Interromper a gravidez é crime ou um direito da mulher?
Às vezes, a “vida” cria uma circunstância terrível, em que qualquer decisão parece ruim. É o caso de uma gravidez indesejada como resultado de violência sexual. O que fazer? Abortar e criar um dilema moral ou prosseguir e gerar um problema existencial? Como harmonizar a dor da vítima, a inocência do feto, os valores da religião, os princípios da sociedade e a defesa da liberdade individual? Deveríamos legislar a partir de qual perspectiva?
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Antigo e sempre atual, presente em todas as culturas, o tema do aborto é um paradoxo em gestação. E recentemente, com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de reverter uma decisão de 1973, as batalhas legais, os protestos e os cartazes polarizados estão de volta: “Mantenha o aborto legal”, “Aborto é liberdade”, “Tire a proibição do meu corpo”, “Aborto é assassinato”, “Deixe o coração bater”, “Arrependa-se ou pereça”.
Em 1973, no caso Roe vs. Wade, a corte norte-americana legislou por sete votos a dois que as mulheres podiam abortar legalmente nos três primeiros meses de gravidez. Havia uma proteção federal para a prática. A decisão de 24 de junho de 2022 pôs fim a esse direito constitucional por cinco votos (quatro juízes católicos e um episcopal criado católico) a quatro. Agora, cada estado poderá manter, restringir ou banir o aborto. As reações se dividiram entre a celebração e o pranto. O presidente Joe Biden descreveu a decisão como “um erro trágico”. Já uma ativista disse que o alvo é tornar o aborto não somente ilegal no país, mas “impensável”.
Em geral, ao redor do globo, a questão tem sido resumida a dois posicionamentos: pró-escolha e pró-vida. Porém, o tema é mais complexo. Deus é radicalmente favorável à liberdade e totalmente favorável à vida. Esses princípios vêm do Gênesis. Contudo, neste mundo de pecado, o que é moralmente aceitável? O fato é que, a partir da concepção, tem início uma nova vida com uma identidade genética única e irreplicável. E a decisão de interrompê-la não é simples.
Na literatura adventista, o tema do aborto apareceu cedo. Em um artigo intitulado “Fashionable Murder” (assassinato na moda) publicado na Review and Herald em 25 de junho de 1867, John Todd escreveu que “a morte intencional de um ser humano em qualquer estágio de sua existência é assassinato”. Depois vieram outras condenações.
Num livro editado por Tiago White em 1870, A Solemn Appeal (Steam Press, 1870, p. 100), há um trecho extraído de outra obra em que o aborto é chamado de “pecado terrível”. Anos depois, John Harvey Kellogg assinalou em Man, The Masterpiece (Condit & Nelson, 1886, p. 424) que desde o momento da concepção o novo ser é “possuidor de sua própria individualidade, com seu próprio futuro”.
Em 1970, a igreja preparou um documento com orientações para a comunidade médica, admitindo três possibilidades de aborto: (1) quando a vida da mãe estiver em risco, (2) quando o feto tiver grave má-formação e (3) quando a gravidez ocorrer como resultado de estupro ou incesto. Em todos os casos, o procedimento deveria ser feito o mais cedo possível. Um documento votado em 1992 seguiu na mesma linha. Em 2019, a igreja publicou uma declaração enfatizando a proteção da vida intrauterina.
A vida é sagrada, maravilhosa e frágil. Por vir de Deus, está acima das convenções culturais. Por isso, deve ser tratada com o maior cuidado. Se for inevitável, o aborto deveria ser legal, seguro, cedo e muito raro. Defendendo a proteção da vida em todos os seus estágios, a matéria de capa ajuda na reflexão sobre esse tema sensível.
MARCOS DE BENEDICTO foi editor da Revista Adventista e redator-chefe da CPB
(Publicado originalmente como editorial da edição de agosto de 2022)
Última atualização em 28 de junho de 2024 por Márcio Tonetti.