O menino que lia no escuro

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Conheça um pouco da trajetória do pastor Marcos De Benedicto. O atual editor-chefe da CPB irá se aposentar no fim do ano, mas a amizade com as letras continuará 

Márcio Tonetti

O pastor Marcos De Benedicto, editor-chefe da Casa Publicadora Brasileira, dedicou quase 36 anos de serviço à instituição. Foto: Gustavo Leighton

Nem mesmo uma obra biográfica monumental é capaz de captar toda uma vida. O que dizer então da tentativa de resumir uma trajetória em poucas linhas? Este é, portanto, somente o abstract de uma história que renderia um livro.

Tudo começou em 1960, na região de Campestre, no sul de Minas, quando e onde nasceu Marcos Carvalho De Benedicto. Ele cresceu desbravando os campos ao redor do sítio da família. Mas, desde cedo, também cultivou outro hábito: a leitura. Mesmo morando na roça, tinha acesso a livros, revistas e jornais que seus pais adquiriam. De vez em quando, o pastor Carlos Trezza, então redator-chefe da CPB e um grande amigo de seu pai, também passava por lá e deixava algum presente literário. Assim, desde álbuns de pássaros até revistas e devocionais alimentavam sua mente e seus sonhos. De tanto que gostava das letras, o menino lia até no escuro. “Cê credita, sô?” Na época, não havia luz elétrica ali. Assim, os olhos do Marcos passaram a enxergar além.

Ele amava a vida no campo, mas, na adolescência, foi para a cidade decidido a investir no conhecimento. Matriculou-se no IASP (hoje Unasp, campus Hortolândia), onde concluiu o ensino médio. Sonhador, chegou a pensar em ser presidente do Brasil, mas entendeu que estava sendo chamado mesmo para o sagrado ministério. Assim, o Marcos, que criou raízes lá na região do Rio do Peixe, acabou se tornando um pescador de gente. Depois de cursar Teologia no antigo IAE (Unasp, campus São Paulo), o mineiro trabalhou um ano como pastor na região de Muriaé e depois em Caratinga, Minas Gerais. O trabalho como distrital estava indo muito bem, mas aí veio uma grande surpresa: o chamado para ser editor na CPB.

“Conheci o pastor Marcos em 1987, quando ele chegou à Casa Publicadora Brasileira para ser um dos editores. Foi um privilégio poder trabalhar com ele. É um homem muito habilidoso, grande pastor, teólogo, jornalista e professor”, ressalta o pastor José Carlos de Lima, ex-diretor da instituição.

Depois de vir para Tatuí, o pastor Marcos se graduou também em Jornalismo pela Universidade Metodista de Piracicaba, cursou mestrado em Teologia Bíblica pelo UNASP e doutorado em Ministério pela Universidade Andrews, nos Estados Unidos. Inclusive, no site da instituição, sua tese sobre o papel do Espírito Santo na capacitação dos crentes está entre as “Top 10” no ranking das mais baixadas de todos os tempos, com quase 29 mil downloads. Mas não parou por aí. Anos depois ele voltou à América do Norte para ingressar no programa de pós-doutorado em Teologia da mesma instituição. Sua pesquisa na área da escatologia bíblica rendeu mais de 600 páginas, escritas no período de apenas um ano.

TEÓLOGO, PASTOR E POETA

Esse é o doutor Marcos De Benedicto. Pesquisador nato, escritor produtivo, artífice das palavras; um teólogo que escreve como poeta e fala ao coração como pastor. “Considero o pastor Marcos De Benedicto uma referência de editor adventista. Ele reúne características muito importantes e difíceis de encontrar na mesma pessoa: profundidade teológica, bagagem cultural, escrita poética e criativa, capacidade de reflexão crítica, alinhamento institucional e coração pastoral. Foi um privilégio trabalhar sob a liderança dele durante oito anos na CPB. Encontrei nele um líder, conselheiro e amigo”, complementa Wendel Lima, ex-editor associado da Revista Adventista que há menos de um ano foi chamado para trabalhar como pró-reitor da área de Desenvolvimento Espiritual do UNASP.

