Saiba como os métodos de tradução determinam a linguagem e o vocabulário das diferentes versões do livro sagrado
As novas traduções da Bíblia e a tendência de eliminar vocabulário em desuso, substituindo-o por uma linguagem coloquial e, portanto, mais compreensível para os leitores em geral, foi tema de uma reportagem publicada recentemente no site da revista Época. Um dos exemplos citados foi o da Nova Versão Transformadora (NVT), que levou seis anos para ficar pronta e foi lançada no fim do ano passado pela editora Mundo Cristão.
Propostas dessa natureza são louváveis especialmente pelo fato de que a Bíblia foi escrita em idiomas bem diferentes da língua portuguesa. Além disso, as distâncias do tempo, dos costumes, do espaço geográfico e das expressões idiomáticas, entre outros elementos, podem tornar muito desafiador o processo de interpretação do texto bíblico. Porém, ao deparar-se com as traduções da Bíblia, o leitor pode ficar confuso com as diferenças que existem de uma versão para outra.
Para citar apenas um dos exemplos apresentados na matéria mencionada acima, chamo a atenção para as variações textuais de quatro versões da Bíblia sobre o conhecido texto de João 1:1. (1) Almeida Revista e Atualizada (ARA): “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”; (2) Bíblia Sagrada (Tradução da CNBB): “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus”; (3) Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “Antes de ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus”; (4) Nova Versão Transformadora (NVT): “No princípio, aquele que é a Palavra já existia. A Palavra estava com Deus. A Palavra era Deus”.
Explicando as diferenças
As diferenças de linguagem e vocabulário entre essas versões podem ser explicadas a partir dos métodos de tradução adotados. Basicamente, os tradutores da Bíblia adotam um dos seguintes métodos: (1) equivalência formal (ou tradução literal); (2) equivalência dinâmica (ou tradução dinâmica); (3) tradução parafraseada. Explicarei rapidamente cada um desses métodos.
Equivalência formal ou tradução literal. Dois bons exemplos desse método de tradução são a Almeida Revista e Atualizada (ARA) e a Almeida Corrigida Fiel (ACF). Ao adotar esse método, os tradutores estão preocupados em transmitir ao leitor as ideias expressas pelos idiomas originais da Bíblia, palavra por palavra. O foco dessa tradução é a língua de partida (hebraico, aramaico e grego) e não a língua de chegada (o português). Porém, é preciso estar ciente de que nenhuma tradução consegue ser cem por cento literal. Cada idioma tem expressões cujas ideias são difíceis de expressar em outra língua.
Em meu livro Retórica e Teologia nas Cartas de Paulo, publicado pela Editora Academia Cristã (2012), explorei diversas expressões paulinas desse tipo. Por exemplo, em 2 Coríntios 4:17, o texto da ARA traz a seguinte afirmação: “Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação”. A parte final desse verso (acima de toda comparação) é uma expressão idiomática que, se traduzida literalmente, ficaria assim: “de acordo com hipérbole para hipérbole” ou “de acordo com hipérbole na hipérbole”.
Logicamente, o leitor se perguntaria o que Paulo quis dizer com isso. A explicação é que Paulo queria dar a ideia de que nem todas as hipérboles do mundo podem expressar a glória que desfrutaremos na eternidade. Além disso, com essa expressão, ele coloca as tribulações desta vida em seu devido lugar, ou seja, elas são muito pequenas, se comparadas com o que teremos no porvir. Portanto, a tradução desse verso oferecida pela ARA não é literal. Porém, isso ocorre não porque o tradutor não pretendesse que ela o fosse, mas em função da dificuldade de representar em português a ideia expressa pelas palavras gregas usadas por Paulo.
Equivalência ou tradução dinâmica. Nesse método, procura-se transmitir o pensamento do texto original. Para isso, comumente, prefere-se não seguir a ordem das palavras e/ou a estrutura gramatical do texto original. O foco dessa tradução é a língua de chegada e não as línguas de partida. Dois bons exemplos desse tipo de tradução são a Nova Versão Internacional (NVI) e a recente Nova Versão Transformadora (NVT).
Essas versões evitam ou eliminam o linguajar arcaico e as construções gramaticais complexas com o objetivo de oferecer uma leitura clara para a maioria dos leitores. Por exemplo, enquanto o texto de Isaías 52:12 na ARA mantém os verbos e pronomes de segunda pessoa do plural (vos, vós, vossa), há muito tempo em desuso no Brasil, o mesmo texto na NVI substitui a segunda pela terceira pessoa, como se pode ver a seguir. Na ARA: “Porquanto não saireis apressadamente, nem vos ireis fugindo; porque o Senhor irá adiante de vós, e o Deus de Israel será a vossa retaguarda”; na NVI: “Mas vocês não partirão apressadamente, nem sairão em fuga; pois o Senhor irá à frente de vocês; o Deus de Israel será a sua retaguarda”. Observa-se que na NVI o texto bíblico fica mais próximo da maneira com que os leitores utilizam a língua hoje.
