Discipulado na Bíblia

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As referências do Antigo e Novo Testamentos apontam para um estilo de vida único e consagrado 

Leonardo Godinho Nunes

Ao longo de sua história, a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem incentivado o crescimento espiritual equilibrado de seus membros, tendo como modelo o próprio Cristo. Essa atitude encontra um momento especial quando os representantes da igreja, reunidos na 61ª Assembleia da Associação Geral em St. Louis, Missouri, (EUA), votaram adicionar ao Manual da Igreja um capítulo sobre o discipulado.

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Essencial na vida cristã, esse tema aparece frequentemente na Bíblia e pode ser abordado em três frentes: (1) contexto histórico do discipulado na Palestina nos dias de Jesus, (2) descrição nos evangelhos e (3) resumo de seus aspectos na Bíblia.

Contexto histórico

A descrição do discipulado nos dias de Jesus é variada, mesmo por textos antigos como a Mishnah. Porém, é possível traçar um esboço desse processo, que começava desde a tenra idade de uma criança entre cinco a sete anos e se estendia até a maturidade, por volta dos 30.

Esse processo era central na vida de um judeu da Palestina, seja aprendendo as primeiras letras ou um ofício com seu pai, ou participando de algo mais formal na sinagoga local ou no templo em Jerusalém. O discipulado era uma das três máximas dos homens da Grande Assembleia que norteavam o pensamento farisaico/rabínico dos dias de Jesus, como o tratado Avot 1.1 afirma: “Sejam ponderados no julgamento, levantem muitos discípulos e façam uma cerca em torno da Torá”.

O processo mais formal de discipulado se dava em três etapas. A primeira era conhecida como Bet Sefer ou Casa do Livro, em tradução livre. Ela se destinava às crianças de até aproximadamente 13 anos. Nesse estágio, a principal tarefa era a memorização do texto sagrado e preparava a criança para o Bar Mitzvah, (Filho do Mandamento, em tradução livre). O estudo era realizado principalmente nas adjacências da sinagoga local, podendo, em alguns casos, ocorrer na própria casa.

Os melhores alunos que não eram obrigados a deixar os estudos para trabalhar na subsistência da família iam para a Bet Midrash (Casa do Estudo, em tradução livre). Essa fase da vida do aluno ia normalmente dos 13 aos 15, aproximadamente.

Além da memorização, havia o estudo, a interpretação e a discussão da Bíblia Hebraica e da tradição oral, que chegou até nós por tratados como a Mishnah e a Tosefta. O foco do estudo estava em como aplicar os ensinos das Escrituras à vida prática, em todas as áreas. Nesse período, o estudo não mais ocorria nos lares, pois contavam com a Bet Midrash Gadol (Grande Casa de Estudo), situada no Templo de Jerusalém, e centenas de Batte Midrashot nas sinagogas espalhadas por toda a Palestina.

Somente os melhores dos melhores, também conhecidos como talmidim, conseguiam entrar na Bet Talmud (Casa do Aprendizado/Discipulado), terceira e última fase do processo de discipulado.

Falta de aptidão, casamento, necessidade de trabalhar, entre outros motivos, tiravam muitos desse caminho de aprendizagem. Essa era a etapa mais longa, indo até os 30 anos. Nessa fase o jovem deixava sua casa e ia tentar encontrar um lugar para aprender com um grande Rabbi, “mestre”. A maioria dos talmidim se candidatava ao posto de aprendiz e, às vezes, era convidada, mas sempre a última palavra vinha do professor.

Somente os melhores dos melhores, também conhecidos como talmidim, conseguiam entrar na Bet Talmud (Casa do Aprendizado/Discipulado), terceira e última fase do processo de discipulado.

Nesse nível, o foco estava na imitação. Em todas as etapas do discipulado, o aluno se assentava aos pés do mestre, mas na Bet Talmud o aluno seguia no pó do Rabbi, desejando seguir seu exemplo em todos os detalhes da vida. O discípulo imitava o que o Rabbi comia e como o fazia, seus gostos e preferências, até mesmo a maneira de dormir e acordar. Porém, o mais importante: o aluno aprendia a estudar e interpretar as Escrituras e compreender Deus exatamente como seu Rabbi.

Os evangelhos

Semelhanças e diferenças com o discipulado nos evangelhos são patentes à vista. Os discípulos viviam com o mestre todo o tempo, com o propósito de imitá-lo em cada aspecto da vida.

