Como o relacionamento entre pais e filhos influencia a visão sobre Deus
Ele estava cansado. A jornada diária de trabalho tinha sido exaustiva o suficiente. Ele entrou em casa e foi direto para o sofá, largou a mochila e esticou as pernas para alguns minutos de autocondescendência. Mesmo consciente de que aqueles momentos eram seus – e muito bem merecidos –, suas constantes demonstrações de afeto me davam a segurança de que eu podia me aproximar sem correr o risco de ouvir um pedido de tempo.
Na verdade, não precisei tomar a iniciativa. Ele olhou para mim e, fazendo um sinal com a mão, convidou-me para sentar ao seu lado. Então, ouvi a pergunta de sempre: “O que eu sou teu?”. E repetimos juntos: “Eu sou teu pai, teu irmão, teu amigo”. Ao observá-lo em suas atuações diárias, sobretudo ao avaliar eventos de minha infância depois de me tornar adulto e também alcançar a paternidade, cheguei à conclusão de que ele não foi um pai perfeito. Nem eu queria que ele tivesse sido: sempre preferi um pai humano. E é exatamente isso que ele foi!
Por se outras razões, durante a infância e adolescência, a imagem bíblica de um Deus amoroso nunca foi difícil para mim. Sempre tive convicção do amor de Deus porque tinha convicção do amor de meu pai. Ele não está mais entre nós. Mas aquilo que me ensinou continua a exercer poderosa influência sobre minha vida.
Sua presença preenchia nosso lar, e nós nos preparávamos para recebê-lo com ansiedade para desfrutarmos mais um momento em família. Minha mãe aprontava tudo na cozinha, com a ajuda de minha irmã. Meu irmão mais velho já não morava mais conosco. Havia partido para a “cidade grande”, em busca de mais opções para seu desenvolvimento profissional. Como caçula, minha tarefa era esperá-lo no portão (eu havia escolhido essa parte), e saudá-lo com um pulo para seus braços, recebendo em contrapartida uma rápida e inebriante sucessão de beijos nas bochechas, enquanto sentia meu corpo suavemente pressionado contra o dele. Que saudade desse tempo! Como dizia uma música que eu ouvia nessa mesma época, “tempo que passou, e não volta mais!”
Hoje estou na posição de pai, o ângulo a partir do qual posso compreender os sentimentos que ele abrigava no coração. Fico pensando quantas vezes ele foi ao meu quarto no meio da noite, com a ideia aparentemente estúpida de simplesmente ver se eu estava respirando! Quantas vezes as madrugadas lhe fizeram companhia, a fim de buscar auxílio do Pai celestial, e receber a sabedoria necessária para tratar com um filho que estava saindo da linha. Às vezes, ainda me pergunto por que ele teve que trabalhar tanto! Não teria sido melhor se ele ficasse em casa o dia inteiro e brincasse comigo horas a fio? Somente hoje, compreendo que uma família tem múltiplas necessidades, e peço sabedoria a Deus para colocar em prática o conselho de alguém que, apesar de ser conhecido como sábio, também cometeu muitos erros. “Há tempo para tudo debaixo do sol”, disse Salomão, já sentindo o calafrio na espinha que sentem todos aqueles cujo relógio da vida já aponta para o fim do dia. Porém, entre suas frases, a minha predileta é: “Lembra-te do teu Criador, nos dias da tua mocidade”. Qual pai não deseja que seus filhos coloquem isso em prática?
Na Bíblia, encontramos inúmeros exemplos de filhos tementes a Deus, que aprenderam a reverenciá-Lo a partir do exemplo de seus pais. Dois deles chamam a minha atenção: José e Davi.
A descrição que as Escrituras fazem da firmeza espiritual do filho de Jacó não poderia ser mais contundente. Diante de severas tentações, a convicção da presença do Senhor era seu escudo: “Como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?”, ele disse em resposta às extravagantes investidas de uma mulher com os lábios repletos de luxúria. Durante sua viagem para o exílio, “seus pensamentos volveram para o Deus de seu pai. Na meninice foi ensinado a amá-Lo e temê-Lo. Muitas vezes na tenda do pai, tinha ouvido a história da visão de Jacó quando se retirava de seu lar, como exilado e fugitivo” (Patriarcas e Profetas, p. 147, grifos acrescentados).