Marcos De Benedicto é um teólogo que escreve como poeta e fala ao coração como pastor

Ao longo de quase quatro décadas, o doutor Marcos De Benedicto passou por quase todas as editorias, tendo coordenado, durante sete anos, a área de livros denominacionais. Porém, em meados de 2014, recebeu uma responsabilidade ainda maior: ser editor-chefe da Casa Publicadora Brasileira. Nessa função, ele substituiu ninguém menos do que o lendário Rubens Lessa. Em seu primeiro editorial, reconheceu o tamanho do desafio: “No início da tarde do domingo 18 de maio, enquanto eu voltava de uma visita à minha mãe (92 anos), no sul de Minas, o pastor José Carlos de Lima, diretor-geral da instituição, me ligou, comunicou a nomeação e pediu que eu viajasse a Brasília. Como não tremer? Certa vez, durante uma semana de oração, o pastor José Bessa chamou os redatores de ‘monstros sagrados’. E o que dizer de ícones como Luiz Waldvogel, Carlos Trezza, Arnaldo Christianini e Rubens Lessa? Como sentar-se confortavelmente na cadeira que pertenceu a esses homens?” (Revista Adventista, ed. junho 2014, p. 2).   

Embora seja discreto e humilde, o pastor Marcos se tornou também “lendário”. Convém lembrar que, já na fase da juventude, os colegas o chamavam de sábio. E essa, de fato, é uma característica marcante nele. Algo que percebemos ao ler seus livros e editoriais, ao assistir às suas palestras e aos seus sermões e ao conversar com ele. “Tive o privilégio de conhecê-lo de maneira mais próxima nos últimos 15 anos. O pastor Marcos tem uma grande capacidade e seu legado para a CPB é muito significativo. Em meio a crises teológicas, sempre me surpreendeu seu posicionamento seguro, tranquilo e sólido. Da mesma forma, como editor da Revista Adventista, ele sempre teve uma palavra sensata, objetiva e de acordo com nossas crenças”, afirma o pastor Edson Medeiros, diretor-geral da CPB.

Seus textos se tornaram fontes de sermão, de orientação e inspiração. É um autor que consegue oferecer algo novo mesmo nas pautas comuns e simplificar assuntos complexos sem perder a profundidade. Além do texto impecável, esculpido nos mínimos detalhes, outra característica marcante é sua capacidade de argumentação. Se você ler seu livro mais recente, sobre religião e política, terá uma boa noção da habilidade, profundidade e equilíbrio com que o autor escreve. Não foi por acaso que, num verbete da Enciclopédia Adventista, ele foi definido como alguém que valoriza a profundidade teológica e oferece respostas sólidas aos dilemas atuais da igreja.

É um autor que consegue oferecer algo novo mesmo nas pautas comuns e simplificar assuntos complexos sem perder a profundidade

“Ele tem a competência técnica e, ao mesmo tempo, o conteúdo. Sua teologia tem uma linha central, que se afasta dos extremos e procura ajudar a igreja em momentos de dúvidas e perplexidades, como aconteceu na pandemia. Muitas vezes ele se lançou com coragem sobre alguns temas, abençoando a igreja diante de questões que estavam trazendo dúvidas e incertezas”, sublinha o pastor Diogo Cavalcanti, que trabalha na CPB há 16 anos e atualmente coordena a editoria de livros denominacionais.    