Os discípulos de Jesus não foram escolhidos dentre os melhores dos melhores. Os discípulos escolhidos por Cristo já haviam se retirado do processo habitual de aprendizagem para se dedicar aos ofícios de subsistência. Representantes de várias classes judaicas estavam presentes. Desde os zelotes, como Simão, que queriam através da espada se independer do jugo romano, até cobradores de impostos aliados aos romanos, como Levi Mateus. Isso sem falar das mulheres que não só O seguiam, mas também O sustentavam (Lc 8:1-3).

Na realidade, o discipulado é um dos principais pilares sobre o qual os evangelhos são construídos. Em Mateus, quando se compara a introdução com a conclusão, pode-se detectar um ensinamento peculiar. Mateus 1:1 menciona o livro de Gênesis com suas primeiras palavras: “Livro da genealogia”. Essa expressão, no original, é idêntica à utilizada em vários lugares de Gênesis, antes de mencionar a árvore genealógica dos patriarcas ou até mesmo a gênese dos céus e da Terra (Gn 2:4). Por outro lado, na conclusão, Mateus 28:18-20 é uma alusão tanto verbal quanto estrutural ao último livro, do último capítulo e do último versículo da Bíblia hebraica (2 Cr 36:23).

Os discípulos de Jesus não foram escolhidos dentre os melhores dos melhores.

Em toda essa estrutura e fraseologia similar, a única parte que parece ser diferente é que, em 2 Crônicas, Ciro falou em construir uma casa, um templo, em Jerusalém, enquanto em Mateus, Jesus disse: “Façam discípulos”. Esse recurso literário parece indicar que Mateus estivesse equiparando a construção do templo com fazer discípulos.

Nesse caso, Mateus estaria se referindo a uma concepção bíblica já presente no Antigo Testamento (Sl 114:1-2) e que Paulo, por sua vez, enfatiza em vários textos (1Co 3:16-17; 6:19-20; 2Co 6:16) para afirmar que nós somos templos de Deus.

Imperativo

Outro ponto importante sobre o discipulado em Mateus 28:18-20 é que o imperativo “façam discípulos” é precedido pelo imperativo funcional “vão”. Ou seja, o objetivo de fazer discípulos está atrelado à ordem de ir a todas as nações. É verdade que fazer discípulos é um estilo de vida, mas Cristo também espera que intencionalmente saiamos a fim de fazer novos discípulos. A passividade nesse caso não é uma recomendação divina. É preciso atrelar a intencionalidade e a assertividade do "ide" ao imperativo de fazer discípulos (Mt 28:19)

Compreensão

Em Marcos, o discipulado acontece quando aquele que acompanha Jesus compreende quem Ele é. Uma pergunta fundamental do evangelho que os próprios discípulos fazem é “quem é Este que até o vento e o mar Lhe obedecem?” (Mc 4:41). Mas a resposta precisa ser dada pelos próprios seguidores de Jesus. “E vocês, quem dizem que Eu sou? Respondendo, Pedro Lhe disse: O Senhor é o Cristo” (Mc 8:29). Foi nesse momento que Jesus disse o que é necessário para que alguém possa ser Seu discípulo: “Se alguém quer vir após Mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mc 8:34).

Se os discípulos sabem quem Ele é, precisam fazer o que Ele faz: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45).

Em Lucas e Atos, os discípulos são chamados de seguidores do Caminho. O Caminho nesses livros é uma referência ao caminho que Jesus percorreu da bonança e aceitação da Galileia em direção a Jerusalém, ao sofrimento e à cruz (Lc 9:51–19:45). Foi nesse trajeto que Jesus ensinou detalhes do discipulado autêntico e mostrou a diferença entre um seguidor e o verdadeiro discípulo: “Grandes multidões acompanhavam Jesus, e Ele, voltando-Se, lhes disse: Se alguém vem a Mim e não Me ama mais do que ama o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser Meu discípulo. E quem não tomar a sua cruz e vier após Mim não pode ser Meu discípulo” (Lc 14:25).

Tanto em Lucas quanto em Atos, se alguém está disposto a ser discípulo de Cristo precisa caminhar com Ele no caminho que passa pela cruz, mas que leva à vitória final.

Se em Lucas o caminho do discipulado vai até a cruz em Jerusalém, em Atos há o reverso. “Jerusalém, Judeia, Samaria, e até os confins da Terra”, disse Jesus (At 1:8). O caminho descrito no livro de Atos leva à vitória da pregação do evangelho no poder do Espírito Santo, derrubando todas as barreiras, até mesmo o medo da morte (At 28:30-31).

Portanto, tanto em Lucas quanto em Atos, se alguém está disposto a ser discípulo de Cristo precisa caminhar com Ele no caminho que passa pela cruz, mas que leva à vitória final.