Tradução parafraseada. Bíblias com tradução parafraseada oferecem uma interpretação para muitas expressões de difícil compreensão para os leitores não familiarizados com os elementos culturais, linguísticos e históricos do texto bíblico. Um exemplo de tradução parafraseada é a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). É importante ressaltar que, se por um lado versões parafraseadas trazem alguns benefícios ao leitor, por outro, é preciso ter cautela.
Para uma boa amostra do padrão seguido por uma versão parafraseada, tomemos como exemplo o texto de Romanos 12:20, que é uma citação de Provérbios 25:21-22. Na ARA, a passagem se encontra assim: “Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça”. O leitor atento logo se perguntará: “o que Paulo quis dizer com amontoar brasas vivas sobre a cabeça?” Na NTLH, encontramos uma interpretação dessa ideia: “Mas façam como dizem as Escrituras: “Se o seu inimigo estiver com fome, dê comida a ele; se estiver com sede, dê água. Porque assim você o fará queimar de remorso e vergonha”.
Ao comparar as duas versões acima, o leitor perceberá que a NTLH interpreta o ato de “amontoar brasas vivas sobre a cabeça” como um comportamento em que se leva um inimigo a sentir vergonha e remorso. Nesse modelo de tradução, o leitor não precisa se esforçar para compreender o que o autor quis dizer. A ideia original é interpretada e entregue pronta ao leitor. Inicialmente, isso pode ser um benefício, se a interpretação estiver correta. No caso do texto de Romanos 12:20 na NTLH, embora alguns comentários bíblicos sugiram que essa seja uma leitura possível, ela é apenas uma entre outras alternativas.
Além disso, passagens como Apocalipse 21:16-17, em que encontramos termos diretamente relacionados com a cultura em que o texto foi produzido, podem ter sua interpretação afetada em função da substituição desses termos por outros pertencentes à cultura do leitor. A NTLH apresenta a medida de dois mil e duzentos quilômetros para a cidade santa e sessenta e quatro metros de largura para sua muralha. Em contrapartida, a ARA menciona que a cidade mede doze mil estádios, e sua muralha, cento e quarenta e quatro côvados. Porém, um estudo atento sobre os números em Apocalipse demonstrará que a ênfase não está nas unidades de medida, mas nos números em si. Desse modo, os números 12 e 144 são cruciais para a interpretação da passagem, os quais estão ausentes na NTLH, assim como, coincidentemente ou não, também estão ausentes na NVI.
O que fazer?
A essa altura, uma pergunta que inevitavelmente surge é: Que versão da Bíblia devo ler? Eu diria que esta é uma decisão que cada um precisa tomar. Felizmente, hoje, em função da impressão da Bíblia em larga escala, ter mais de uma versão da Bíblia é algo que está ao alcance praticamente de cada leitor. Então, aqui deixo algumas sugestões:
- Tenha à sua disposição pelo menos uma versão de cada modelo de tradução. Por exemplo, uma Almeida Revista e Atualizada (ARA), uma Nova Versão Internacional (NVI) e uma Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH).
- Após fazer a leitura na versão de sua preferência, se houver algum ponto que não tenha ficado claro, confira o que as outras versões estão dizendo. Alguns podem achar que esse seja um processo que toma muito tempo. Porém, em geral, ler um trecho menor da Bíblia, compreender seu significado e como ele se aplica a nós hoje pode ser mais proveitoso do que ler vários capítulos seguidos.
- Ao comparar as versões, é importante começar por uma tradução formal, uma vez que ela tende a estar mais próxima da língua original. Em seguida, observe como aquela passagem foi traduzida numa edição dinâmica. Finalmente, verifique como uma edição parafraseada compreendeu essa passagem.
- Para aqueles que puderem investir um pouco mais de dinheiro e tempo, bons comentários e dicionários bíblicos são ferramentas indispensáveis para a compreensão da Bíblia, a exemplo da Série Logos, que é uma coleção de comentários bíblicos que também inclui um dicionário bíblico. Para aqueles que precisam de uma alternativa mais acessível, usar uma Bíblia de estudos seria uma boa opção, a exemplo da Bíblia de Estudo Andrews.
Enfim, o mais importante é que você tenha sua Bíblia e a estude diariamente. Como disse Jeremias: “Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para o coração, pois pelo teu nome sou chamado, ó Senhor, Deus dos Exércitos” (Jeremias 15:16, ARA). Que nos alimentemos dessas palavras todos os dias!
ADENILTON TAVARES, mestre em Ciências da Religião, é professor de grego e Novo Testamento na Faculdade Adventista da Bahia e está cursando o doutorado em Novo Testamento na Universidade Andrews (EUA)
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.