. Sobre Abraão, encontramos o seguinte registro: “O nascimento de Isaque, trazendo a realização de suas mais caras esperanças, após uma espera da duração de uma vida, encheu de alegria as tendas de Abraão e Sara” (Idem, p. 146). Por sua vez, Jacó esperou uma vida por algo que ele nem estava mais esperando: ver outra vez a face de José! Enquanto esperamos – e esta não é uma espera ociosa, mas ativa – Deus Se responsabiliza pelos resultados. Como disse Paulo, “estou plenamente certo de que Aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Fp 1:6). Allan Redpath observou: “a conversão da alma é um milagre que ocorre num instante, mas a formação de um homem santo é tarefa de uma vida inteira”.

Em nossa jornada espiritual, não nascemos como cristãos prontos, apenas iniciamos um longo – e, em geral, doloroso – processo, cujo ponto de partida nos parece claro e definido, enquanto o de chegada só nos ocorre por vislumbre. Alegra-me, porém, o fato de que se nós esperamos, Jesus também espera. Ele espera que confiemos nEle mesmo quando as circunstâncias nos tentam a seguir um caminho inverso. Espera que estejamos completamente engajados na pregação do evangelho; e, principalmente, espera o momento em que Ele virá para nos tirar deste mundo. Quando esse dia chegar, Ele explicará todas as coisas que nos causaram inquietação, e então teremos condições de ver claramente todas as bênçãos que Ele nos concedeu – já não mais sob disfarces! [Créditos da imagem: Renan Martin e Fotolia]

NILTON AGUIAR, mestre em Ciências da Religião, é professor de grego e Novo Testamento na Faculdade Adventista da Bahia e está cursando o doutorado em Novo Testamento na Universidade Andrews (EUA)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.