O sábado como resistência

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Soldado que lutou sem armas e se manteve fiel à guarda do sábado durante a II Guerra Mundial continua sendo um exemplo para os cristãos de hoje 
Adventista que fez história durante a II Guerra Mundial é retratado em produção cinematográfica lançado internacionalmente nesta semana.
Adventista que fez história durante a II Guerra Mundial é retratado em produção cinematográfica lançada internacionalmente no início de novembro.

Sábado como Resistência é o título de um dos livros que li nos últimos anos. Debrucei-me atentamente sobre essa obra como parte de meus estudos devocionais, mas também a fim de reunir informações para o preparo de um dos meus livros (Perguntas Intrigantes, Respostas Fascinantes: Uma Viagem Através dos Grandes Temas da Bíblia). A obra foi escrita por Walter Brueggmann, renomado professor de Antigo Testamento.

Nesses últimos dias, revisitei essa obra Brueggmann, após ler uma matéria no site churchleaders.com sobre o impacto que histórias como a de Desmond T. Doss, narrada no novo filme de Mel Gibson, intitulado Hacksaw Ridge, provocam no público evangélico. Doss foi um fiel jovem adventista que, mesmo diante dos horrores da II Guerra Mundial, escolheu manter-se fiel a Deus.

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Para usar as palavras de Brian Orme, autor do artigo, “Desmond T. Doss assumiu o compromisso de não trabalhar no sábado em função de sua fé adventista. Ele também decidiu que não usaria armas”. Brian Orme destaca a coragem de Doss em obedecer não apenas ao mandamento do sábado, mas também ao sexto mandamento, que diz: “Não matarás”. Isso me fez lembrar o comentário de Brueggmann: “O quarto mandamento é o mais difícil e mais urgente em nossa sociedade, porque ele nos convoca à intenção e conduta que desafia os requerimentos mais elementares de uma sociedade impelida à comodidade, que se especializa no controle e entretenimento, pão e circo… […] ao lado da ansiedade e violência.

Colocando a bravura do atleta cristão Eric Liddell nos Jogos Olímpicos de 1924 (contada no filme Carruagens de Fogo) ao lado da coragem de Desmond Doss, Orme comenta que “eles decidiram guardar suas crenças e práticas religiosas acima de tudo e de todos num mundo que tentava forçá-los ou coagi-los a fazer diferente”. Isso demonstra o grau de liberdade de consciência de que esses dois homens desfrutavam.

Brueggmann também observou que “o sistema da comodidade requer que queiramos mais, tenhamos mais, possuamos mais, usemos mais, comamos e bebamos mais”, e isso geralmente com perda da família, da saúde e mesmo da fé. Somente poucos têm coragem de desafiar essa instaurada ordem de coisas. Assim, ele enfatiza que o descanso do sábado se apresenta como um “ato de resistência e alternativa. De resistência porque é uma insistência visível de que nossa vida não é definida pela produção e consumo dos bens de comodidade”. Mas o sábado é também uma “alternativa às exigências da realidade econômica”.

Por sua vez, Loron Wade, em seu livro Os Dez Mandamentos: Princípios Divinos Para Melhorar seus Relacionamentos, destaca que, “ao apartar-nos do ritmo incessante de nossas atividades habituais e da pressão da vida durante as horas sabáticas, lembramo-nos de que o mundo não gira em torno de nós”. Afinal, “o sol não se ergue pela manhã e as flores não desabrocham por ordem nossa. A criação pode continuar perfeitamente bem sem qualquer ajuda de nossa parte”. Na verdade, “o descanso físico no sábado reconhece e celebra a maravilhosa providência para nós no mundo físico, assim como tem acontecido com o povo de Deus desde o começo do mundo”.

A questão é que, na sociedade atual, marcada pelo tecnicismo, frequentemente as pessoas chegam ao fim de sua jornada diária de trabalho com a impressão de que o tempo não foi suficiente para cumprir todas as tarefas que, em tese, deveriam ter sido executadas. E então pensam em todas aquelas coisas que gostariam de ter feito caso tivessem mais tempo. A vida moderna impôs um ritmo tão frenético que o tempo se tornou um bem perseguido por todos. Aprendemos a contar os minutos, e mesmo os segundos, como nunca antes. O que dizer daqueles semáforos que marcam quanto tempo enquanto ficamos esperando parados ao sinal vermelho? Ou daquele download que vai durar 30 segundos? Olhamos para a tela do computador imaginando que aqueles 30, 20 ou 10 segundos mais se parecem com a eternidade. E esperamos ansiosamente o fim dessas coisas com o próximo compromisso em mente, o qual não pode esperar.

