O lançamento anônimo das primeiras sementes da obra de publicações no Brasil
Davi Boechat
No século 19, o Brasil surgia como uma alternativa promissora para italianos, alemães e suíços que buscavam melhores condições de vida. Muitos deles embarcaram com destino ao Rio de Janeiro, onde receberam terras do governo para a prática da agricultura familiar, antes mesmo da tentativa de colonização no Sul do país (Giralda Seyferth, “A imigração alemã no Rio de Janeiro”, em Histórias de Imigrantes e de Imigração no Rio de Janeiro [7Letras, 2000], p. 11). Essas correntes migratórias ampliaram o repertório religioso do Brasil, introduzindo o protestantismo no país. A inserção do adventismo na então Capital Federal e em suas redondezas está diretamente relacionada a esse processo (Antônio Carlos Ribeiro, “Protestantismo de imigração: chegada e reorientação teológica”, Atualidade Teológica nº 28, janeiro de 2008, p. 102).
Em 1888, ano da abolição da escravatura, a edição de novembro da Review and Herald, periódico oficial da Igreja Adventista, publicou um texto que relatava a venda de literatura na cidade do Rio por um pequeno agricultor identificado apenas como “Irmão D”, que se tornou simpatizante das ideias adventistas por meio da leitura. Muito diferente dos protestantes que praticavam a fé de maneira tímida, doméstica e sem preocupação missionária, ele estava engajado na pregação (para saber mais, clique aqui). Prova disso foi o pedido que fez de materiais para distribuição na cidade.
A editora atendeu ao pedido, assumindo inclusive os custos de envio. No entanto, ao chegar no Brasil, os Correios cobraram mais US$ 9,20 referentes à entrega da encomenda. Sem o pagamento, a caixa retornaria à sua origem. Eram as primeiras dificuldades com a importação, um problema que se repetiria várias vezes na experiência dos primeiros colportores, que só seriam enviados pela denominação em 1893, cinco anos depois.
Sem recursos para arcar com as taxas, o colono negociou com os agentes postais, pedindo que uma parte do material fosse liberada para venda. Com o lucro, ele retornaria para fazer os acertos e buscar o restante da literatura. A resposta foi positiva: “Então, o Irmão D deixou sua fazenda e viajou por uma semana, de colônia em colônia, para vender os panfletos, até que finalmente obteve o suficiente para pagar as despesas” (T. Valentiner, “Brazil”, Review and Herald, v. 65, nº 46, 20 de novembro 1888, p. 12).
Entre as dificuldades enfrentadas estavam a distância entre os povoados e a pobreza da população. Muitos eram agricultores de subsistência e viviam em um modelo econômico com base nas trocas, praticamente sem utilizar dinheiro. Dessa forma, mesmo os interessados no conteúdo das publicações poderiam ter dificuldades para comprá-las. Superado o problema, o Irmão D deixou um apelo que demonstra sua disposição em continuar o trabalho.
“O que vocês pretendem fazer? Sob essas circunstâncias, enviarão o Herald no próximo ano? Que o Senhor abençoe todos os esforços. Que Ele faça a obra se espalhar por todo o vasto campo da colheita, preparando o povo de Deus para o juízo iminente, a fim de que não sejamos surpreendidos, mas tenhamos uma entrada abundante na cidade de Deus. Por favor, avisem-me sobre o que desejam que eu faça. Eu distribuirei os panfletos” (Valentiner, “Brazil”, p. 12).
Pão sobre as águas
As informações sobre o Irmão D são escassas e, talvez por isso, ainda desconhecidas. Mesmo a afirmação de que se trata de um imigrante é apenas uma inferência, embora bastante plausível, considerando que ele dominava línguas estrangeiras em uma época na qual o Brasil apresentava altos índices de analfabetismo.
Outro fator que contribui para essa perspectiva é que, na época, o protestantismo no Brasil era desconhecido e restrito aos grupos de imigrantes, sendo, inclusive, uma das formas de socialização entre os alemães mais pobres (Seyferth, “A imigração alemã no Rio de Janeiro”, p. 21, 26).
Em 1884, a revista denominacional Signs of the Times afirmou que havia apenas sete ministros protestantes em toda a cidade do Rio de Janeiro, dos quais dois eram brasileiros, quatro eram norte-americanos e um era inglês (“Catholic Brazil”, Signs of the Times, 3 de julho de 1884, p. 411).
Dadas essas situações, é curioso pensar em quais circunstâncias ocorreu a conversão do irmão D. Ele teria conhecido a mensagem em seu país natal, estabelecido contato com missionários durante uma viagem ou recebido algum material? Para o historiador adventista Elder Hosokawa, a melhor hipótese é que ele tenha sido alcançado com literatura enviada gratuitamente pelo colportor William Ings (1835-1897) a partir da Inglaterra, na década de 1880. Embora nunca tenha visitado a América do Sul, Ings abriu portas para a evangelização na região por meio do envio gratuito de publicações em inglês, alemão, sueco e dinamarquês.
Ings compreendia que o tempo ocioso dos passageiros que cruzavam o mar abria oportunidade para a leitura. Tinha, ainda, a visão de que a rota das embarcações faria com que as publicações chegassem a áreas ainda não alcançadas. “Não satisfeito apenas em vender literatura, Ings começou a solicitar doações nos artigos que enviava à Review and Herald. Assim, foi criado um fundo para patrocinar as missões em navios e portos”, explica Hosokawa (para saber mais, clique aqui).
À medida que aportavam no litoral brasileiro, livros, panfletos e revistas foram recebidos por imigrantes. Em 1881, esses conteúdos chegaram ao Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia (William Ings, “Ship Labor in England”, Review and Herald, 3 de maio de 1881, p. 284). Isso significa que os missionários, que iniciaram oficialmente o trabalho no Brasil em 1893, foram precedidos por livros e jornais que deixaram suas marcas. Como muitos outros, o Irmão D os recebeu de forma aleatória, mas suficiente para despertar sua atenção e, posteriormente, engajamento na pregação.
Assim, de maneira anônima, podem ter sido lançadas as primeiras sementes da obra de publicações no Brasil. Sem ser enviado pela denominação, desprovido de qualquer estrutura, comunidade ou recursos, o misterioso Irmão D pregou a mensagem da breve vinda de Jesus em terras cariocas. Por sua ousadia, seu testemunho deixa um exemplo que merece ser somado a outros relatos já bem difundidos sobre a inserção do adventismo no país (ver Michelson Borges, A Chegada do Adventismo ao Brasil [CPB, 2020]).
Também na cidade do Rio de Janeiro, 12 anos após as correspondências entre o Irmão D e a Review, os adventistas publicaram a revista O Arauto da Verdade, o primeiro passo para o estabelecimento da Casa Publicadora Brasileira. Ainda em 1900, ocorreu o primeiro culto em português na igreja do Méier, a segunda congregação organizada no Brasil, em 1895. Segundo o relato de Frederick Spies, o trabalho entre os brasileiros acontecia em um salão alugado e exigia “mais cadeiras ou bancos”, mas faltavam recursos para a compra (F. W. Spies, “Brazil”, Review and Herald, 20 de fevereiro de 1900, p. 12). Passados tantos anos, esses exemplos nos motivam a seguir cumprindo a missão. Maior que a tecnologia, as estruturas e os orçamentos que temos à disposição é a mensagem que nos move!
DAVI BOECHAT é jornalista
(Artigo publicado na Revista Adventista de setembro/2024)
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Última atualização em 19 de setembro de 2024 por Márcio Tonetti.