Escritos joaninos

Em João, os sinais e os discursos de Jesus têm por objetivo levar Seus discípulos a crer que Ele é Deus, e crendo, ter vida em abundância (Jo 20:20-21; cf. 10:10). Logo após ter informado o objetivo do seu evangelho, João contou a última história para dizer como os discípulos que creem em Cristo devem viver (Jo 21:1-23).

Na primeira parte da história é explicado que os discípulos precisam ser totalmente dependentes de Cristo. O ato de crer precisa ser completo. Os discípulos voltaram a pescar, mas, apesar de serem pescadores experientes, só pescaram, e em abundância, quando fizeram da maneira de Jesus (Jo 21:4-6). Além disso, a refeição que eles tiveram pela manhã não veio de nenhum dos peixes que pescaram, mas diretamente de Cristo e de maneira miraculosa: peixes e pão (Jo 21:9).

Como resultado da dependência total, a segunda parte da história descreve a tarefa do discípulo e o compromisso que ele precisa ter com seu Mestre. A tarefa pode ser resumida pela frase repetida três vezes: “Simão, filho de João, tu Me amas? ... Apascenta as Minhas ovelhas” (Jo 21:15-17).

Logo na sequência, aparece o compromisso: “‘Em verdade, em verdade lhe digo que, quando era mais moço, você se cingia e andava por onde queria. Mas, quando você for velho, estenderá as mãos, e outro o cingirá e o levará para onde você não quer ir.’ Jesus disse isso para significar com que tipo de morte Pedro havia de glorificar a Deus. Depois de falar assim, Jesus acrescentou: ‘Siga-Me’.” (Jo 21:18, 19).

Jesus sabia que Pedro iria morrer pelo fato de ser discípulo Dele. Sabia o tipo de morte que Pedro teria. Ainda assim, disse: “Segue-Me”. Em João, o compromisso do discipulado é a vida inteira. Aquele que sabe quem Cristo é, e crê Nele inteiramente, entrega a vida completamente.

Dentro do contexto descrito, é importante termos uma visão geral do que é o discipulado na Bíblia. Pelo menos quatro aspectos auxiliam nessa compreensão: dimensão, propósito, método e coração.

Dimensão

Em relação à dimensão, tanto no Novo Testamento (NT) quanto no Antigo Testamento (AT), são apresentadas pelo menos quatro dimensões do processo de discipulado: povo ao mundo, um ao povo, um ao grupo e um a um. Quanto mais amplo é o processo, menos profundo ele é. Quanto mais íntimo, mais profundo.

O pensamento de um povo ao mundo é constante nos textos basilares sobre o discipulado no NT. “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações” [...] “até os confins da Terra” (Mt 28:19; At 1:8). No AT, essa dimensão global está presente desde a criação: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a Terra” (Gn 1:28).

O segundo tópico é um ao povo. Ao longo dos evangelhos é possível ver que Jesus discipulava as multidões com Seus sermões e ações. Jesus tinha muito mais discípulos que os doze mais íntimos (Jo 6:66-67). No AT, Ne 8:1-11 mostra Esdras ensinando a lei a todo o povo.

Em seguida aparece a característica de um ao grupo. Essa talvez seja a dimensão mais clara e recorrente, quando Jesus Se afastava de todos para ministrar apenas aos 12 discípulos e de maneira mais particular a Pedro, Tiago e João. No AT, a escola dos profetas é um exemplo de discipulado a um grupo menor (2Rs 2:15, 4:1, 38; 6:1).

Por fim, é perceptível que existe o fator um a um. Dentre todos os discípulos Jesus tinha um relacionamento especial com João, como pode ser notado por uma simples leitura do evangelho de João. “O discípulo a quem Jesus amava” tinha a confiança de recostar a cabeça ao peito de Jesus (Jo 13:23-25). E de tanto correr foi o primeiro dos discípulos a ver o túmulo vazio (Jo 20:3-5). Já o relacionamento de Moisés e Josué é um exemplo clássico no AT do discipulado um a um (Êx 33:11).

Essas dinâmicas mostram que vários são os métodos para se discipular e todos podem ser utilizados como o próprio Cristo fez. O discipulado um a um, contudo, é o de impacto mais profundo e duradouro, como pode ser visto pela transformação da vida de João e por seu amplo serviço pelo Mestre, cuidando de Sua própria mãe.