Comumente não percebemos que essa estrutura, criada pelo próprio homem, voltou-se contra ele com o ímpeto de um tsunami. Ainda assim, nos impressionamos com a atitude de pessoas que, com coragem, desafiam o estado atual das coisas e andam na contramão das imposições da sociedade capitalista em que vivemos.

Não posso deixar de concordar com Brian Orme ao dizer que “filmes como Carruagens de Fogo e Hacksaw Ridge mostram uma versão de cristianismo baseada na estrita aderência a mandamentos bem específicos”, como o da guarda do sábado e o apelo à não violência (“não matarás”). “Mandamentos que nós não seguimos com o mesmo vigor”, ele admite e levanta uma indagação surpreendente: “Por que filmes sobre cristãos resolutos do passado nos inspiram tanto? Especialmente quando sua versão de cristianismo é tão diferente do evangelicalismo que a maioria das pessoas pratica hoje?”

Digo surpreendente por duas razões. A primeira é que, uma vez que essas histórias são tão inspiradoras, o exemplo transmitido por elas não deveria ser seguido por todos os cristãos? A segunda tem a ver com a resposta paradoxal que ela provoca: “Lá no fundo, queremos ter convicções que se demonstrem corajosas. […] A convicção de Noé, Moisés e Rute. […] A igreja não é portadora da distinção que tinha no passado. A maneira como praticamos nossa fé se misturou com o mundo de maneira sutil, e a diferença é imperceptível às vezes. Nós queremos uma fé que se destaque por sua coragem. Uma fé que, outra vez, desafie as probabilidades. Uma fé que esteja viva.”

A resposta é paradoxal não pela força das palavras que você acabou de ler. Concordo inteiramente com elas. O problema está no seguinte desfecho, entremeados por meus comentários entre colchetes e em itálico: “Isso não significa que devemos todos nos tornar pacifistas ou começar a guardar o sábado do Antigo Testamento [eu diria: que pena! E acrescentaria: o sábado não é apenas do Antigo Testamento, mas do Novo Testamento também]; esta não é a questão [então, qual é?], mas isso significa que deve haver uma linha clara de divisão entre os valores, práticas e ações dos evangélicos e os do mundo [mas como isso é possível sem obediência aos mandamentos de Deus?].”

Orme prossegue com uma vigorosa afirmação: “Poucos evangélicos ‘guardam’ o sábado. Menos ainda são pacifistas. De fato, uma fé que abrace esses dois mandamentos provavelmente seria vista como legalista por muitos na igreja atual.” Devo dizer que, como pastor e professor de Teologia, tenho admiração pela produção literária de escritores como Brueggmann e Brian Orme, mas não posso deixar de notar a reinterpretação que eles fazem do sábado bíblico. No caso de Orme, isso fica claro a partir do exemplo que ele dá para essa afirmação que acabei de citar. Ele diz: “Por exemplo, se um corredor olímpico decidisse ignorar um evento no domingo em função de sua fé, nós ficaríamos confusos. Estamos no tempo da graça, certo? ‘O sábado foi feito por causa do homem, e não o inverso’, diríamos.” No caso de Brueggmann, fica claro logo no prefácio de seu livro que o sábado a que ele se refere é, na verdade, o domingo. Brueggmann e Orme seguem uma tendência contemporânea de transferir para o domingo as especificações bíblicas sobre o sábado, o sétimo dia da semana.

Em seu livro Apocalipse 13, Marvin Moore chamou a atenção para um movimento de ênfase nos Dez Mandamentos que vem crescendo nos Estados Unidos nas últimas décadas. Esse movimento criou a Comissão dos Dez Mandamentos, a qual escolheu o 7 de maio de 2006 como o dia dos Dez Mandamentos, coincidentemente ou não, um domingo. Desde então, o dia dos Dez Mandamentos é celebrado anualmente todo primeiro domingo de maio (para saber mais, clique aqui). De fato, não é coincidência!

Em contrapartida, a Bíblia aponta para a observância do sétimo dia da semana, o sábado (Êxodo 20:10), e não do primeiro, o domingo. Um rápido estudo a respeito do sábado na Bíblia nos leva às seguintes conclusões: a observância do sábado tem sua origem na criação, cerca de 2 mil anos antes de nascer o primeiro israelita (Gênesis 2:2, 3); o sábado é um dia santo, um tempo santo, porque Deus o abençoou e santificou, bem como descansou nesse dia (Gênesis 2:2, 3); o sábado nos protege da agitação feroz provocada pela sociedade do consumo, pois semanalmente o povo de Israel era instruído a se livrar da ansiedade, recebendo o maná em dobro na sexta-feira (Êxodo 16:23, 24), a fim de se dedicar à adoração ao Senhor no dia sagrado; o sábado existe para o benefício da humanidade (Marcos 2:27); o sábado é um alívio da carga estressante da semana (Isaías 58:13); e, embora devamos fazer o bem todos os dias, o sábado é um dia especial para abençoar as pessoas (Mateus 12:12), o que o torna repleto de significado e, por extensão, enche nossa vida de sentido.

