Religião nas escolas públicas

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O ensino religioso no Brasil e a discussão sobre a legitimidade de sua existência e natureza confessional num país laico
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O tema do ensino religioso na rede pública tem sido objeto de discussões constantes por parte das autoridades educacionais e dos líderes eclesiásticos. Uma das questões debatidas nos últimos anos tem sido a melhor maneira de ministrar o ensino religioso num país com tanta diversidade de crenças. É possível fazê-lo sem as devastadoras consequências do proselitismo, preconceito e intolerância? Ou seria melhor que cada família, com base em sua orientação religiosa, assumisse a responsabilidade pela formação espiritual dos filhos, fora do espaço público, se assim desejasse?

Antes de entrar propriamente nessas questões, precisamos fazer um breve resgate histórico a fim de entender suas raízes. O ensino religioso no Brasil começou com os padres jesuítas logo após a chegada dos colonizadores portugueses, no século 16. Posteriormente, em meados do século 19, a primeira Constituição do país, conhecida como a “Constituição Política do Império do Brazil”, outorgada por D. Pedro I no dia 25 de março de 1824, estabeleceu que a religião Católica Apostólica Romana seria a religião oficial do império. A educação se tornou de inteira responsabilidade da religião oficial do Estado, que educava as novas gerações segundo a moral e os dogmas católicos.

Com o fim do império e o início da República, em 1889, Manoel Deodoro da Fonseca, primeiro presidente, assinou o Decreto 119-A, que proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa e consagrou a plena liberdade de cultos. Quando começou a vigorar a primeira Constituição Republicana, em 1891, ficou definida claramente a separação entre o Estado e quaisquer religiões. Proclamou-se, então, que todas as religiões seriam aceitas no Brasil e que poderiam praticar sua crença e seu culto livre e abertamente. Foi ainda estabelecido que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos seria leigo.

Com isso, o ensino religioso chegou a ser banido por um tempo, mas retornou em 1931 por força de um decreto do então presidente Getúlio Vargas, que reintroduziu a disciplina nas escolas públicas em caráter facultativo. Em resposta, foi criada a Coligação Nacional Pró-Estado Leigo, composta por representantes de todas as religiões, além de intelectuais, como a poetisa Cecília Meireles.

Com a promulgação da nova Constituição, em 1934, o ensino religioso se tornou oficial e passou a vigorar em todas as Constituições brasileiras (tanto na de 1946 como nas de 1967 e 1988). O artigo 210 da Constituição Federal de 1988 prevê que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.

O tema também foi contemplado na primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1961, bem como na de 1971 e na de 1996. Embora o texto da terceira LDB tenha apresentado uma nova redação em relação à anterior, já no ano seguinte de sua publicação ela teve o artigo 33, que trata do ensino religioso em escolas públicas, modificado conforme a Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997. O texto passou a expressar o seguinte:

Art. 33° – O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1° – Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.

§ 2° – Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição do ensino religioso.

Contudo, a partir de 2009, o assunto ganhou novos desdobramentos com a aprovação pelo Congresso Nacional do Acordo Brasil-Vaticano, assinado pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva em novembro de 2008. O acordo criou novo dispositivo, discordante da LDB em vigor:

“Art. 11 – A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do país, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.

§ 1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.”

A partir de então, começaram a surgir as mais diversas reações da sociedade civil, a maioria delas contrárias ao referido acordo. Foi nesse contexto que, em 2010, a Procuradoria Geral da República (PGR) entrou com a ação propondo que o ensino religioso se limitasse à exposição das doutrinas, história, práticas e dimensões sociais das diferentes crenças, assim como do ateísmo e do agnosticismo.

Cinco anos depois, representantes de praticamente todos os segmentos religiosos e de entidades ligadas à educação atenderam a uma convocação feita pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) no Supremo Tribunal Federal (STF). Na audiência pública, cada um dos 31 expositores teve 15 minutos para apresentar seus argumentos sobre a matéria. Antônio Carlos Biscaia, representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi um dos únicos a se manifestar a favor do atual modelo de ensino religioso no país, defendendo o acordo firmado entre Brasil e o Vaticano. “O Brasil é um Estado laico, mas não é um Estado ateu. Tanto que o preâmbulo da Constituição Federal evoca a proteção de Deus. O ensino religioso é distinto da catequese. Como disciplina, ele tem uma metodologia e linguagens adequadas em ambiente escolar diferente da paróquia”, justificou.