Propósito

O segundo aspecto se refere ao propósito do discipulado, que é o de restaurar no homem à imagem e à semelhança de Deus (Gn 1:26, 27). “Restaurar no homem a imagem de seu Autor, levá-lo de novo à perfeição em que foi criado, promover o desenvolvimento do corpo, espírito e alma para que se pudesse realizar o propósito divino da sua criação. Tal deveria ser a obra da redenção. Esse é o objetivo da educação, o grande objetivo da vida” (Ellen White, Educação, p. 15). “No mais alto sentido, a obra da educação e da redenção são uma só” (p. 30).

Há vários métodos para se discipular e todos podem ser utilizados como o próprio Cristo fez. O discipulado um a um, contudo, é o de impacto mais profundo e duradouro.

Essa restauração, de acordo com Paulo, ocorre através da imitação: “Sejam meus imitadores, como também eu sou imitador de Cristo” (1Co 11:1). O discipulador imita o Mestre e o discípulo imita o discipulador que imita o Mestre. E mais: cada discípulo também é convidado a olhar diretamente para o Mestre: “E todos nós, com o rosto descoberto, contemplando a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na Sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito” (2Co 3:18).

Metodologia e coração

O terceiro aspecto do discipulado é o método, que pode ser resumido em uma só palavra: relacionamento. Lucas e Atos têm a estrutura fundamentada nesse relacionamento de caminhar com o Mestre ao longo do caminho. Antes do pecado, Deus mesmo vinha na viração do dia para se encontrar com Adão e Eva (Gn 3:8). Depois do pecado, os 144 mil “seguem o Cordeiro por onde quer que Ele vá” (Ap 14:4; cf., Ap 21:3). Durante o pecado, “Andou Enoque com Deus...” (Gn 5:22); “Noé andava com Deus” (Gn 6:9); e a Abraão, Deus diz: “Ande na Minha presença e seja perfeito” (Gn 17:1).

Discipulado não é um projeto nem um programa, ele é o único estilo de vida do verdadeiro cristão.

Na Bíblia, esse relacionamento um a um mais profundo é dedicado especialmente ao ambiente familiar, em que os pais falam da lei que está em seu coração de maneira incessante aos seus filhos (Dt 6:1, 6-7).

O quarto aspecto fala do coração do discipulado. Sem o sacrifício e o serviço, tudo fica sendo apenas um conceito histórico interessante. O discipulado só acontece quando o discipulador está disposto a servir e se sacrificar pelo discípulo. Esse é o conceito mais repetido nos evangelhos.

Jesus Cristo disse: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45). Como resposta a esse amor, Paulo afirmou: “o amor de Cristo nos domina” (2Co 5:14). É esse mesmo amor de Deus que deve nos impulsionar a servir e a nos sacrificar para que o discipulado realmente aconteça nos lares e nas igrejas. Afinal, discipulado não é um projeto nem um programa, ele é o único estilo de vida do verdadeiro cristão.


Fontes
:

“Jesus’ Education,” Jerusalem Perspective, Vol. 2, Number 2–3, Nov-Dec 1998. Jewish Encyclopedia, Bet ha-Midrash. Dan Stolebarger, Discipleship vs. Talmidim, Koinonia Institute, acessado em 07/06/22 às 12:01. S Schoeman, “Early Hebrew education and its significance for present-day educational theory and practice,” HTS 53/1 & 2 (1997), 407–427. Pieter J. J. Botha, “Schools in the world of Jesus: Analysing the evidence,” Neotestamentica 33(1) 1999, 225–260. Greenwold, Doug. Making Disciples Jesus’ Way: Wisdom We Have Missed. Gaithersburg, MD: Greenwold, 2007. Gratidão ao Pr. Marcelo Cardoso do SALT-IAP pelas fontes da parte histórica.

Hagner, Donald A. Matthew 1–13. Vol. 33A of Word Biblical Commentary. Dallas: Word, 1993. Hagner, Donald A. Matthew 14–28. Vol. 33B of Word Biblical Commentary. Dallas: Word, 1995. Davies, W. D., and Dale C. Allison Jr. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to Saint Matthew. Vol. 1 of International Critical Commentary. London; New York: T&T Clark, 2004. Brooks, James A. Mark. Vol. 23 of The New American Commentary. Nashville: Broadman & Holman, 1991. Nolland, John. Luke. Vol. 35A–C of Word Biblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated, 1989. Brown, Raymond E. The Gospel according to John (I–XII): Introduction, Translation, and Notes. Vol. 29&29A of Anchor Yale Bible. New Haven; London: Yale University Press, 2008. Gratidão aos professores do SALT-FADBA pelo estudo sobre os aspectos do discipulado.

 

LEONARDO GODINHO NUNES é doutor em Teologia Bíblica pela Universidade Andrews

 

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