Tanto nos textos quanto nas imagens que são publicados, o editor-chefe é bastante criterioso e detalhista, procurando evitar todo tipo de ruído. Eduardo Olszewski, designer da Revista Adventista, relembra um episódio de 2015 que ficou marcado na memória da equipe. “Estávamos fechando aquela edição. E, como de costume, nos reunimos para conversar sobre a capa. O pastor Marcos estava incomodado com alguns detalhes na foto escolhida para aquela edição. Decidiu então, ele mesmo, em seu notebook, com a ajuda de um software de tecnologia avançada, fazer os ajustes na imagem em busca da perfeição e excelência que sempre buscou para a revista.” Outro fato de bastidores: Numa revisão final da Revista Adventista, ele costuma fazer não menos do que 500 ajustes, seja corrigindo um espaço desnecessário, reestruturando uma frase, evitando cacofonias inclusive na junção das sílabas iniciais de ambos os lados das colunas de texto… Claro que ninguém é imune a erros, mas isso mostra todo o seu esforço no sentido de buscar a excelência e alimentar a igreja com a melhor qualidade possível.   

A editora Sueli Ferreira de Oliveira, que trabalhou diretamente com o pastor Marcos em algumas revistas e chegou a escrever um livro em coautoria, salienta a preocupação dele em transmitir a mensagem da melhor maneira possível, a começar por um bom título e uma boa chamada (no jargão jornalístico, frase que vai logo abaixo do título/manchete). “Isso me marcou bastante. A gente tem que oferecer o melhor para Deus”, frisa.

GESTÃO EDITORIAL   

Com um perfil inovador, o pastor Marcos também teve papel importante no aprimoramento dos processos editoriais na CPB. Gilvan Camargo, gerente de TI da editora, conta que um dos maiores desafios que a instituição teve nos últimos anos foi a implementação de softwares que pudessem ajudar no gerenciamento do setor. “Por conhecer bastante da área editorial, suas opiniões foram muito importantes, o que nos proporcionou maior assertividade na execução dessas plataformas”, avalia.

Outro aspecto que marcou sua gestão como editor-chefe da CPB, gerente da Redação e editor da Revista Adventista foi a transparência. Algo que é percebido mesmo por aqueles que trabalham com ele há pouco tempo. “Como líder, ele tem o cuidado de ser transparente e de reunir a equipe para falar sobre as coisas que estão acontecendo. Admiro muito essa atitude”, declara Quézia Salles, revisora de livros há pouco mais de um ano.

O pastor Diogo Cavalcanti acrescenta que, além de trabalhar de maneira colegiada, consultando os colegas e sendo também uma fonte de consulta, o pastor Marcos também foi um grande apoiador da equipe no sentido de criar oportunidades para o crescimento acadêmico e profissional. “Ele nos incentivou a estudar e a nos preparar cada dia mais para o trabalho”, observa. 

Considerando seu vigor físico e intelectual, não resta dúvida de que, mesmo depois da jubilação, o homem que começou a explorar o mundo dos livros lendo até no escuro ainda terá muito a contribuir, iluminando a igreja e a sociedade com conhecimento para esta vida e a eternidade.

ANÚNCIO DA APOSENTADORIA

Homenagem prestada a ele e à esposa, Luciene, durante o Concílio Anual da Divisão Sul-Americana. Foto: Gustavo Leighton

Se somarmos os quase 36 anos de trabalho do pastor Marcos na CPB com os 14 anos de serviço da esposa, Luciene, como telefonista/recepcionista da editora, chegamos a meio século dedicado à instituição. Depois de comunicar à igreja o desejo de se jubilar no fim deste ano, o casal recebeu uma justa homenagem no último domingo (6), durante o Concílio Anual sul-americano que acontece em Brasília.

Um vídeo preparado pela editora resgatou um pouco da trajetória e do legado deles. Emocionado, o doutor De Benedicto expressou sua gratidão a Deus e à igreja pelo apoio e pelas oportunidades ao longo de sua jornada. “Se algo bom e útil foi feito nesse período, a glória seja dada exclusivamente a Deus, que é a razão do nosso existir e que nos sustenta dia a dia com Sua graça e Seu poder”, ele reconhece. “Além disso, o protagonismo não pertence a mim”, acrescenta. “As eventuais conquistas devem ser atribuídas à nossa equipe maravilhosa, pois ninguém faz nada sozinho.” Expressando gratidão aos administradores e aos colegas mais antigos, ele lembra que o aprendizado e o amadurecimento vêm com o tempo. Marcos também destaca com carinho que suas raízes bíblicas vieram dos pais, que fundaram uma igreja no sítio da família, e expressa sua gratidão à esposa, aos filhos, à nora e aos demais familiares pelo apoio constante.