Do lado dos que eram contrários ao Acordo Brasil – Vaticano, os argumentos incluíram desde análises técnicas do que se acha disposto na Constituição Federal e na LDB até a avaliação do quadro religioso da população brasileira, onde o catolicismo vem perdendo fiéis e os evangélicos e os que se declaram sem religião vêm crescendo significativamente, como mostrou o último Censo do IBGE.

A decisão tomada pela Suprema Corte na última quarta-feira, 27 de setembro, favorável ao ensino religioso confessional, ou seja, à promoção de crenças em sala de aula, reacendeu o debate (clique aqui para saber mais sobre o resultado do julgamento). Além de discutir sua aplicabilidade, muitos voltam a questionar até mesmo a existência da disciplina na rede pública. A maioria dos pesquisadores e educadores brasileiros entende que ela não deveria fazer parte do currículo por pelo menos três razões.

A primeira tem que ver com a dificuldade de cumprir o que está determinado legalmente. A começar pelo caráter facultativo. O que fazer com os estudantes que, por algum motivo, não queiram participar das atividades? A questão da diversidade, outro item previsto na lei, também não é uma coisa simples de ser resolvida. Como garantir que todos os grupos religiosos, incluindo divisões internas e dissidências, sejam respeitados durante o programa em um país plural como o Brasil?

O segundo motivo é de foro íntimo e, portanto, relaciona-se com as escolhas de cada um e com o respeito às opções dos outros. Como assegurar que o professor responsável por lecionar ensino religioso não incorra no erro de impor seu credo aos estudantes? Em hipótese alguma, a escola pode ser usada como palco para militância religiosa e manifestações de intolerância. É bom lembrar que a mesma carta magna determina que o Estado brasileiro é laico e, por meio de suas instituições, deve se manter neutro em relação a temas religiosos. Quando isso não acontece, aumentam os riscos de constrangimentos e casos de bullying.

A terceira razão para deixar o ensino religioso fora do currículo é a essência da escola. Cabe a ela usar os dias letivos para ensinar aos estudantes os conteúdos sobre os diversos campos do conhecimento. Há tempos, sabe-se que o Brasil está longe de cumprir essa obrigação básica. Os resultados de avaliações como a Prova Brasil e o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês) comprovam com clareza essa falta grave. Boa parte dos estudantes conclui o Ensino Fundamental sem alcançar proficiência em leitura, escrita e matemática.

Mesmo sem oferecer a disciplina, muitas instituições públicas pecam ao usar a religião no dia a dia. Segundo respostas dadas por 54.434 diretores ao questionário da Prova Brasil 2011, independentemente de oferecer a matéria, 51% das escolas cultivam o hábito de cantar músicas religiosas ou fazer orações no período letivo, no horário de entrada ou da merenda, entre outros. Esse é o quadro.

Diante do que se acha disposto na Constituição e na LDB, unido ao histórico brasileiro em relação ao ensino religioso, infelizmente não é possível oferecer garantias para praticar o que se acha disposto para essa disciplina, mantendo-a isenta de interesses proselitistas. Além disso, dificilmente uma sociedade tão plural como a brasileira conseguirá agir com plena isenção e harmonizar todos os postulados previstos na Constituição Federal e na LDB, sem ceder à forte pressão natural da maioria impondo-se sobre as minorias.

Apesar de nobres e elevados, os propósitos para a prática do ensino religioso em escolas públicas parecem ter sido extremamente idealizados por aqueles que lutaram para sua implantação, sem se darem conta das implicações práticas e de seus desdobramentos funestos para os que pensam e creem de maneira diferente da religião da maior parte da população.

Sendo assim, a matéria deveria ser de responsabilidade única e exclusiva de cada família, sem nenhuma participação ou interferência do Estado, impulsionada unicamente por foro íntimo, a fim de buscar a orientação religiosa para seus filhos, se assim livremente desejarem. E, se o fizerem, que o façam segundo suas próprias convicções religiosas, por livre iniciativa, sem coerção nem indução de quem quer que seja. Que os pais se unam aos seus líderes religiosos e encontrem no espaço restrito do seio familiar e da religião que livremente escolherem, os ensinamentos que desejam ver perpetuados em seus filhos.

HÉLIO CARNASSALE, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, é diretor de Liberdade Religiosa da Igreja Adventista do Sétimo Dia e secretário executivo da Irla (International Religious Liberty Association) para a América do Sul

Última atualização em 16 de outubro de 2017 por Márcio Tonetti.