Porém, o menino cresceu. Diante da incerteza do futuro, a religião de seu pai fez toda a diferença: “José acreditava que o Deus de seu pai seria o seu Deus. Ali mesmo se entregou então completamente ao Senhor, e orou para que o guarda de Israel estivesse com ele na terra do exílio” (Idem, p. 146). O Deus de seu pai não era mais o Deus de seu pai. Ele passou a ser o seu Deus!
E o que dizer de Jessé e seu terno cuidado pelos filhos? Já idoso (1Sm 17:12), o amor desse pai suportou o teste do tempo. Certo dia, “Disse Jessé a Davi, seu filho: Leva, peço-te, para teus irmãos um efa deste trigo tostado e estes dez pães e corre a levá-los ao acampamento, a teus irmãos” (1Sm 17:17). Séculos antes, Jacó tinha feito algo semelhante. Preocupado com os filhos mais velhos, chamou José e lhe transmitiu a tarefa: “Vai, agora, e vê se vão bem teus irmãos e o rebanho; e traze-me notícias” (Gn 37:14; grifos acrescentados).
Ao ler essas histórias, não consigo parar de pensar nos sentimentos que esses homens abrigavam no coração: amor, saudade, cuidado paternal, compaixão, esperança, expectativa, etc. E então, vejo meu pai, e então me vejo, e vejo meus filhos: em novas e empolgantes histórias, porém não muito diferentes daquelas! Para alegrar o coração de um pai não precisa muita coisa: basta saber que os filhos estão bem supridos, como no caso de Jessé; ou, apenas, “receber notícias”, como no caso de Jacó.
Mas a Bíblia também fala de filhos que cresceram sem seus pais. Um exemplo notável é o do rei Josias. Filho e neto de reis que deixaram como herança um péssimo legado religioso (2Rs 21:19-20; 25-26), Josias cresceu sem um bom referencial humano. O pai dele foi assassinado quando ele tinha a tenra idade de oito anos, deixando-o com a difícil tarefa de assumir o trono (2Rs 22:1). Porém, ele decidiu fazer “o que era reto perante o Senhor” (v. 2), quebrando toda uma sucessão de influências negativas. De fato, sua referência estava no Senhor e em Sua Palavra (v. 11, 19). Ele viu em Deus um Pai amoroso, e isso mudou sua vida, além de consertar uma nação (2Rs 23).
Essa história nos ensina que, mesmo aqueles que não tiveram a alegria de desenvolver um forte relacionamento com um pai terrestre, podem estar seguros de que existe um Pai no Céu que lhes ouve as orações, atende suas necessidades, e está ansioso para demonstrar Seu amor e cuidado paternais.
São inúmeras as referências bíblicas que apresentam Deus como Pai. Uma delas está registrada na oração modelo: “Pai nosso que estás nos Céus” (Mt 6:9). Ao mesmo tempo que Jesus nos ensina com que segurança devemos nos aproximar de Deus, essa prece também nos coloca em pé de igualdade: somos todos irmãos, e, por isso, ninguém está só neste mundo. Essa oração ensinada por Jesus chamou tanto a atenção do mundo cristão, que se tornou conhecida apenas pelo vocativo de abertura: “Pai nosso”.
Se o amor do pai humano falhar, podemos contar com a extremosa declaração de amor do Pai celestial: “Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí” (Jr 31:3). Que pais e filhos encontrem nesse amor não apenas um assunto para reflexão, mas uma inspiração e um exemplo a seguir! Como disse o conhecido escritor cristão D. A. Carson: “O amor de Deus não é meramente para ser analisado, entendido e adotado em categorias holísticas do pensamento teológico integrado. Ele deve ser recebido, absorvido e sentido”.
NILTON AGUIAR, mestre em Ciências da Religião, é professor de grego e Novo Testamento na Faculdade Adventista da Bahia e está cursando o doutorado em Novo Testamento na Universidade Andrews (EUA)
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.