A gratidão é recíproca. “Meu pai é um exemplo pra mim. Saiu cedo da roça e, com muito esforço, concluiu os estudos e se dedicou ao máximo à igreja e à família. É um homem íntegro e que se desvia do mal. Minha mãe também é uma pessoa especial e amorosa, que sempre se doou”, completa o filho, Tiago.

“Mais do que ninguém, nós, da família, testemunhamos a dedicação, o compromisso e a lealdade que meu pai teve e tem com Deus, com o trabalho e a família. Admiro sua trajetória! Desejo que Deus continue abençoando tanto a vida dele quanto a da minha mãe, que sempre o apoiou. Tenho muito a agradecer-lhes por todas as oportunidades que proporcionaram a mim e ao meu irmão”, conclui a filha, Larissa.

SUCESSOR

Pastor Wellington Barbosa, no contexto de sua nomeação durante o Concílio Anual da Divisão Sul-Americana. A escolha do editor-chefe cabe à Comissão Diretiva da DSA. Foto: Gustavo Leighton

Ser nomeado para substituir alguém com esse perfil não é fácil. Ao receber uma ligação de Brasília informando que ele havia sido escolhido para o novo desafio, o pastor Wellington Vedovello Barbosa parou o carro no acostamento da rodovia Castelo Branco. Numa coincidência interessante, ele também voltava de uma visita à casa da mãe, assim como ocorreu quando seu antecessor recebeu a notícia de que seria editor-chefe da CPB. As pernas tremeram e os batimentos cardíacos aceleraram. Somente depois de alguns minutos ele prosseguiu viagem.

“Ainda estou assimilando tudo isso”, Wellington confessou ao grupo da Redação, logo depois de a Comissão Diretiva da Divisão Sul-Americana ter feito o anúncio de sua nomeação, no dia 7 de novembro, e a informação ter repercutido nos canais de comunicação da igreja (para saber mais, clique aqui).

Servidor da Casa Publicadora Brasileira há 8 anos, o paulista de 40 anos já trabalhava como editor de livros e da revista Ministério. Ele é graduado em Teologia e Administração pelo UNASP, campus Engenheiro Coelho, mestre em Teologia Pastoral pela mesma instituição de ensino e doutor em Ministério pela Universidade Andrews, nos Estados Unidos. Em sua tese, propôs um manual filosófico que ajudará a orientar a editora (e a comunicação adventista, de maneira mais ampla) em relação a vários temas. Além disso, escreveu o livro As Duas Faces do Ministério, publicado pela CPB em 2020.

“Dar continuidade ao trabalho do pastor Marcos De Benedicto é um grande privilégio e uma tremenda responsabilidade. Afinal, isso significa fazer parte de uma lista de editores-chefes da CPB que começa com Guilherme Stein Jr. e inclui nomes como Luiz Waldvogel, Carlos Trezza, Arnaldo Christianini e o saudoso pastor Rubens Lessa, de quem fui pastor e que enxergou em mim condições de trabalhar como editor”, declarou.

Para aquele que irá assumir a função a partir de 1º de janeiro de 2023, cada uma dessas figuras emblemáticas deixou pelo menos uma marca destacada. “Stein foi o pioneiro; Waldvogel, o escritor prolífico; Trezza, o tradutor; Christianini, o apologeta; Lessa, a lenda; e De Benedicto, o gênio. Espero que no livro de registro celestial eu seja descrito como Barbosa, o último. Meu sonho é ver Jesus voltando em breve, nesta geração!”, ele finaliza.

MÁRCIO TONETTI, pastor e jornalista, é editor associado da Revista Adventista

Última atualização em 9 de novembro de 2022 por Márcio Tonetti.