Por que o livro de Êxodo diz repetidamente que Deus endureceu o coração do Faraó? Ele não tinha livre-arbítrio? Ou foi manipulado para que Deus mostrasse a ele Seu grandioso poder ao libertar o povo de Israel?
A Bíblia é clara em afirmar que as pessoas foram criadas como seres morais livres, com capacidade de fazer escolhas, utilizando-se do livre-arbítrio. Tanto é que o primeiro casal escolheu desobedecer à proibição divina de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2:16, 17; 3:6).
Eis dois textos, dos mais conhecidos na Bíblia, que enfatizam o livre-arbítrio: “Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 30:19); “Porém, se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei, hoje, a quem sirvais […]. Eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Js 24:15). Vê-se, então, que Deus não força nossa lealdade a Ele, mas deseja obediência que seja fruto de nosso amor por sua pessoa. Como disse Jesus: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14:15).
Se Deus não força as decisões dos seres humanos, como é que no livro de Êxodo é dito, várias vezes, que Ele endureceu o coração do faraó? (Êx 4:21; 9:12; 10:20; 11:10)? Esse monarca egípcio não tinha livre-arbítrio para escolher libertar os cativos israelitas? Para complicar, no mesmo livro é dito que foi o faraó que endureceu o coração (8:32). Afinal, foi Deus quem endureceu o coração do faraó ou foi o faraó quem endureceu o próprio coração?
Ao se ler a Bíblia, verifica-se como era a maneira de pensar dos israelitas do tempo em que ela foi escrita. Pensava-se que Deus, por deixar que algo aconteça, tem responsabilidade com o que acontece. Isto é, o que Deus permite é como se Ele mesmo causasse. Veja outros dois exemplos dessa maneira israelita de pensar: o caso de “um espírito maligno da parte de Deus” atormentando o rei Saul (1Sm 18:10); a informação de que o Senhor “pôs o espírito mentiroso” na boca de todos os profetas do rei Acabe (1Rs 22:23). Nesses casos, vê-se que não foi o Senhor mesmo quem fez o que é dito nos textos, mas apenas permitiu que essas coisas acontecessem.
Essa maneira israelita de pensar ilumina a questão do endurecimento do coração do faraó. Na verdade, não foi Deus quem endureceu o coração daquele monarca, pois, se fosse, o faraó não seria culpado por ficar de coração endurecido. A culpa recairia sobre Deus, que poderia ser acusado de tirar o livre-arbítrio do faraó. Deus apenas permitiu que o monarca egípcio seguisse seu caminho de obstinação, não interferindo nas escolhas daquele rei. Deus poderia forçá-lo à obediência, mas, se o fizesse, estaria privando-o do livre-arbítrio. Na verdade, como é dito em Êxodo 8:32, foi
o faraó quem “endureceu o coração e não deixou ir o povo”.
Ainda hoje, Deus segue respeitando as decisões de cada ser humano. É verdade que deve doer em seu coração de amor permitir que alguém escolha um caminho mau e colha as consequências nefastas, pois é seu desejo que façamos boas escolhas e colhamos o bem. Ele não força ninguém a recebê-lo e a obedecer-lhe, mas permanece do lado de fora de nosso coração, esperando pacientemente que abramos a porta (Ap 3:20).
O faraó poderia ter ouvido a voz de Deus falando-lhe através dos grandes e terríveis sinais que presenciou. Mas teve a liberdade de se recusar a ouvir. E essa sua recusa resultou em ruína para todo o povo egípcio, sendo a pior das tragédias a morte de todos os primogênitos daquela nação. Tira-se desse incidente uma importante lição: somos livres para escolher, mas cada decisão traz suas consequências, sejam elas boas ou más. “De Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6:7).
OZEAS MOURA, doutor em Teologia, com especialização em Antigo Testamento, é professor no Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)
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(Texto publicado originalmente na edição de maio de 2016 da Revista Adventista)
Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.