Gente que vira coisa

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A inconstância que caracteriza a vida atual torna descartáveis as relações e as pessoas

Foto: Fotolia A falta de tempo é a marca mais presente em nossos dias. É comum encontrar pessoas correndo. São festas, e-mails, viagens, trabalho, um monte de coisas que “não se pode deixar de fazer”. A vida é tão cheia de atividades que sempre se tem a sensação de que não será possível dar conta. Mas gente é gente, não é coisa. E gente precisa ter vida de gente, relacionamentos de gente e propósitos de gente. Por que será que tem sido tão difícil ser gente em nossos dias?

A modernidade deflagrou um dos problemas mais profundos da vida contemporânea: a falta de sentido. Porém, a falta de sentido não surge do vazio, da falta das coisas. É o contrário. Esse esvaziamento na vida é provocado pelo excesso de estímulos. Com a vida a um click dos dedos, a noção de tempo foi profundamente alterada. Posso fazer tudo online. Essa rapidez do mundo dá a falsa sensação de que preciso ver tudo e saber de tudo, como se isso fosse possível. Se não dou conta, sinto-me ­diminuída. Brota o senso de inadequação, de que estou ultrapassada. E aumenta igualmente a sensação de ser descartável. Como fruto de uma sociedade consumista, passo a agir na vida pessoal e nos relacionamentos com base na perspectiva de ser substituída ou de substituir tudo e todos.

A fluidez das coisas e a liquidez dos amores. É disso que fala o sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seus estudos sobre modernidade e pós-modernidade. Bauman cunhou as expressões “amor líquido” e “modernidade líquida”, entre outras. Líquido, nesse caso, refere-se ao que não tem forma definida, que é volátil, transitório, que se transforma constantemente, que assume qualquer formato. Contudo, essa excessiva flexibilidade também é acompanhada por uma crise de identidade, de falta de estrutura, de fragmentação. O conceito de fluidez que perpassa nossa vida vai, aos poucos, substituindo o sentido e tornando descartáveis não só as coisas, mas principalmente as relações.

A falta de sentido, em última instância, gera grande insatisfação. Amparada nas tecnologias de comunicação que não dão espaço para a ausência de estímulos, a insatisfação cresce quando não podemos ver, ouvir, provar, sentir e tocar o tempo todo. Hoje em dia, chamamos qualquer tempo vazio de tédio. No entanto, nosso cérebro precisa desse tempo. Isso é o que descobriu recentemente o neurocientista Daniel Weissman, do Laboratório de Atenção e Controle Cognitivo da Universidade de Michigan. Segundo o pesquisador, somente quando deixamos de prestar atenção a alguma coisa nosso cérebro entra em um estado de “repouso” capaz de gerar reflexão e criatividade. Sem esse relaxamento não pensamos adequadamente.

Em nossa sociedade marcada pelo excesso de estímulos, a insatisfação cresce quando não podemos ver, ouvir, provar, sentir e tocar o tempo todo

A pausa está na contramão do mundo moderno e consumista. O consumismo não se reflete apenas no acúmulo das coisas, mas no seu breve uso, seguido do descarte, para assim haver mais espaço para outros “bens” e usos. Ou seja, não há parada. Se não paramos, nos perdemos, não sabemos quem somos. Tornamo-nos incapazes de apreciar o que dá sentido. Por isso, muita gente tem pressa em postar nas redes sociais uma paisagem bonita, mas é incapaz de se conectar com o lugar e apreciar profundamente a vivência que isso pode lhe trazer. Casais saem para jantar e não conversam; ficam isolados em seus celulares, computadores e tablets. Até os filhos viraram objeto de consumo emocional para os pais que não têm tempo de desfrutar as alegrias da paternidade e maternidade.

A falta de autenticidade nos relacionamentos, o que dá ao indivíduo a sensação de ser um objeto, só pode ser remediada pelo autoconhecimento. Isso leva tempo e exige reflexão, pois é um tipo de conhecimento diferente, que não pode ser alcançado nas mídias e requer investimento interior. Humanizar-se (isto é, tornar-se gente) é a demanda mais urgente de nosso tempo. [Foto: Fotolia]

Talita Borges Castelão é psicóloga clínica, sexóloga e doutora em Ciências

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Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.