Na sociedade atual, gastamos tempo para ganhar espaço, mas deveríamos gastar espaço para ganhar tempo, a fim de resistir às imposições econômicas

O sábado foi separado por Deus para o descanso físico (Êxodo 20:10) e mental (Êxodo 20:11), visto que sua observância nos lembra que a manutenção da vida depende de Deus, e não de nós; mas sobretudo é um dia de descanso espiritual (Isaías 58:13, 14). A sexta-feira é o dia de preparação para o sábado (Marcos 15:42, 43; Êxodo 16:22, 23), o qual deve ser observado de pôr do sol a pôr do sol (ou seja, desde o ocaso do sol na sexta até o ocaso do sol no sábado; ver Levítico 23:32). A explicação para isso é que, biblicamente falando, a noite é anterior ao dia (Gênesis 1:5, 8, 13, 19, 23, 31). Além disso, Jesus nos deixou o exemplo de como observar o sábado: Ele participava do serviço de adoração (Marcos 1:21; 3:1-4; Lucas 4:16-27; 13:10); desfrutava da comunhão com outras pessoas (Marcos 1:29-31; Lucas 14:1); praticava atos de misericórdia (João 5:9, 10).

No Novo Testamento, mesmo após a ressurreição de Jesus, os discípulos continuaram observando o sábado (Atos 13:14; 17:1, 2; 18:4, 11). Paulo, por exemplo, observou o sábado não apenas na sinagoga, mas em outros lugares (Atos 13:42-44; 16:13). Isso nos leva a crer que o Novo Testamento não alterou a observância do sábado para o domingo. Em nenhum lugar encontramos qualquer alusão a uma suposta mudança. A propósito, Jesus mesmo deixou claro que o sábado ainda estaria em vigor por ocasião da destruição de Jerusalém, muitos anos depois de sua morte e ressurreição. Ele disse: “Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado” (Mateus 24:20). Enfim, como afirma o teólogo Jon Paulien, “a única razão para preferir o sábado ao domingo é porque Deus o disse; não há outra razão. Nós aceitamos o sábado simplesmente com base na Palavra de Deus. Ele é, portanto, um bom teste de nossa confiança em Deus e em sua Palavra”.

“Por que ainda há tanta oposição à observância do sábado?”, alguém pode perguntar. Para refletir sobre essa questão, quero convidá-lo a ler atentamente o seguinte comentário de Abraham Heschel: “Há muitos que conquistaram um alto grau de liberdade política e social, mas apenas uns poucos não se tornaram escravos das coisas. Este é nosso constante problema – como viver com pessoas e permanecer livres, como viver com coisas e permanecer independentes”.

O sábado é um dia de liberdade, cujo conceito está entranhado na abertura e no coração do decálogo. “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Deus tirou o povo do Egito para que tivesse liberdade de adorar no sábado. Ele tirou o povo do espaço para que pudesse santificar o tempo. Como Abraham Heschel observou, “na civilização técnica, gastamos tempo para ganhar espaço”. Deveríamos fazer exatamente o inverso: gastar espaço para ganhar tempo!

Além de um dia de liberdade, o sábado é também um dia de alegria, de celebração da obra criadora de Deus e sua atuação no mundo; um dia em que, mesmo sem merecermos, somos convidados a entrar numa atmosfera santa, um santuário no tempo que Deus construiu para si. Por isso, o sábado é também um dia da graça de Deus. Mas, como vimos acima, o sábado é também um dia de resistência às imposições econômicas. Nele, pessoas de todas as partes do mundo deixam de lado seus labores. Elas falam diferentes línguas, cresceram em diferentes culturas, viveram diferentes experiências, mas todas têm o mesmo desejo: adorar o Criador, no dia que Ele reservou para si. “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus” (Êxodo 20:8-10). Obedecer a esse mandamento é dizer não à tirania e sim à liberdade.

NILTON AGUIAR, mestre em Ciências da Religião, é professor de grego e Novo Testamento na Faculdade Adventista da Bahia e está cursando o doutorado em Novo Testamento na Universidade Andrews (EUA)

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.